Por Rita Homem de Mello
Com a rigorosa tradução de João Reis, Herança é o mais recente livro da escritora norueguesa Vigdis Hjorth publicado em setembro pela Livros do Brasil.
Nascida a 19 de julho de 1959, Hjorth licenciou-se em Filosofia, Literatura e Ciência Política e escreveu até à data mais de uma dúzia de romances. Começou a publicar em 1983 e com este livro ganhou o Prémio da Crítica Norueguesa para a Literatura e o Prémio doa Livreiros Noruegueses, sendo também selecionada nos E.U.A para o National Book Award For Translated Literature.
É uma herança pesada esta que a autora nos põe às costas. É uma herança agreste e por isso vamos ter de percorrê-la como quem atravessa em pânico uma floresta em dia de tempestade. Como quem tenta acender uma fogueira com achas molhadas, como quem fuça o rasto de pedrinhas, pétalas, migalhas de pão ou bagas de groselhas espalhadas por alguém que se aventurou antes de nós ao caminho. Mas são muitas as bifurcações que nos atravessam e nem sempre poderá haver um caminho de regresso.
Bergljot, a narradora desta saga familiar, é o maior exemplo de que muitas vezes não há um caminho de volta. Ela e o seu irmão Bard são consideravelmente desfavorecidos no testamento dos seus pais, já que apenas as irmãs mais novas, Ava e Astrid, estão habilitadas a herdar as casas de veraneio em Hvaler. Mas porque é que estas irmãs teriam mais regalias do que Bergljot e Bard? O que é que terá levado estes pais a favorecerem mais uns filhos em prol de outros? É essa reposta que vamos palmilhar a cada capítulo. É que há um segredo repugnante passado no número 22 da Skaus Vei que ainda não foi varrido por inteiro para debaixo do tapete desta família.
Abusada sexualmente em criança pelo pai, esta filha, que depois disso toda a vida se mostrou ser carta fora do baralho, representava a nódoa militante que eles à força queriam varrer. Mas há nódoas que por mais lixívia e amoníacos que lhes despejem em cima, nunca irão desaparecer. E há cartas que na verdade só fazem sentido quando fora do baralho para sempre.
Entre feridas abertas, alívio, mágoa e sentimentos de culpa, entre o medo, a repulsa, o amor, o ódio e a compaixão vamos resvalando pelas leiras vulneráveis e movediças desta família.
“A família não é tudo” “Uma vez, quando falava dos meus pais, a Karen comentara que eu parecia respeitar mais o meu pai do que a minha mãe. Estava absolutamente certa. Quando era mais nova, dizia para comigo, vezes sem conta e como modo de me animar, que saía mais ao meu pai do que à minha mãe. Porque é que queria sair mais ao meu pai do que à minha mãe, respeitá-lo mais do que a ela, quando fora o meu pai que abusara de mim?”.
Só em adulta, e depois de ter recorrido à psicanálise, a Freud e a Jung, quando já era mãe dos seus três filhos, é que Bergljot acusou o pai de a ter violado. A mãe, que estava a par “daquilo”, do “inominável”, nunca quis acreditar nessa atrocidade cometida pelo marido e por isso, tal como as outras filhas, achou por bem fechar os olhos e seguir a sua vida como se nada fosse. E por isso, a mãe continuava a falar-lhe em Rolf Sandberg, o seu grande amor extraconjugal, aquele que a levou à primeira tentativa de suicídio. E como se nada fosse, continuou também a procurá-la para os Natais, para todas as festas de família.
Mas Bergjlot esforçou-se por quebrar de vez qualquer laço de sangue. Pelo menos até ao dia em que o testamento a começou a perseguir. “A família não é tudo”, lemos a certa altura, mas os laços de sangue provam que podem ser inquebráveis. Ou não?
Por mais que a narradora se esforce por renegar a mãe, o pai e os irmãos, o sofá verde de couro, as casas de férias, o seu subconsciente vai-lhe devolvendo a par e passo o trauma, o sufoco, as más recordações que lhe degolaram a infância. “Enjoava-me recordar o passado. Lembrei-me de uma ocasião em especial: um dia, andava eu na terceira classe, levara para as aulas um vestido cor de laranja novo de que muito me orgulhava e, a caminho da escola, pensara que seria feliz se não fosse por aquilo.”
Embora “aquilo”, o incesto, represente a locomotiva deste romance, a sua temática não se circunscreve única e exclusivamente ao trauma de uma personagem. Não, porque Bergljot é uma personagem desafiante. Ela é mais do que uma vítima. Ela levanta-se. Cresce, casa, tem filhos. Tudo bem que mais tarde acaba por se divorciar, mas, ao contrário da mãe que nunca chegou a viver com o Rolf Sandberg, tempos depois vai morar com o professor universitário por quem durante anos se apaixonara. Bergljot é empolgante não só pela sua força interior, por conseguir a sangue frio sacar cada espinho do seu peito, mas muito em parte por ter uma bagagem cultural tremenda e aliciante.
Vemo-la deambular de olhos vendados os labirintos literários e artísticos de Oslo, dar-se com outros intervenientes cultos e fascinantes, entre eles Klara, uma editora e também crítica de teatro excêntrica, ou o poeta Anton Vindskev que organizava recitais de poesia em Copenhaga. Encontramo-la na linha da frente da importante e reconhecida revista Em Palco. Ela é representante da Associação de Editores de Revistas da Noruega, dá palestras sobre variados temas relacionados com a dramaturgia europeia, sobre Peter Handke, sobre a dificuldade de adaptação de poemas e romances a peças de teatro. Como não nos empolgarmos com alguém assim? Com os seus raciocínios ágeis, com a sua fúria, a sua determinação, as suas contradições mais dolorosas, o seu temperamento?
Abandonar ou não o navio? Bergjlot desafia o leitor, e prova assim, ao contrário da mãe, ser independente, culta, destemida. Prova ser capaz de dar a volta por cima, por mais que seja duro dar a volta por cima. Prova de igual modo, ao contrário da mãe, ser uma mulher moderna vingando na sua vida profissional. “A minha mãe era bonita, mas não tinha formação nem experiência profissional nem dinheiro, a minha mãe era património do meu pai, o meu pai tinha orgulho no seu património, a minha mãe exalava medo. (…) A minha mãe era o género de mulher que, naquela altura, muitos homens desejavam, uma cotovia no fim da era das cotovias, e o dilema que a minha mãe enfrentara e que a poderia ter ajudado a amadurecer e a tornar-se um ser humano livre era mais difícil de resolver do que aquele que Nora, na peça de Ibsen, tinha em mãos. A minha mãe fez uma escolha? Optara por não abandonar o navio com a esperança de que tudo correria bem, escolhera não reagir: isto era de facto uma escolha? Ser-se como uma criança e não entender muito bem o que se passa. Tentar manter-se à tona de agua, sorrir, fazer o melhor que podia, tendo em conta a posição em que se encontrava, sabendo que não tinha forças para se ir embora, porque, no fim de contas, ela bem tentara. Nora tivera forças, Nora afastara-se, mas Nora não era real, Nora não era mais do que o fruto da fantasia de um homem.”
A mãe da narradora, pelo contrário era real, mas escolheu não reagir e fazer figas para que o navio não afundasse. Pela vergonha, pela culpa, pelo receio, pelo egoísmo. Mas o navio afundou e Bergljot no fim descolou-se da proa de qualquer peso de consciência provando ser uma mulher complexa, profunda e determinada. Ela, tal como a máxima de Slavjov Zizek escrita na epígrafe do livro, fez literalmente o que teve de fazer como se o quisesse ter feito de facto. Por isso, como podemos comprovar, o trauma não é somente o único elo que nos prende a esta personagem atordoadora. O que nos prende é o suspense, a culpa, o nojo, a verdade, a determinação. A poesia resgatada de Rolf Jacobsen, de Tove Ditlevsen que tantas vezes a sossegou nos momentos mais difíceis, ou seus, os Lírios no Campo de Kierkegaard. Mas talvez acima de tudo, aquilo que mais nos amarre a estas páginas sejam as balas perdidas de uma história dolorosa (real ou ficcionada) a fazer ricochete na nossa própria história, na nossa própria infância, na nossa própria herança.