Ao dia de hoje há gente que tem por profissão (remunerada) “ser famoso” e são famosos porque, autopoieticamente, são só isso. A chegada à profissão e o sucesso no exercício da mesma passa pela conquista e pela defesa da “fama”. Há toda uma indústria da fama, com dimensões televisiva, interneteira e até – em tempos digitais – revisteira. Em torno dos famosos gira uma percentagem do PIB, com publicidade assumida ou encapotada a produtos e serviços. Não há que proteger dos perigos da fama aqueles que neles mergulham de olhos abertos: volenti non fit injuria e esta gente quer o contrário da privacidade.
Descontados os actos voluntários quais são os contornos do direito à privacidade por parte das figuras públicas? Há um direito a conhecer o detalhe da vida privada das figuras públicas? Certamente existe nos casos em que seja do interesse da comunidade conhecer elementos da vida privada que possam pôr em causa directamente o bom desempenho de funções públicas, desde logo as que impliquem decisões sobre dinheiros públicos e as que afectem a esfera jurídica de indivíduos ou de pessoas colectivas. O direito a conhecer (e logo o direito a informar sobre o que se conhece) pode incluir elementos da vida privada de um decisor público. No limite há direito a informar sobre escolhas pessoais, normalmente protegidas pela reserva da vida privada, que estejam em contradição com as decisões públicas ou as posições públicas de uma determinada figura pública, em particular de um eleito para um cargo público. A jurisprudência anglo-saxónica (e o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem) constroem a solução para este conflito de direitos decidindo a favor da liberdade de informar com base na necessidade de proteger a confiança depositada pela comunidade num eleito cujas acções privadas estariam em contradição com os seus discurso e praxis públicos.
Esta abordagem pode ser geradora de equívocos bastando que se substituam as premissas do indivíduo (o discurso e a praxis publica) por aquilo que seja o consenso social sobre o que deve ser o comportamento da figura pública, sob condição de não existir contradição entre o comportamento público e o discurso público do decisor político. O julgamento político sobre os comportamentos dos decisores políticos é legítimo, qualquer que seja a sua base (política, religiosa, moral, clubística, estético-capilar,…) mas, fora dos casos de contradição entre o discurso e a praxis, não legitima a restrição da reserva da vida privada.
Por estes dias de canícula tivemos notícias de estranhos comportamentos no país mais feliz do mundo (os excessos geram excessos…). A dança nocturna, praticada em grupo, acompanhada de gestualidade excessiva, quando exercida por primeiras-ministras jovens seria indiciadora do consumo de drogas. A oposição e a polícia dos costumes rasgaram as vestes. A primeira-ministra em causa, recorrendo ao modus operandi dos famosos, anunciou publicamente a submissão a um teste de despistagem de consumo de drogas. Estando o direito a não realizar o dito teste na disponibilidade da titular esta é uma opção juridicamente legítima por mais detestáveis que sejam os condicionamentos impostos e as razões que a justificaram.
Tradicionalmente a saúde (ou a falta dela) da classe política é ocultada. Não obstante o Direito, desde logo os textos constitucionais, tenta regular Ces malades qui nous gouvernent (obra de Pierre Accoce e Pierre Rentchnick, cujo primeiro tomo foi publicado em 1977). [continua]
Escreve à sexta-feira, sem adopção das regras do acordo ortográfico de 1990