Stella Morra. Deus não se cansa

Stella Morra. Deus não se cansa


Socióloga e teóloga italiana, Professora na Pontifícia Universidade Gregoriana, Stella Morra, em “Deus não se cansa” (Editorial A.O.), observa os perigos da individualização radical da vivência da fé e da perda da comunidade como lugar teológico; historia diferentes paradigmas pelos quais a Igreja Católica passou e identifica o que já não “funciona”: reclama o relato,…


1.Se a forma não é determinante, então tudo remete para a interioridade, o coração, a espiritualidade; a pertinência comunitária deixa de ser importante e de se oferecer como lugar teológico (a individualização radical da forma de fé é um dos principais problemas, ou grandes perigos, da nossa época, pp.34-35). Se o passado é mitificado, tudo já foi dito e de uma vez para sempre, toda a história seguinte é história da decadência; a história pouco ou nada conta, pois. E, no entanto, uma comunidade religiosa, uma paróquia, fazem as coisas mais assim, ou mais de outro modo – e a maneira como realizam muito indicia de como (as pessoas que a(s) integra(m)) pensam e procuram tornar Deus presente. Muito embora as origens possam apresentar-se como referência para sopesar do que deve permanecer e do que deve mudar, a verdade é que há um cristianismo por encarnar aqui e agora, com os desafios deste tempo concreto. Todo o tempo é favorável a essa encarnação. O tempo é este.

2.A misericórdia é apresentada por Francisco como a forma de fé que a Igreja deve adquirir (misericórdia, pois, não tanto, neste contexto, remetida para uma dimensão estritamente individual, mas como forma de fé da Igreja). Lugar de visibilidade da experiência cristã, do seu ser visível. Categoria a partir da qual se organizam todos os demais conceitos. Com Tomás de Aquino (1225-1274), tivéramos a ratio, a razão, a lógica aristotélica como forma, moldura, ideia-geratriz – e durou 800 anos. Mas agora está em crise: "o conjunto constituído pelo eixo portador da ortodoxia e ortopráxis, dirigido pela categoria de ratio (e de natureza), segundo o princípio da autoridade, deu uma forma de conjunto à fé cristã que dominou durante quase todo o segundo milénio", p.81). Com o Concílio Vaticano II, a forma foi "história da salvação". Os finais do séc.XIX, início do séc.XX, em colocando a tónica nas ideias de mudança, movimento, processo (o progresso, a dinâmica que tudo permeava, nomeadamente o núcleo científico que justamente de aí vivia, se alimentava), colocava a Igreja perante o desafio de não rejeitar a história; a ideia segundo a qual a verdade, o melhor, estão diante de nós, não acima nem a montante – face a isto, o Cristianismo tinha a ideia de que o melhor está no início, dito de uma vez para sempre (contrário à ideia de progresso); uma espécie de idade de ouro, a do início dos tempos, a dos primeiros cristãos.

3.Nas comunidades eclesiais católicas, no diagnóstico de Stella Mora, nos últimos séculos, transmitiu-se mais a doutrina do que o relato (p.98); preferiram-se os princípios às histórias. Sendo que aqueles não abarcam nem substituem, não são subsumíveis a estas. O catecismo primou sobre a Bíblia – como medo, nomeadamente, da má interpretação desta. As histórias não têm conteúdos que captar; elas são, na sua forma, autorrevelação. A reivindicação da narrativa, de um mundo que para além dela remete, sem a estreiteza de uma definição, que na sua minúcia e laboratório, tudo já teria captado, por contraposição ao doutrinário, fica, uma vez mais, sublinhada (em uma tendência que parece fazer o seu caminho). Ainda que, registe-se também, a teóloga italiana reafirme a pertinência e necessidade, simultâneas, de relato e exatidão, entendendo, em todo o caso, alertar para a negligência a que havia sido votada a narrativa (na transmissão da fé, na Igreja Católica). A forma é revelação e não ocasião para conhecer a revelação (p.110): "As superabundâncias simbólicas vivem de figuras. Funcionam como os bons exemplos com que se pode ilustrar uma explicação. Os exemplos não se limitam a tornar visível e compreensível um conceito, mas abrem para algo de maior, porque chamam à berlinda uma situação vital. Tomemos o termo «relação». Se analisarmos o conceito, poderemos discutir até ao infinito sobre a maior exactidão da definição (…) Se damos exemplos sobre o que é que se «entende» – não apenas sobre que coisa «é» – uma relação, desencadeia-se uma série de mecanismos entre aquele que dá o exemplo e aquele que escuta, que, por sua vez, relê um mundo muito maior (…) É claro que esta lógica paga um preço à exactidão, mas no campo da prática pode ser extremamente fecunda. É o que acontece quando se sai de um curso académico com mais livros para ler e pensamentos para verificar do que com respostas a exibir. Ou quando uma classe inteira estuda o mesmo autor e, no fim, se descobre uma quantidade de elementos que procedem, de forma diferente, de leitor para leitor, gerando uma pluralidade de relações. Na divisão tradicional dos saberes e das artes, sobretudo depois do romantismo, a superabundância simbólica foi delegada – senão mesmo segregada – à poesia, ás artes figurativas e à música, ao passo que a exactidão era característica típica – senão mesmo exclusiva – das ciências matemáticas. A teologia achou-se em grande embaraço, porque – para sermos honestos – tinha necessidade de ambas. Habituados a privilegiar a exactidão conceptual, perante uma recuperação da superabundância simbólica encontramo-nos todos um pouco embaraçados, mesmo e sobretudo a Igreja. O mal-estar provém do deslocamento do centro de gravidade de quem explica para quem escuta: a lógica da superabundância simbólica, de facto, não tem como problema primário «transmitir exatamente aquilo que sou», mas, em vez disso, o de suscitar em quem escuta a superabundância de significado que a sua vida entrelaça com o património daquilo que é conhecido e trazido à palavra comum. Quem está na situação de interlocutor tem, até certo ponto, facilidade de se tornar parte do processo no momento em que toda a escrita do texto diminui a superabundância simbólica, que vive de muito mais" (pp.137-139). E do que carece, afinal, a ecclesia é, mais do que lugares onde se transmita a doutrina ou os preceitos, de zonas (lugares) onde se viva "segundo um tempo muito particular". O cristão não pode ser aquele que sabe todas as respostas. O cristianismo deve passar de ser uma verdade, para passar a ser uma vida (p.107).  O Evangelho de Jesus é semelhante a um sistema de relações, mais do que a um corpus doutrinário (pp.109/110). E, nesta medida, pergunta-se se, na vivência cristã, o cognitivo será o mais importante: "Se, de facto, o aspecto cognitivo é o que mais nos aproxima do Altíssimo (…) por que razão Deus partilhou uma história e não nos deu um livro de instruções?" (p.116). Ocasião para se citar Bonaccorso: "porque é que os relatos bíblicos são entremeados por uma quantidade incrível de acontecimentos físicos que parecem ter a intenção de surpreender os programas elaborados pela mente humana? Porquê a Encarnação? Nesta perspectiva, Deus é verdadeiramente outro, ou seja, não é um outro mundo relativamente ao da sensibilidade, mas é o indizível e inexprimível que se confia às linguagens simbólicas da sensibilidade. Sobre este ponto, um contributo decisivo da complexidade à teologia vem da «emergência»". Em âmbito de relação (das relações), a graça: "podemos encontrar-nos em situações – um casal, o nascimento de um filho, um enamoramento – em que, pelo facto de sermos provocados pela necessidade de uma pessoa a quem queremos bem, nos tornamos capazes de fazer coisas que não supúnhamos minimamente poder realizar. É como se o outro chamasse à vida uma parte de que mim que sou eu mas que, simultaneamente, não me posso dar sozinho.  A teologia clássica chamava «graça» a toda esta dinâmica extremamente real mas dificilmente explicável com a pura lógica da causalidade. Isto é, existe na teologia um território intermédio relativamente à conceptualidade e à pura causalidade: é o reino da graça, que resistiu a toda a classificação e conceptualização. Esta superabundância é denominada, na epistemologia da complexidade, «emergência». É estudada em física, na dinâmica das relações humanas e, com termos análogos, em teologia: uma relação não coincide com a soma de uma série de atos, mas é muito mais." (p.118).

4.A também socióloga e professora na Pontifícia Universidade Gregoriana, nota, rigorosamente, aqueles interstícios em que o secularismo se dá a ver em toda a sua potência, ali onde se entende que há (haja) âmbitos de vida não permeáveis por uma vivência cristã, como se uma razão/sensibilidade/afectividade crentes não fossem, como seria (é) de esperar que sucedesse (suceda), concretizadas/vividas, em transdisciplinaridade, em cada contexto/atividade/profissão particular (vivência cristã sem deixar de reconhecer e respeitar as respectivas leges artis), criando-se como que realidades estanques – a da vida, de uma banda, e a da fé, de outra, ou como se apenas certas ocupações fossem (sejam) compatíveis com essa mesma espiritualidade, acabando-se, em modos mais extremados de leitura existencial, de abandonar o século ou, então, de entender que uma parte da vida é incompatível com o viver a fé – a carecer de uma costura em boa medida por empreender (mas note-se, já, e de qualquer modo, em sentido mais esperançoso quanto ao despertar desta consciência, como em âmbito económico se vem tecendo uma rede em torno da ‘Economia de Francisco’, isto é, do compromisso de um conjunto de economistas, políticos, decisores de procurarem elaborar sobre e colocar em prática uma economia menos excludente, sem descartados, mais amiga do humano e dos mais frágeis, ou do conjunto de católicos que, a partir de uma motivação crente, se vêem envolvendo na defesa da Terra, “casa comum” da humanidade ou, ainda, no voluntariado e serviço aos refugiados): "um exemplo sintomático da crise em que nos encontramos é detetável numa narrativa comum a muitas experiências cristãs contemporâneas: a do conflito entre o tempo para rezar e o tempo para cuidar da vida. Na medida em que o segundo parece tirar tempo ao primeiro, a solução mais difundida é um exercício de ascese: levar a vida quotidiana como se fosse uma oração. O problema é que, para a sensibilidade comum, algumas ocupações «gritam» contra esta solução, ao passo que outras parecem naturalmente compatíveis. Não foi um acaso, por exemplo, que, no imediato pós-concílio, a maior parte dos leigos «comprometidos» se tenham dedicado a missões de cura, tornando-se professores, médicos ou assistentes sociais. Estiveram menos presentes nos campos da economia ou do serviço militar, ou naquelas ocupações que não aparecem primariamente como formas de uma vida cristãmente visível e praticável. Além disso, aqueles foram progressivamente devorados pelos critérios de acção não propriamente cristãos, também devido ao facto de as comunidades eclesiais se terem raramente apetrechado para apoiar os seus membros que habitavam os lugares mais arriscados, como os da economia e do poder em geral. A raiz deste mal-estar que, por um lado, induz à fuga mundi – porém, só como «fuga» e não como busca de Deus – e, por outro, à consideração de que talvez exista uma parte da vida incompatível com a «espiritualidade» (…) está precisamente nalguns elementos da forma gregoriana. Dito de maneira mais brusca, falta-nos ainda uma «interface» adequada com o outro lado da lógica subentendida na Gaudium et Spes.  O concílio afirmou, de facto, que a Igreja não é um mundo à parte e que os cristãos habitam cidades em que as regras não são estabelecidas só por si. A passagem de uma pertença à outra – quando a mudança é interpretada deste modo – corre, porém, o risco de ser bastante funesta, porque se «somos como todos os outros», que é que nos distingue, enquanto cristãos? Se a diferença é apenas algum elemento de ortopráxis – a participação na eucaristia, um compromisso pessoal na paróquia, alguma argúcia moral -, é evidentemente louvável no plano pessoal, mas arrisca-se a dar por comprovado que uma vida ordinária segundo o Espírito é hoje impossível. (…) Será de qualquer modo decisivo voltar a considerar a vida segundo o Espírito como um critério e não como um conteúdo. Não é preciso ensinar que devemos rezar mais, mas é necessário construir uma forma de Cristianismo que seja compatível com a vida, não exilada dela" (pp.91-93).

5.Se, em anos recentes, Tomás Halík tem chamado a atenção para o conceito de criação como significando, do ponto de vista teológico, o que foi criado, o que difere de criador, o que tem o carácter de criatura – “criação como o conjunto da realidade, de tudo o que não é Deus: as pessoas, os animais, o universo material, as obras musicais e tudo o resto em que podemos pensar. Nós somos criação. O importante para a fé e a Teologia é o facto de sermos criação, ou seja, de termos sido criados; como, quando e qual foi a «causa física» do Universo – isso são questões para a Física, que nada têm a ver com a fé ou com a Teologia (…) Essencialmente, aquilo que a Teologia nos diz com os seus ensinamentos acerca da criação é que nós não somos Deus, mas que, quer o entendamos quer não, todos nós – crentes, ateus, mosquitos e o planeta Saturno – estamos em relação com o mistério a que chamamos Deus. Este ensinamento é de enorme importância porque nos liga moralmente a uma atitude específica de respeito, humildade e responsabilidade; contudo, não tem qualquer importância e relevância para aqueles que procuram respostas sobre quando e como o Universo começou a existir, ou sobre os aspectos biológicos da evolução, etc. Quando os cristãos confessam a sua fé mediante as palavras «Creio em Deus…criador do Céu e da Terra» não estão a dizer que pensam que «foi tudo criado ao princípio, nos bastidores, por um grande tio invisível e fantástico» – tais especulações não passam de um «assunto privado» de cada um, sendo completamente irrelevantes do ponto de vista da fé -, mas colocam-se, assim, numa atitude de respeito frente ao mundo. Afirmam que o mundo é um dom que lhes foi confiado” (A noite do confessor, pp.123-125) -, sendo diversa a perspectiva do físico sobre o mesmo problema – este procura o momento e o curso do «início do Universo» -, Stella Morra sugere um posicionamento próximo a este quando se refere a causalidade, mas interligando-o com aquele ‘excesso do dom’, gratuitidade, não merecido com que somos positivamente cumulados ao longo da vida e como esse acolhimento, por uns quantos, implica-os em reverência: “hoje, a certeza de que Deus é a causa do mundo não conduz ninguém à fé. A nossa experiência de fé move-se a partir de uma outra intuição originária: acreditamos porque experimentámos a misericórdia. Todo o crente é tal porque, num momento da sua vida, num lugar e num tempo precisos, intuiu e experimentou uma bênção, em geral, uma experiência de misericórdia. A raiz da fé não tem nada a ver com a lógica da causalidade, mas pelo contrário é, muitas vezes, uma misericórdia sem causa, e é exatamente nisso que está o seu carácter explosivo, a estupefação" (p.124) (nota: já agora, não deixe de se fazer menção, neste contexto, a uma perspectiva diversa desta, e embora não situada ou não vinda do campo da teologia, de um autor como Stephen C.Meyer que, no seu muito recente “O regresso da hipótese de Deus” (Edições 70, 2022) a partir das origens físicas do mundo, do modo e forma como este surgiu, com uma série, muito pormenorizada, de dados científicos, bem como de expressões e conclusões de alguns dos melhores cientistas das últimas décadas, vê nesse conjunto de elementos e coincidências a remissão para um Deus “muito provável”).

Finalmente, e sem dualismos antropológicos, Stella Morra expõe o modo como se abeira, teologicamente, do problema de um além-mundo, da ressurreição, da possibilidade de vida pós-mortem: “no plano teológico, perfila-se a interessante perspectiva segundo a qual a vida humana se abre a situações novas e, enfim, à sua consumação final, não porque está radicada numa natureza extrafísica, mas porque avança num caminho histórico em direcção a complexidades irredutíveis aos estados precedentes. Se, graças à sua complexidade (relativamente ao resto do universo conhecido), a biosfera tende a contrapor-se à destruição e se, graças à sua maior complexidade, o corpo humano leva àquelas elaborações mentais em que ainda é mais marcado o esforço de se emancipar da morte, pode-se postular que, se por acaso houver uma vida para lá da morte, ela deve ser entendida como um nível ainda mais complexo do corpo: um corpo ressurgido, um corpo espiritual. A emergência e o consequente monismo não reducionista não podem, por certo, dar informações sobre uma eventual vida depois da morte, mas fornecem um modelo segundo o qual a fé numa vida depois da morte deve ser considerada não tanto como imortalidade de uma realidade incorpórea, mas como complexidade de uma realidade corpórea" (Bonaccorso, citado a págs.121).