Crónica da cidade interrompida: o que aprendemos?


Se algo de novo se pode retirar, é “apenas” o agravamento das desigualdades entre quem pôde ficar em casa e todos aqueles que, por serem considerados essenciais, eram obrigados a sujeitar-se às rotinas de sempre.


Quantas vezes nos aconteceu que só quando perdemos algo nos demos conta da falta que afinal nos fazia? Até aí nem questionávamos o seu uso, nem refletíamos sobre a sua utilidade, quer se tratasse de objetos de uso diário quer de sistemas políticos. Habituámo-nos a encará-los como o dia que sempre nasce à hora prevista.

Não é difícil pensar na cidade nos mesmos moldes, quando agora a esvaziámos de sentido e ela nos esvaziou de parte da nossa vida. Em bom rigor, nos primeiros dias em que a cidade foi suspensa, a estranheza inicial até foi aligeirada pela experiência única que vivíamos onde os sons da natureza ocupavam o espaço vazio do até então comum bulício urbano.

A anestesia foi tamanha que nem nos apercebemos que nesse momento a cidade deixou de ser cidade. A redução da emissão dos Gases com Efeito de Estufa (GEE), a melhoria da qualidade do ar ou a diminuição drástica dos decibéis emitidos pelo burburinho urbano, fez acreditar que outra urbanidade era possível e necessária (“A pandemia “expôs fragilidades” das cidades que já não podem ser ignoradas”. Público, 18 de abril de 2021).

Invisível ficou o drama dos muitos milhares de trabalhadores que se aglomeravam nos deficientes sistemas de transporte público (“Uma viagem pelos transportes públicos com a distância social possível”. Público, 28 de abril de 2020); dos que continuaram a trabalhar em fábricas e unidades de distribuição de bens essenciais; dos que garantiam a segurança pública e privada; dos que asseguravam a manutenção e o funcionamento dos sistemas e equipamentos básicos urbanos; dos que zelavam pela limpeza privada e salubridade pública; ou ainda dos que se empenhavam na distribuição porta-a-porta de refeições e compras de supermercado, entre muitos outros insubstituíveis.

Não há aqui novidade nesta realidade e, se algo de novo se pode retirar, é “apenas” o agravamento das desigualdades entre quem pôde ficar em casa, protegido e a celebrar uma nova experiência, e todos aqueles que, por serem considerados essenciais, eram obrigados a sujeitar-se às rotinas de sempre, garantindo que nada faltava aos primeiros.

Estudos coordenados por investigadores do Instituto Superior Técnico, como o MetroGov3C – Governança na Área Metropolitana de Lisboa num contexto de conflito, competição e cooperação, ou o Periurban – Peri-urban áreas facing sustainability challenges: Scenario development in the Metropolitan Area of Lisbon, não deixaram de enfatizar a unidade, mas também a diversidade metropolitana em que as inexistentes relações entre as bolhas espaciais de cada grupo dificultam a compreensão das condições de vida mútuas, levando-os egoisticamente a focar-se só nas suas preocupações e ambições. Não é difícil perceber quem leva a melhor neste jogo de interesses.

O velho normal urbano e metropolitano teimava em continuar a manchar a ficção da renovada cidade. 

Com o encantamento de muitos com a cidade que se anunciava (“Está na hora!”. Público, 22 de Maio de 2020), as administrações locais viram caminho aberto para a experimentação, inédita e sem contraditório, na micromobilidade e no espaço público, com a multiplicação de ciclovias pop-up (se resultarem ou não forem contestadas ótimo, se não funcionarem eliminam-se ou refazem-se) e a generalização de espaços de esplanadas, canibalizando quase sempre o território dos peões.

O gradual metamorfismo urbano operado ao longo destes dois anos, foi deixando exposto o sonho de uma ressurreição da cidade, reencarnando, como se fosse possível, todas as utopias desenhadas por cada um dos vários grupos de interesses.

Muitos viram os primeiros sinais dessa metamorfose quando o sector imobiliário, primeiro, anunciou que áreas de escritórios estavam a ser descartadas pelo sucesso no regime de teletrabalho (“Teletrabalho: empresas repensam espaços, mas não abdicam dos escritórios”. Público, 17 de janeiro de 2022) e depois quando o mesmo setor teve de responder à procura de habitações maiores, com varanda e/ou logradouro, preferivelmente fora dos centros urbanos (“Vender ou arrendar casa em tempos de COVID-19”. Público, 5 de maio de 2020), na lógica de demonização da cidade (local de propagação de doenças e de comportamentos de risco) e de endeusamento dos valores do campo (o genuíno e o são).

Era real a ilusão de que um novo normal urbano seria possível (“Como se transformarão as nossas cidades e as nossas casas?”. Público, 20 de abril de 2020). Porém, como afirma Salman Rushdie em Os versículos Satânicos, “para se nascer de novo (…) é preciso primeiro morrer”. Olhando em redor percebemos bem como as notícias sobre a morte da cidade canónica eram claramente exageradas.

Um futuro urbano mais adequado aos desafios identificados nos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) das Nações Unidas fica em risco com a defesa de um novo urbanismo higienista, agora com a roupagem infalível de uma cidade menos compacta (prevenindo a propagação das epidemias) e ecologicamente responsável, mas que é contraditório nos seus próprios termos.

Jane Jacobs já não tinha deixado pedra sobre pedra na crítica às ideias funcionalistas e higienistas do movimento moderno, mas agora também esquecidos ficam os tais essenciais e invisíveis, bem como esquecido fica o trunfo maior das metrópoles: a sua capacidade de concentrar pessoas e ideias, a partir da qual foi moldada a civilização ocidental de que, mesmo com os seus defeitos, todos nos orgulhamos.

Instituto Superior Técnico – Universidade de Lisboa | CiTUA – Centro para a inovação em Território, Urbanismo e Arquitetura 

Crónica da cidade interrompida: o que aprendemos?


Se algo de novo se pode retirar, é “apenas” o agravamento das desigualdades entre quem pôde ficar em casa e todos aqueles que, por serem considerados essenciais, eram obrigados a sujeitar-se às rotinas de sempre.


Quantas vezes nos aconteceu que só quando perdemos algo nos demos conta da falta que afinal nos fazia? Até aí nem questionávamos o seu uso, nem refletíamos sobre a sua utilidade, quer se tratasse de objetos de uso diário quer de sistemas políticos. Habituámo-nos a encará-los como o dia que sempre nasce à hora prevista.

Não é difícil pensar na cidade nos mesmos moldes, quando agora a esvaziámos de sentido e ela nos esvaziou de parte da nossa vida. Em bom rigor, nos primeiros dias em que a cidade foi suspensa, a estranheza inicial até foi aligeirada pela experiência única que vivíamos onde os sons da natureza ocupavam o espaço vazio do até então comum bulício urbano.

A anestesia foi tamanha que nem nos apercebemos que nesse momento a cidade deixou de ser cidade. A redução da emissão dos Gases com Efeito de Estufa (GEE), a melhoria da qualidade do ar ou a diminuição drástica dos decibéis emitidos pelo burburinho urbano, fez acreditar que outra urbanidade era possível e necessária (“A pandemia “expôs fragilidades” das cidades que já não podem ser ignoradas”. Público, 18 de abril de 2021).

Invisível ficou o drama dos muitos milhares de trabalhadores que se aglomeravam nos deficientes sistemas de transporte público (“Uma viagem pelos transportes públicos com a distância social possível”. Público, 28 de abril de 2020); dos que continuaram a trabalhar em fábricas e unidades de distribuição de bens essenciais; dos que garantiam a segurança pública e privada; dos que asseguravam a manutenção e o funcionamento dos sistemas e equipamentos básicos urbanos; dos que zelavam pela limpeza privada e salubridade pública; ou ainda dos que se empenhavam na distribuição porta-a-porta de refeições e compras de supermercado, entre muitos outros insubstituíveis.

Não há aqui novidade nesta realidade e, se algo de novo se pode retirar, é “apenas” o agravamento das desigualdades entre quem pôde ficar em casa, protegido e a celebrar uma nova experiência, e todos aqueles que, por serem considerados essenciais, eram obrigados a sujeitar-se às rotinas de sempre, garantindo que nada faltava aos primeiros.

Estudos coordenados por investigadores do Instituto Superior Técnico, como o MetroGov3C – Governança na Área Metropolitana de Lisboa num contexto de conflito, competição e cooperação, ou o Periurban – Peri-urban áreas facing sustainability challenges: Scenario development in the Metropolitan Area of Lisbon, não deixaram de enfatizar a unidade, mas também a diversidade metropolitana em que as inexistentes relações entre as bolhas espaciais de cada grupo dificultam a compreensão das condições de vida mútuas, levando-os egoisticamente a focar-se só nas suas preocupações e ambições. Não é difícil perceber quem leva a melhor neste jogo de interesses.

O velho normal urbano e metropolitano teimava em continuar a manchar a ficção da renovada cidade. 

Com o encantamento de muitos com a cidade que se anunciava (“Está na hora!”. Público, 22 de Maio de 2020), as administrações locais viram caminho aberto para a experimentação, inédita e sem contraditório, na micromobilidade e no espaço público, com a multiplicação de ciclovias pop-up (se resultarem ou não forem contestadas ótimo, se não funcionarem eliminam-se ou refazem-se) e a generalização de espaços de esplanadas, canibalizando quase sempre o território dos peões.

O gradual metamorfismo urbano operado ao longo destes dois anos, foi deixando exposto o sonho de uma ressurreição da cidade, reencarnando, como se fosse possível, todas as utopias desenhadas por cada um dos vários grupos de interesses.

Muitos viram os primeiros sinais dessa metamorfose quando o sector imobiliário, primeiro, anunciou que áreas de escritórios estavam a ser descartadas pelo sucesso no regime de teletrabalho (“Teletrabalho: empresas repensam espaços, mas não abdicam dos escritórios”. Público, 17 de janeiro de 2022) e depois quando o mesmo setor teve de responder à procura de habitações maiores, com varanda e/ou logradouro, preferivelmente fora dos centros urbanos (“Vender ou arrendar casa em tempos de COVID-19”. Público, 5 de maio de 2020), na lógica de demonização da cidade (local de propagação de doenças e de comportamentos de risco) e de endeusamento dos valores do campo (o genuíno e o são).

Era real a ilusão de que um novo normal urbano seria possível (“Como se transformarão as nossas cidades e as nossas casas?”. Público, 20 de abril de 2020). Porém, como afirma Salman Rushdie em Os versículos Satânicos, “para se nascer de novo (…) é preciso primeiro morrer”. Olhando em redor percebemos bem como as notícias sobre a morte da cidade canónica eram claramente exageradas.

Um futuro urbano mais adequado aos desafios identificados nos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) das Nações Unidas fica em risco com a defesa de um novo urbanismo higienista, agora com a roupagem infalível de uma cidade menos compacta (prevenindo a propagação das epidemias) e ecologicamente responsável, mas que é contraditório nos seus próprios termos.

Jane Jacobs já não tinha deixado pedra sobre pedra na crítica às ideias funcionalistas e higienistas do movimento moderno, mas agora também esquecidos ficam os tais essenciais e invisíveis, bem como esquecido fica o trunfo maior das metrópoles: a sua capacidade de concentrar pessoas e ideias, a partir da qual foi moldada a civilização ocidental de que, mesmo com os seus defeitos, todos nos orgulhamos.

Instituto Superior Técnico – Universidade de Lisboa | CiTUA – Centro para a inovação em Território, Urbanismo e Arquitetura