De há muito que venho referindo que os romances policiais são, hoje, o que de mais análogo há com a corrente de literatura realista que, desde os séculos anteriores, marcou o panorama literário de muitos países.
Os romances policiais espanhóis, italianos, alemães, nórdicos e latino-americanos descrevem, com muita verdade e rara precisão, a forma como as nossas sociedades se foram fazendo e funcionam de facto.
Neles podemos ler o papel da corrupção, que condiciona os regimes políticos desses e doutros países, e a brutalização e crueldade que ela acarreta para as sociedades que contamina e submete.
Partindo quase sempre do clássico caso de homicídio, cuja investigação norteia a estória, conclui-se, em regra, em tais romances, pelo destapar dos meandros mafiosos que enleiam a política, a economia, as alianças e rivalidades internacionais, e as próprias guerras sem sentido que estas provocam.
Na corrupção – em sentido amplo – e na dissolução de valores que provoca residem, quase sempre, a motivação dos crimes e da violência que assolam as nossas sociedades e enxameiam os noticiários.
Lendo muitos desses romances – preclaros, mas desencantados, quase todos – percebemos mais nitidamente as causas de muitas das catástrofes humanas que têm dominado o mundo em que vivemos.
Nesse aspeto, eles conseguem antecipar e explicar melhor o mundo do que os inúmeros e científicos tratados de economia, história, ciência política, direito, filosofia, sociologia e psicologia social que vão sendo publicados sobre aspetos mais gerais ou mais particulares da vida da humanidade.
Tendo começado a reler no meu recente e-book alguns dos romances de Manuel Vásquez Montalbán, e a ler outros, que antes me escaparam, principiei, subitamente, a entender a razão de ser do pouco comum hábito de Pepe Carvalho – o detetive particular que dá corpo às estórias – de, ciclicamente, queimar algumas das boas obras da sua ilustrada e bem dimensionada biblioteca.
Pepe Carvalho, apesar do ofício de detetive privado que sempre exerce nas estórias de Montalbán, é uma figura enigmática e ambígua: um renegado da esquerda e da direita, inclusive da CIA, para quem, durante algum tempo, trabalhou.
Filho de galegos pobres, adotou a Catalunha e, nesta, a rica Barcelona como centro de vida.
Também neste aspeto, como nas outras opções de vida que foi tomando, pode ser considerado um renegado: um galego que abandona e ridiculariza carinhosamente o país pobre que viu nascer o seu pai e opta pela mais rica e cosmopolita Catalunha, cujos preconceitos de superioridade dos naturais, vai, todavia, causticando, também, com os seus comentários cínicos.
Sendo um gastrónomo viciado, e conhecendo quase todos os paladares das cozinhas e garrafeiras do seu país e do mundo, é também um intelectual reflexivo, mas cético do papel da cultura e, sobretudo, da utilidade das ciências sociais.
São, portanto, as obras relacionadas com estas ciências que ele prefere escolher para, ciclicamente, queimar na lareira da sua casa de Barcelona.
O motivo porque o faz nunca é explícito, mas, lendo as suas diferentes estórias, pode concluir-se que tal queima acontece, em regra, quando, sempre mais desiludido, se apercebe da verdadeira razão de ser de mais um dos crimes que consegue desvendar.
Como dá a entender, Pepe Carvalho queima livros que, tendo sido significativos para ele em algum momento da vida, conclui, afinal, nada terem contribuído para mudar o sentido da sociedade que se vai construindo em Espanha, na época histórica em que opera: a também ambígua transição do franquismo para a democracia.
Esta constatação de Pepe Carvalho constitui, talvez, uma das mensagens mais claras que resultam das estórias de que é protagonista.
Pepe Carvalho personifica, portanto, todas as contradições da transição espanhola e, por antecipação, da sociedade a que ela irá dar lugar.
Muitos dos livros e artigos que hoje se escrevem – e escrevem-se livros sobre tudo – mesmo quando resultados de pesquisas e análises cuidadas, mesmo quando informativos e contendo denúncias óbvias, de nada servem, ou pretendem servir para, por fim, alterar o estado corrompido da nossa sociedade global.
Nisso se diferenciam tais ensaios de outras obras que, em séculos passados, se propunham e serviram, na realidade, para ajudar a mudar o mundo, mesmo que este tenha, paulatinamente, regressado, mais recentemente, ao mesmo caminho de injustiças e desumanidade.
Nunca, como hoje, se escreveram, de facto, tantas obras sobre os mais variados problemas que afetam a humanidade ou segmentos dela, mas, na verdade, nunca elas revestiram, como agora, tão pouca importância social e política para melhorar o destino das mulheres e homens do nosso tempo.
Se hoje sabemos mais, efetivamente, da história e das causas da exploração, das desigualdades, da miséria, do racismo, da colonização, da marginalização e perseguição dos que assumem a sua condição e preferências sexuais, por exemplo, muito pouco de tal conhecimento mais aprofundado tem contribuído decisivamente para contrariar tais fenómenos.
Dominados por uma cultura solipsista, cultivada, momento a momento, por uma mensagem propagandística que apenas enaltece o egoísmo consumista e desfaz os laços solidários que uniam as pessoas na busca das soluções para uma vida boa para todos, tais obras quase nada significam e em quase nada contribuem para a melhoria da sociedade.
É por essa razão que os inspiradores da propaganda omnipresente nada se preocupam com tais livros e escritos e até se dão ao luxo de os publicar e divulgar.
A única coisa que verdadeiramente os inquieta é a união dos cidadãos – mesmo que pacífica e festiva – em torno de projetos que deem corpo e alento à luta coletiva pelos seus direitos.
É que as ideias, se não forem usadas para dar vida à vida da humanidade, de nada servem.
Por isso, é contra todos os projetos solidários e os movimentos políticos e sociais que ainda os corporizam, que os propagandistas deste sistema sem sentido, em que todos hoje vivemos, se encarniçam mais e cada vez mais implacavelmente.