46 anos depois da adesão de Portugal às então denominadas “Comunidades” continua a ser maiúscula a lusitana ignorância quanto à mecânica institucional do que hoje funciona como União Europeia. Só assim se compreende a quantidade de títulos na imprensa, muitos em caixa alta, com manchetes em todos os jornais anunciando ontem as decisões tomadas pela Comissão Europeia e anunciadas ao mundo pela sua Presidente no “Discurso sobre o Estado da União”. Quem ouviu o comentariado luso sentiu-se transportado para os EUA, de onde aquele modelo de discurso foi copiado, imaginando-se a viver numa federação em que os discursos políticos do Presidente são para ser levados a sério. Recapitulemos: a Comissão Europeia só decide as matérias para as quais esteja previamente habilitada pelos Tratados ou pelas decisões legislativas aprovadas, na maior parte dos casos em co-decisão, pelo Conselho e pelo Parlamento Europeus. Em todos os casos a Comissão Europeia tem o exclusivo da iniciativa legislativa. Mas se a dimensão do acquis communautaire é esmagadora o cemitério onde jazem as propostas da Comissão Europeia não aprovadas pelos Estados-membros (cujos Governos se sentam no Conselho e cujos Deputados formam o Parlamento) é muito maior.
No que respeita à regulação do mercado da energia destaca-se um enorme obstáculo à transformação das propostas da Comissão em normas vinculativas dos Estados e dos particulares. As decisões em matéria fiscal exigem uma decisão unânime por parte dos Estados-membros. É muito tentador para um Estado-membro tomar como refém uma decisão em matéria fiscal e exigir, como condição do voto favorável, uma contrapartida num outro dossier. Nem sempre essa contrapartida pode ser concedida sob pena de fazer saltar do acordo outros Estados ou de dar origem a uma espiral de tomada de reféns na negociação. Por esta razão os anúncios de uma decisão europeia em matéria de tributação dos windfall profits no sector da energia é um tudo nada exagerada. A competência fiscal nestas matérias permanecerá na esfera de cada Estado-membro e cada Governo nacional terá de assumir as suas responsabilidades perante o Parlamento e os eleitores.
Na ausência de decisões europeias (e de orçamento disponível…) para os apoios às famílias e às empresas esmagados pelos preços da energia (e pelos consequentes aumentos dos preços de bens e serviços) estamos entregues ao darwinismo financeiro. Cada Governo vai apoiar as famílias e as empresas na proporção da riqueza nacional. As “ajudas” alemãs, dinamarquesas ou espanholas, mesmo corrigidas pela paridade do poder de compra, são muito superiores em valor às que serão dadas aos portugueses.
A Comissão Europeia, guardiã dos Tratados, onde se inclui a defesa da concorrência, deveria estar atenta e vigilante ao neo-proteccionismo dos Governos dos Estados mais ricos. Estes estão a proteger as suas empresas de acordo com o músculo dos respectivos orçamentos de Estado. Dada a congénita anemia das finanças públicas portuguesas, fruto de uma economia duradouramente atrofiada, o futuro das empresas portuguesas expostas a esta forma de concorrência desleal não é promissor.
A subida de preços da energia e as medidas proteccionistas são anteriores à invasão da Ucrânia. Se bem me lembro a Comissão nada fez para combater os efeitos distorsivos destas práticas no funcionamento do mercado interno. Mas agora tudo será diferente…
Escreve à sexta-feira, sem adopção das regras do acordo ortográfico de 1990