Uma das medidas mais gravosas tomadas no âmbito da justiça portuguesa foi a reforma do mapa judiciário de 2014, que colocou os tribunais apenas nas capitais de distrito, encerrando os muitos tribunais que existiam nas povoações do interior do país, que nalguns casos passaram a ser eufemisticamente denominados de “secções de proximidade”. Tal colocou os cidadãos a muitos quilómetros do seu tribunal e obrigou os advogados a exercerem a sua actividade profissional muito longe dos seus escritórios.
O resultado disto foi contribuir para aumentar a desertificação do interior, com o Estado a desaparecer de grande parte do território nacional, abandonando as suas populações, o que as tornou especialmente vulneráveis a tragédias, como os incêndios que todos os anos se multiplicam. Mas, para além disso, a pandemia demonstrou que nas capitais de distrito os tribunais tinham sido colocados em edifícios sem quaisquer condições, em que os advogados e os cidadãos foram obrigados a esperar na rua pela realização das diligências. Em edifícios como os do Campus da Justiça, as salas de audiência são minúsculas e nem sequer é possível abrir uma janela em todo o edifício, prejudicando assim o seu arejamento, essencial para evitar a contaminação pelo vírus. Cabe por isso perguntar para quê se encerraram os tribunais do interior, que funcionavam em edifícios de excelente qualidade, e com todas as condições para que a justiça se faça com a dignidade que é imprescindível à sua realização.
Têm sido por isso constantes os apelos para que esta situação seja alterada. Um exemplo claro é o do Tribunal de São João da Pesqueira, que em 2014 foi transformado numa “secção de proximidade”, apesar de ter um número de processos significativo, os quais foram transferidos para Viseu e Moimenta da Beira. Ora, como é necessário gastar uma hora de viagem para Moimenta da Beira e uma hora e meia na viagem para Viseu, o resultado é que os magistrados, advogados e cidadãos perdem um enorme tempo e têm um grande custo económico nestas deslocações, o que prejudica o eficaz funcionamento da justiça. E o magnífico edifício do Tribunal fica desaproveitado, sem qualquer justificação racional. Por isso a população de São João da Pesqueira há muito que exige o regresso do seu Tribunal. Este é um dos múltiplos exemplos de localidades em que os tribunais extintos deveriam ser reactivados, o que o poder político deveria de imediato fazer.
Em vez disso, no entanto, o que se está a assistir é a novos encerramentos de tribunais, sem que qualquer justificação seja apresentada. A Ordem dos Advogados foi surpreendida por uma comunicação da Juiz-Presidente do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa-Norte a determinar a concentração dos actos jurisdicionais dos Juízos Criminais de Alenquer, Torres Vedras e Vila Franca de Xira e do Juízo de Competência Genérica da Lourinhã no Juízo de Instrução Criminal de Loures. Tal implica que os interrogatórios de arguido detido e todas as demais diligências da competência do juiz de instrução criminal passarão a ter lugar apenas em Loures. Assim, os advogados e os cidadãos chamados a tribunal serão obrigados a fazer viagens constantes entre estas cidades, em automóvel próprio, uma vez que não há transportes públicos adequados, sendo que a viagem pode chegar a demorar três quartos de hora, numa altura em que o preço dos combustíveis dispara em consequência da guerra.
Infelizmente, temos vindo sistematicamente a referir que o país está a assistir a um verdadeiro colapso de todos os seus serviços públicos, na altura em que os cidadãos mais deles precisariam. No caso dos nossos tribunais, a situação assume, porém, os contornos de uma verdadeira liquidação. De cada vez que um tribunal é encerrado a justiça sofre e o nosso Estado de Direito vai-se degradando. É mais do que altura de acabar com este processo de encerramento de tribunais, determinando, pelo contrário, que os mesmos voltem a ser reabertos, a bem da justiça e dos cidadãos que dela carecem.
Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa
Escreve à terça-feira, sem adopção das regras do acordo ortográfico de 1990