His Majesty, the show


Não falta quem critique os órgãos de comunicação social, em especial as televisões, por passarem muitas vezes a fronteira entre notícias e entretenimento…


As pessoas são muito injustas, lá isso são, há que dizê-lo. Não falta quem critique os órgãos de comunicação social, em especial as televisões, por passarem muitas vezes a fronteira entre notícias e entretenimento, transformando acontecimentos que merecem ser noticiados em não mais do que 15 ou 30 minutos em telenovelas de dia inteiro, dia após dia – seja em espaços noticiosos em canais generalistas, seja em canais noticiosos de 24 horas. Ora, são críticas muitíssimo exageradas, como se pôde constatar por exemplo na última semana, a respeito do falecimento da rainha Isabel II. Uma verdadeira bofetada de luva branca das televisões nesses injustos e precipitados críticos. Assistimos, com efeito, à maior contenção e ao mais afiado poder de síntese, tudo não passando de “a rainha faleceu, já temos novo rei, o funeral é dia tal”, e mais dois ou três factos relevantes. E pronto, nada mais, ocupando-se os espaços noticiosos com os outros eventos, alguns bem mais relevantes, que sucedem pelo mundo e pelo país. Um verdadeiro exemplo. Tomem, embrulhem, críticos injustos. O leitor viu, como eu, não viu? E concorda comigo, não concorda?

Quem perdeu a cabeça com estes eventos ocorridos no Reino Unido foram as áreas de entretenimento e ficção das televisões, bem como os espaços de documentário, que praticamente suspenderam a programação e tornaram o falecimento da rainha num quase monopólio, como se a vida imitasse a ficção, como se o triste evento pudesse ser um reality show ou como se, em vez de investigação sobre o que já aconteceu há uns tempos e com um certo distanciamento, o documentário (com cores de docudrama) fosse um relato em tempo real. O caminho da Escócia para Londres transformou-se no caminho mais visto e comentado (ah, os comentadores, sim, deram muito colorido à coisa), e ficámos a saber de tudo um pouco, e pudemos acompanhar ao segundo o percurso, as chegadas, as partidas, os encontros, as falas, os semblantes, os acenos, ou mesmo um vislumbre dos pensamentos e das emoções. Et cetera, et cetera, que já não tenho espaço para escrever mais sobre o que aconteceu e ainda está a acontecer nessa substituição de tudo o que é entretenimento, ficção e documentário pelo seriado sobre o falecimento da rainha e afins. Se tivesse espaço, escrevia um verdadeiro guião, embora, diga-se, bastante entediante – pois, apesar do muito tempo gasto e dos incontáveis meios mobilizados, quase nada se passou (até a interminável e algo maçadora obra de Marcel Proust é mais rica em ocorrências).

Ainda bem que em matéria de espaços e canais noticiosos não se foi por aí, e temos uma lufada de ar fresco. God save them. Já agora, uma pequena dúvida para partilhar com o leitor: tudo isto não ocorreu nem está a ocorrer nos espaços nem nos canais noticiosos, pois não? É verdade que não estive nem estou sempre a ver, e às vezes já me baralho um bocado quando poiso os olhos e os ouvidos aqui e ali. Mas não me pareceu que fosse (aliás, seria impensável), pareceu-me, sim, coisa das áreas de ficção e entretenimento (e até documentário). Acho que não me enganei. Não, pois não?
 
Escreve quinzenalmente à sexta-feira

His Majesty, the show


Não falta quem critique os órgãos de comunicação social, em especial as televisões, por passarem muitas vezes a fronteira entre notícias e entretenimento...


As pessoas são muito injustas, lá isso são, há que dizê-lo. Não falta quem critique os órgãos de comunicação social, em especial as televisões, por passarem muitas vezes a fronteira entre notícias e entretenimento, transformando acontecimentos que merecem ser noticiados em não mais do que 15 ou 30 minutos em telenovelas de dia inteiro, dia após dia – seja em espaços noticiosos em canais generalistas, seja em canais noticiosos de 24 horas. Ora, são críticas muitíssimo exageradas, como se pôde constatar por exemplo na última semana, a respeito do falecimento da rainha Isabel II. Uma verdadeira bofetada de luva branca das televisões nesses injustos e precipitados críticos. Assistimos, com efeito, à maior contenção e ao mais afiado poder de síntese, tudo não passando de “a rainha faleceu, já temos novo rei, o funeral é dia tal”, e mais dois ou três factos relevantes. E pronto, nada mais, ocupando-se os espaços noticiosos com os outros eventos, alguns bem mais relevantes, que sucedem pelo mundo e pelo país. Um verdadeiro exemplo. Tomem, embrulhem, críticos injustos. O leitor viu, como eu, não viu? E concorda comigo, não concorda?

Quem perdeu a cabeça com estes eventos ocorridos no Reino Unido foram as áreas de entretenimento e ficção das televisões, bem como os espaços de documentário, que praticamente suspenderam a programação e tornaram o falecimento da rainha num quase monopólio, como se a vida imitasse a ficção, como se o triste evento pudesse ser um reality show ou como se, em vez de investigação sobre o que já aconteceu há uns tempos e com um certo distanciamento, o documentário (com cores de docudrama) fosse um relato em tempo real. O caminho da Escócia para Londres transformou-se no caminho mais visto e comentado (ah, os comentadores, sim, deram muito colorido à coisa), e ficámos a saber de tudo um pouco, e pudemos acompanhar ao segundo o percurso, as chegadas, as partidas, os encontros, as falas, os semblantes, os acenos, ou mesmo um vislumbre dos pensamentos e das emoções. Et cetera, et cetera, que já não tenho espaço para escrever mais sobre o que aconteceu e ainda está a acontecer nessa substituição de tudo o que é entretenimento, ficção e documentário pelo seriado sobre o falecimento da rainha e afins. Se tivesse espaço, escrevia um verdadeiro guião, embora, diga-se, bastante entediante – pois, apesar do muito tempo gasto e dos incontáveis meios mobilizados, quase nada se passou (até a interminável e algo maçadora obra de Marcel Proust é mais rica em ocorrências).

Ainda bem que em matéria de espaços e canais noticiosos não se foi por aí, e temos uma lufada de ar fresco. God save them. Já agora, uma pequena dúvida para partilhar com o leitor: tudo isto não ocorreu nem está a ocorrer nos espaços nem nos canais noticiosos, pois não? É verdade que não estive nem estou sempre a ver, e às vezes já me baralho um bocado quando poiso os olhos e os ouvidos aqui e ali. Mas não me pareceu que fosse (aliás, seria impensável), pareceu-me, sim, coisa das áreas de ficção e entretenimento (e até documentário). Acho que não me enganei. Não, pois não?
 
Escreve quinzenalmente à sexta-feira