Sá Pinto. “Assisti à História em directo!”

Sá Pinto. “Assisti à História em directo!”


Ao fim de cerca de 40 anos, o Estádio Azadi, em Teerão, recebeu 500 mulheres para assistirem a um jogo de homens – Esteghlal-Mes Kerman. O treinador do Esteghlal é português.


História. Na verdade é disso que se trata quando falamos dos acontecimentos recentes que sucederam no futebol do Irão.

Na terceira jornada do campeonato, no Estádio Azadi, o maior do país, com capacidade para 100 mil espetadores e que já teve lugar para 120 mil – inaugurado em 1973 para os Jogos Asiáticos do ano seguinte, ainda com o xá Mohammad Reza Pahlavi no poder e, por isso, apelidado de Estádio Aryamehr – apelido da dinastia vigente e que significa ‘A Luz dos Arianos’ – um português assistiu, num local de honra, o banco da equipa da casa a uma espécie de magia da boa vontade: pela primeira vez, ao fim de cerca de quarenta anos, as autoridades iranianas (que têm estado há muito tempo a ser pressionadas pela FIFA), autorizaram um grupo de mulheres a assistirem a um jogo do campeonato masculino.

O jogo escolhido foi o Esteghlal-Mes Kerman, que terminou com a vitória dos primeiros por 1-0, golo apontado por Arthur Yamga, aoss 75 minutos. Ricardo Sá Pinto é atual treinador do Esteghlal Football Club, um dos mais populares clubes do país, campeão em título, com uma massa de adeptos impressionante o que só pode admirar quem não conhece o gigantismo de Teerão, uma cidade que se estende até ao sopé da cadeia montanhosa de Alborz num casario que se perde por entre a neblina permanente de uma poluição terrível.  

Já tive a possibilidade de assistir à forma fanática como o Esteghlal (em farsi, a palavra significa Independência) é recebido no seu estádio (numa tarde de nevão intenso), ao ambiente que se vive em redor da equipa, e não deixa de ser curioso que Sá Pinto, um homem que vive com as emoções a saírem-lhe pelos poros a cada momento, por muito que isso lhe tenha criado antipatias (a minha não certamente, que ainda o vejo, menino, aos 24 anos, marcar mesmo à minha frente – a bancada de imprensa de Hillsborough, em Sheffield, estava situada atrás de uma das balizas – a fazer o primeiro golo de Portugal, à Dinamarca, no Euro-96, e sou testemunha de como engoliu com nobreza alguns dos erros que cometeu e pelos quais pagou os custos), tenha sido o português escolhido pelo destino para estar naquele lugar, àquela hora. O destino é mesmo assim. Costuma acertar nas escolhas.

Preparado. Não foi, obviamente, um caso espontâneo. E é o próprio Ricardo Sá Pinto que me conta o significado que esse jogo acabou para ter não apenas para o futebol mundial, mas também para si, pessoalmente: “Amigo. Foi história! Era algo de que se falava há muito tempo. Desde que cheguei ao Irão o assunto foi sendo debatido. Não sabíamos se, de facto, as mulheres iriam regressar aos estádios e ficámos a sabê-lo quatro ou cinco dias antes, ou talvez nem tanto”.

A última vez que estive em Teerão, em 2018, era ainda Carlos Queiroz o selecionador, a matéria vinha à baila muitas vezes. Até porque o Irão tinha uma seleção feminina de qualidade e sempre apoiada de perto por mulheres prontas para encherem os estádios nos quais os jogos se desenrolavam. Podemos dizer que se tratava de uma questão de tempo, mas a frase é demasiado banal, até mesmo simplória num assunto deste calibre. Não falamos de um país qualquer, Falamos da antiga Pérsia, um dos berços da Humanidade e da cultura Indo-Europeia. Não, esqueçam!, no Irão nada se faz por acaso, ou à toa…

Deixemos que fale a testemunha direta do que aconteceu no Azadi: “Disponibilizámos 500 lugares. Foi, como deves calcular, uma experiência única. Aquela alegria de senhoras, miúdas, toda uma mistura de idades, a darem-nos apoio, a gritarem, a cantarem, a tirarem fotografias, enfim… Foi uma alegria muito, muito grande, a daquele momento. Sentimos mesmo que era algo de muito importante para elas e nós, treinadores e jogadores, restante staff, colaborámos nessa alegria”.

Em seguida descreve o desenrolar dos acontecimentos antes do jogo ter início: “Fomos ter com elas às bancadas, saudá-las, posar com elas para as câmaras, tudo num ambiente caloroso e bonito. Foi verdadeiramente especial para todos nós, que lá estivemos, mas para toda a gente que, neste país, sentiu o valor do momento”. 

Ver-se-á como é daqui para a frente. Amanhã, terça-feira, o Esteghlal desloca-se ao Estádio Shahid Mahdavi, em Bushehr, uma cidade no Sul, já junto ao Golfo Pérsico, para defrontar o Naft Massid, sem nenhuma manifestação do género prevista. Depois regressa a casa para, na quinta jornada, recebendo o Paykan.

Sá Pinto fala por si: “Não sei como vai ser no futuro, mas sinto que foi uma porta que se abriu para que as mulheres possam vir mais vezes ao futebol, fazer parte dele, o que seria ótimo! Espero sinceramente que tenha sido um primeiro passo porque todos ficámos muito felizes com ele. E soubemos respeitá-lo e festejá-lo”. A pergunta está em aberto. Ficamos todos à espera da resposta. Que ninguém diga que o futebol, com senhoras nas bancadas, não fica mais bonito…