A agrura das circunstâncias negativas que já faz parte do quotidiano de muitas famílias portuguesas, entre realidades e expectativas futuras, pode não permitir aquilatar do impacto negativo do verão em muitos protagonistas públicos, pelo que dizem, pelo que fazem e pelo que não fazem, mas deviam. Do alto do desleixo noticioso que o verão permite a quem está de férias, vislumbram-se dislates sucessivos que evidenciam que o problema não é da circunstância, mas da estrutura, do senso e do arcaboiço dos empossados em funções públicas para o desempenho, com a anuência de quem escolhe e de quem tem responsabilidades no funcionamento das instituições.
Há muito que afirmamos que a governação e as instituições têm um problema estrutural de capacidade de concretização, de aproveitar as competências e os recursos para fazer. O próprio Governo apresenta vários sintomas de manifesta incapacidade para exercitar positivamente o poder da maioria absoluta, que determina um mandato sem desculpas. E, no entanto, as desculpas povoam o horizonte comunicativo do Governo. A pandemia, a guerra na Ucrânia, a seca extrema, os privados, os mercados, a inflação, o preço das matérias-primas, entre outras. Não há mal em explicar porque não se faz, até devia de ser uma exigência do escrutínio cívico normal a que estão sujeitos os titulares de cargos públicos, mas então que o princípio seja assumido na plenitude, nas ações e nas omissões.
Perante o evidente caos nas urgências do Serviço Nacional de Saúde, justa idolatria do labor da democracia portuguesa, a par de inúmeras disfunções no acesso a cuidados de saúde que empurraram as famílias portuguesas para um novo recorde de gastos em saúde durante o ano de 2021 – 6,8 mil milhões de euros, mais 906 milhões do que em 2020 -, como é possível que a titular da pasta de um projeto no poder há 7 anos atribua a opções da década de 80 a realidade atual? Esta gente não é fulminada politicamente pelo ridículo da incompetência reconhecida. Um governante existe para gerir e intervir sobre as realidades, não para estar a olhar para os passados pelo espelho retrovisor, por maior que seja o seu universo de responsabilidades. Sem capacidade para cumprir a doutrina de António Costa sobre a assunção das responsabilidades políticas – há um problema, o importante é resolver o problema -, Marta Temido já não está a fazer nada no Governo. Assume-se, de viva-voz, como parte do problema. Um governante que não quer, não sabe ou não pode transformar. E o exercício político é isso também, de pouco importará o que fez no verão passado, se no presente revela incapacidade para fazer o que se impõe. É a voragem da política, sem memória e sem justiça em relação à linha do tempo.
Verão é, infelizmente, sinónimo de risco de incêndio e de sucessivos sobressaltos de ignições criminosas que evidenciam o estado destratado do território e a capacidade de reação perante as ocorrências, num esforço, muitas vezes inglório, para salvaguardar os diversos patrimónios em causa. Com a época de risco em cursos, porque carga de água é que responsáveis políticos invocam a menor área ardida em função de alegadas médias ou expectativas de ignições, é para acicatar os incendiários? Ardeu menos do que a média ou do que se esperava, mas ardeu! No mínimo, é falta de senso, mas sempre uma total irresponsabilidade política, de resignação e desculpabilização em relação à expectativa, que é um padrão emergente. A luz vai aumentar, sem o mecanismo ibérico seria pior. O combustível vai aumentar, sem os descontos do ISP equivalente a uma descida da taxa do IVA dos 23% para os 13% seria pior. O gás vai aumentar, lá fora é pior. Em comunicação, num quadro em que existem variantes que não são controláveis ou que existem problemas de capacidade de concretização, é comum gerar uma expectativa negativa para que perante uma realidade mais favorável a perceção seja de conforto para os interlocutores, mas na governação de um país? É justo um registo estrutural do “podia ter sido pior”, quando existem competências e recursos para fazer mais e melhor, com transformação e organização?
É certo que temos diversas incertezas no presente e fatores que não são controláveis por Portugal de forma isolada, mas a capitulação na vontade de transformar a realidade para melhor é coisa que já foi posta na gaveta, com uma maioria absoluta? A transformação serve apenas para tentar concretizar velhas convicções, tentações e outras derivas mais comprometidas com o particular do que com o interesse geral, como acontece com a tutela do gabinete da Interpol e da Europol?
O verão parece ter feito mal a muita gente, no poder e na oposição, mas a grande questão é saber se foi só sol a mais na moleirinha ou se os danos são estruturais e perdurarão nas restantes estações do ano. Mais do que, como dizem os mais novos, lidar, o registo deve ser de transformar, de agir e de concretizar num tempo de grande exigência, em que os governantes devem cumprir mínimo de senso no que dizem e no que fazem.
Em breve, regressam as rotinas, as preocupações e a necessidade de responder ao quotidiano, dos filhos na escola, dos impactos da inflação, da escassez de recursos, da degradação das condições de vida e das incertezas nacionais e internacionais, com algumas garantias.
Muito do que chegou, veio para ficar uns tempos tanto maiores quanto o que se fizer em reação ou como afirmação de uma visão estratégica integrada para o país, além dos corredores de Lisboa e de interesses parciais.
Muito do que é politicamente expectável é de gritaria, agitação e ação como se vivêssemos um tempo de recursos ilimitados, quando nem executamos os que estão disponíveis.
Como sempre afirmámos o desafio é o da concretização, mas pressupõe um esforço sério de explicação das opções e do sentido das intervenções em reação às realidades e de transformação dos aspetos menos positivos, com humildade, senso, sentido de justiça e compromisso com o bem comum. Tudo o que seja reafirmar derivas de disparate deste verão é meio caminho andado para medrar, minar e implodir o potencial de uma maioria absoluta, com uma oposição revitalizada, um Presidente da República em rota de divergência e uma população em crescendo de insatisfação pelas dificuldades. A tolerância popular existe quando há algum dinheiro no bolsa, a falta dele implica uma significa redução da capacidade de aceitação do que não faz sentido. É tempo de concretizar e fazer bem, em relação ao quotidiano e ao futuro. Que o verão tenha sido defeito e não feitio.
NOTAS FINAIS
ANGOLA E A RIDÍCULA PRESSA DOS OBSERVADORES PORTUGUESES. Há muita espuma comunicacional das partes sobre as eleições em Angola, mas a inusitada pressa com que os três observadores certificaram a normalidade do ato eleitoral é ridícula e envergonha Portugal. Mesmo o frete, pode ter mínimos de dignidade, senso e verdade.
DESPERTÁMOS PARA AS PERDAS DE ÁGUA. Fazer pode ser o mais fácil. Depois é preciso manter e renovar. Há anos que os sistemas de abastecimento de água registam perdas assinaláveis, com ruturas e disfunções do sistema. É enterrado, não dá votos e não tem financiamento. Descobriu-se agora, é importante para a boa gestão da água.
Escreve à segunda-feira