Gorbachov. O comunista que pôs fim ao império soviético

Gorbachov. O comunista que pôs fim ao império soviético


Queria democratizar o sistema político do seu país e descentralizar a economia. Em parte conseguiu. Mas os seus esforços levaram ao desmembramento da União Soviética em 1991. 


Poucos líderes políticos no século XX desencadearam, durante um período tão curto de tempo, mudanças tão profundas no mundo como Mikhail Gorbatchov. Mais de três décadas depois da queda da União Soviética, está longe de ser uma figura consensual. Em apenas seis anos no poder, levou a cabo reformas estruturais num território que definhava economicamente e desmantelou um sistema que oprimia a Europa Central e que trazia consigo a bagagem da Guerra Fria. 

Enquanto secretário-geral do Partido Comunista Soviético (PCUS), entre 1985 e 1991, e último presidente da União Soviética, conquistou a popularidade no Ocidente. Em 1989, a Time elegeu-o “O homem do ano”. Em 1990, o Financial Times proclamou-o “O homem da década”. No mesmo ano, recebeu o Prémio Nobel da Paz. Mas no seu próprio país era por muitos encarado com desconfiança ou até ressentimento. Morreu na terça-feira, “vítima de doença grave e prolongada”, de acordo com informação avançada pela agência de informação russa Tass.

Dois meses após ter sido eleito secretário-geral do Partido Comunista da União Soviética, numa visita a Leningrado, em maio de 1985, já deixava transparecer que era diferente dos seus antecessores.

“Os líderes soviéticos nunca são vistos na televisão a conversar com a população da forma descontraída que Gorbachov parece ter adotado no primeiro dia da visita a Leningrado”, descreve um relato daquela época da Associated Press. Perante uma multidão que se juntara para tentar vê-lo ao vivo, Gorbachov parecia preocupado com a juventude soviética e o seu papel no futuro do país.

“Vamos fazer o país avançar. Se tivermos uma economia forte, teremos uma defesa forte e continuaremos o crescimento do bem-estar das pessoas”, terá dito no tom vivo que dava força às suas palavras.

Este perfil de proximidade ao povo soviético seria a sua estratégia para introduzir uma série de reformas económicas e sociais dali em diante, como mostrou o académico norte-americano William Taubman, autor da biografia mais completa do antigo líder soviético.

“Ele queria democratizar a União Soviética e achava que a confiança era a chave para a democracia: as pessoas tinham de confiar umas nas outras. Era otimista acerca das suas hipóteses de o conseguir. Era autoconfiante. Tudo isto são qualidades pessoais que tiveram consequências políticas”, revelou o biógrafo numa entrevista ao Nascer do SOL em 2018.

Do meio rústico para a elite Filho de pequenos proprietários rurais, Mikhail Sergeyevich Gorbachov nasceu a 2 de março de 1931 na região de Stavropol, no sul da Rússia, numa altura de enormes prejuízos na produção agrícola devido ao processo de coletivização forçada levado a cabo por Josef Estaline. Quando a Alemanha atacou a União Soviética, arrastando-a para a II Guerra Mundial, a 22 de junho de 1941, Mikhail tinha apenas 10 anos. Além da dureza da vida no campo, recordava ainda esses tempos terríveis. 

“Lembro-me de tudo sobre a guerra. Esqueci-me de muito daquilo por que passei depois da guerra, mas as imagens e os acontecimentos do tempo da guerra ficaram-me gravados na memória para sempre”, relatou o próprio a Taubman.

Enquanto o pai combatia no exército e a mãe trabalhava nos campos, teve de dividir a escola com o trabalho num kolkhoz aos 13 anos, tendo também trabalhado como eletricista durante a adolescência. Apesar desse período tumultuoso, demonstrou logo ser um excelente aluno. Os resultados escolares e a militância na organização juvenil comunista Komsomol ditariam um futuro no mínimo promissor.

Ainda um jovem camponês decidiu ir para o meio urbano de Moscovo estudar Direito, em 1950. Numa entrevista ao historiador polaco Adam Michnik, confessou: sem a Universidade de Moscovo, “não haveria este Gorbachov sentado aqui à sua frente”.

Foi também nessa altura que conheceu aquela que se tornou sua mulher, a estudante de Filosofia Raíssa Maximovna Titarenko. Saído da universidade, regressou a Stavropol, onde começou a trabalhar com o gabinete do procurador regional. Depois é transferido para o Komsomol, tornando-se oficialmente funcionário do PCUS em 1956. É aí que começa a sua ascensão no aparelho. Imbuído do espírito de uma geração que queria reformar o país, decidiu fazê-lo através do partido, a partir de dentro.

Em 1970, é elevado a primeiro-secretário regional do PCUS em Stavropol, a máxima autoridade na região, que era local de passagem para muitos membros importantes do Politburo, a cúpula partidária.

Cultivando as ligações com a elite política, Gorbachov foi subindo degrau a degrau no partido. Em 1978, é chamado a Moscovo para dirigir o departamento agrícola do Comité Central do PCUS. Um ano depois, passa a secretário suplente do Politburo e, depois, a membro efectivo. Torna-se o braço-direito de Iuri Andropov, antigo chefe do KGB e sucessor de Leonid Brejnev como secretário-geral do PCUS.

A chegada ao topo da pirâmide não seria, contudo, assim tão imediata. Apesar de Andropov alimentar as esperanças de Gorbachov como seu sucessor quando morresse, quando o momento chegou não foi esse o desfecho. Em 1983, Andropov teve uma crise aguda de insuficiência renal. Ficaria hospitalizado durante um ano, acabando por morrer a 9 de fevereiro de 1984.

Nesse ano, a ala mais conservadora do Politburo prefere Konstantin Chernenko, de 73 anos, ao jovem Gorbachov, que passa a dividir com Andrei Gromiko (ministro dos Negócios Estrangeiros desde 1957) a coordenação do Politburo, o que lhe permite alargar a sua influência no aparelho.

No entanto, apenas 13 meses depois de ter tomado posse, Chernenko morre. No dia seguinte, Gorbachov convoca uma reunião do Comité Central e por proposta de Gromiko, e com o apoio de Viktor Chebrikov, na altura chefe do KGB, é eleito secretário-geral a 11 de março de 1985, com 54 anos, representando uma nova era de rejuvenescimento do partido.

“Quando ele tomou as rédeas, o sistema soviético estava a debater-se, estava podre, as pessoas não podiam comprar muita comida ou outros bens de consumo. Era consensual que era preciso fazer algum tipo de reforma moderna e foi por isso que os seus camaradas o escolheram”, explicou Taubman ao Nascer do SOL.

Das reformas à desintegração da URSS Após ter sido entronizado presidente da União Soviética, surgiram logo desafios no seu caminho. Com uma economia em estagnação, uma relação de tensão com os Estados Unidos e uma URSS atolada em conflitos relacionados com a Guerra Fria, como a guerra do Afeganistão, sabia que era preciso acelerar nas políticas, mas também era necessária cautela, pois a maioria do Politburo não aprovaria as reformas profundas que tinha pensadas e podiam levar à sua destituição.

Primeiro inicia uma renovação do pessoal dirigente, com novos membros na direção suprema. Coloca Gromiko como presidente do Soviete Supremo, para os Negócios Estrangeiros chama Eduard Chevardnadze, sem experiência de política internacional, mas de sua confiança. Depois promove Boris Ieltsin para dirigir o partido em Moscovo.

Uma tragédia marcaria um momento decisivo na aceleração da sua ação futura: a explosão do reator nuclear de Chernobyl, na madrugada de 26 de abril de 1986. Foi um forte revés para os planos de Gorbachov, que não só pretendia apostar no nuclear para animar a economia, como teve de gastar recursos colossais no combate à tragédia.

No início o PCUS tentou conter de imediato a informação conhecida sobre o desastre. Foi essa falta de transparência que reforçou a convicção de Gorbachov de que era necessária uma maior abertura na União Soviética. Em janeiro de 1987, a glasnost torna-se a linha oficial do partido, permitindo que a informação passasse a circular livremente.

Contudo, dentro do Politburo continuava a enfrentar resistências e por essa razão foi muito mais lento a aplicar medidas na lógica da transformação económica, mais conhecida como perestroika. Primeiro distribuiu mais fundos para se investir na agricultura e adotou uma postura disciplinadora nas relações laborais, começando por exemplo a campanha anti-álcool, que proibiu a venda de vodka (que ele próprio, ao contrário do russo comum, não apreciava). Mas estas não eram exatamente as reformas que ambicionava. Enquanto isso, a União Soviética continuava mergulhada na pobreza. 

Nos seis anos em que segurou as rédeas, promoveu uma intensa política externa, encontrando-se com todos os principais líderes do mundo ocidental, que conseguia cativar com o seu encanto pessoal, humor e inteligência. Uma operação de charme bem sucedida, que quebrou o gelo e o isolamento da União Soviética.

A nível interno, introduziu dezenas de programas para uma reestruturação radical da economia soviética, mas nenhum foi implementado. Em vez disso, a reforma económica limitou-se a meias medidas, como a lei da atividade económica privada e a diversas propostas de reforma de preços, que eram incapazes de produzir os resultados económicos desejados.

Mas logo em 1987 os sinais da queda de popularidade de Gorbachov tornaram-se mais evidentes. E a glasnost acabou por se transformar numa armadilha que deu voz às reivindicações ligadas às etnias nacionais e ao questionamento sobre a legitimidade da própria URSS.

Ao mesmo tempo, Gorbachov era pressionado por ambos os lados do Politburo. Os conservadores cada vez mais desagradados com as políticas de abertura, do outro lado uma ala mais radical que se une em torno da popularidade e do carisma de Boris Ieltsin, dando-lhe em troca um programa e uma estratégia para conquistar o poder. 

No meio dessas duas frentes havia outro problema em debate em Moscovo: Gorbachov queria apostar na gradual liberalização dos países satélites. 

Em 1989, a partir das eleições polacas de 4 de junho, Moscovo começa a perder o controlo da situação. Na Alemanha de Leste (RDA), começa um êxodo em massa para a Hungria, que, a 2 de maio, desmantelara a “cortina de ferro”, abrindo a fronteira com a Áustria. A 9 de outubro dá-se a queda do Muro de Berlim. E, com o fim da RDA e o processo de reunificação da Alemanha, os nacionalismos dentro das repúblicas soviéticas começam a ganhar força. 

Em meados de 1990, a Lituânia, a Estónia e a Letónia já tinham todas declarado unilateralmente a independência da União Soviética. Ainda houve uma tentativa de repressão dos estados Bálticos para agradar aos conservadores do Politburo, sendo depois redigido um tratado para uma nova união de Estados soberanos, não soviéticos e com os respetivos países a adotarem novas constituições. Mas um plano em que o PCUS perdia grande parte do seu poder sobre as repúblicas soviéticas não era tolerado pela linha dura.

Em dezembro de 1991, Yeltsin toma as rédeas da situação. Nas costas de Gorbachov, reúne-se com o Presidente ucraniano Leonid Kravchuk e com o homólogo bielorrusso Stanislav Shushkevich e assinam os Acordos de Belavezha, que decretam que a União Soviética já não existe “enquanto sujeito de direito internacional e realidade geopolítica” e anunciando a criação de uma comunidade dos três Estados eslavos, aberta a outras repúblicas — a Comunidade de Estados Independentes.

Mikhail Gorbatchov demite-se no dia 25 de dezembro, através da televisão, defendendo os seus sucessos políticos: “O sistema totalitário, que privou o país da possibilidade de ser desde há muito tempo feliz e próspero, foi liquidado. Foi feito um grande avanço na via das transformações democráticas. Os direitos do Homem são reconhecidos como princípio supremo. (…) Vivemos num mundo novo”, declarou.

Um dos gestos mais celebrados da sua liderança foi também aceitar ceder o poder sem qualquer forma de resistência violenta. Nos dois dias seguintes à sua demissão, Gorbachov reuniu-se com Yeltsin para acertar os pormenores da transição do poder.

Com o fim da União Soviética, a nova Rússia de Yeltsin primou pela liberalização de mercado, que levou ao disparar dos preços e a uma crise económica que deixou o país de rastos. Saído do poder aos 60 anos, o antigo Presidente refugiou-se longe dos holofotes. Em 1996, arriscou uma última tentativa de concorrer à presidência contra Yeltsin, mas foi arrasado, obtendo uns meros 0,5% dos votos. 

Na reforma, haveria de dedicar-se ao trabalho na sua fundação. Face ao caos do período final de Yeltsin, viu com bons olhos a chegada de Putin, que considerava alguém capaz de repor a ordem e trazer a estabilidade. Porém, segundo William Taubman, “foi-se tornando cada vez crítico de Putin”, e Putin, naturalmente, não gostou.

O atual Presidente russo, por sua vez, culpava Gorbachov pela queda da União Soviética, um acontecimento que já rotulou como “a maior catástrofe geopolítica do século XX”. No final da vida – viúvo, com o rosto inchado, afligido pela diabetes e hipertensão – Gorbachov tinha de ser constantemente vigiado e protegido por guarda-costas, devido ao risco de atentado. “Não está em prisão domiciliária, mas é ignorado pelo regime”, rematava Taubman.

Elogiado por muitos, criticado por um: as reações dos políticos portugueses

Após a notícia da morte do antigo líder da União Soviética, as reações em todo o mundo multiplicaram-se. Por cá há quem sublinhe a sua marca na construção da paz, mas há também quem responsabilize Gorbachov pela restauração do capitalismo na Rússia.

O Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, recordou-o como um homem que “soube abrir a Rússia ao concerto das Nações, ao diálogo e ao compromisso” e “uma figura marcante, que ficará na História da Rússia e do Mundo”.

Também o presidente da Assembleia da República, Augusto Santos Silva, destacou que Gorbachov descongelou a União Soviética, um gesto “absolutamente essencial para que a Europa pudesse ser reunificada em paz e em democracia”.

Já o Ministério dos Negócios Estrangeiros descreveu-o como “um fazedor de pontes que tanto contribuiu para uma Europa livre”, considerando que “a morte de Gorbachov representa a perda de uma das grandes personalidades do século XX”.

Para o presidente do PSD, Gorbachov “derrubou muros, construiu paz e abriu a liberdade a milhões de pessoas”, acreditando que “com ele não tínhamos hoje guerra na Ucrânia”.

“A História reserva-lhe uma página de honra. O mundo, como nós, deve-lhe respeito e gratidão”, escreveu Luís Montenegro numa mensagem publicada no Twitter.

“Foi sem dúvida umas das maiores personalidades do século XX e a sua ação teve um impacto muito para além da então União Soviética, da Rússia e da Europa. Teve um impacto decisivo em todo o mundo”, referiu ex-primeiro-ministro e antigo presidente da Comissão Europeia Durão Barroso.

Pelo PAN, Inês Sousa Real destacou o “papel dialogante” do antigo líder da União Soviética. 

“Num momento como o que vivemos atualmente, com a invasão da Rússia à Ucrânia, precisamos de figuras que pugnem, de facto, pelo diálogo, que pugnem pela pacificação do povos e pelo respeito da autonomia”, declarou a porta-voz do partido.

Em sentido inverso, da parte do PCP, não há qualquer elogio a fazer a Gorbachov nem ao legado que deixou como último presidente da União Soviética. O partido descreve-o como “um dos principais responsáveis pela destruição da União Soviética”.

Para os comunistas, Gorbachov é o responsável por restaurar o capitalismo na Rússia, “quando o que se impunha era o aperfeiçoamento do socialismo”. E vão mais longe, acusando-o de ter ajudado a “abrir caminho à contra-ofensiva do imperialismo”.

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