O ideal era acabar com o sono, os produtores-consumidores que somos passarem a dar vazão ao, ou maximizar o, actual mercado aberto 24 horas, 7 dias por semana (as “temporalidades 24/7”). Dito de outra forma, o sono, com o qual não se acaba finalmente – mesmo que se consiga, como se tem conseguido, erodir; hoje, o americano médio, adulto, dorme cerca de seis horas e meia por noite, por contraponto às oito horas da geração anterior e das dez horas dormidas no início do século XX –, é como que uma utopia (natural, inscrita no humano), relativamente concretizada (um lugar fundamental, até pelos caminhos que o sonho aponta, ou sugere; no sonho, diz Crary, a deriva interpretativa que o reduz a uma esfera exclusivamente privada, e ainda animalesca ou infantil, oblitera, reduz, ignora o quanto nele há de dimensão pública-colectiva: “a verdade comummente aceite de que qualquer sonho é a expressão confusa e dissimulada de um desejo reprimido é uma redução colossal da multiplicidade de experiências oníricas. A prontidão com que boa parte da cultura ocidental aceita as grandes linhas de tal tese só prova até onde a primazia do desejo e a carência do indivíduo haviam penetrado e moldado a maneira como o burguês se entendia a si mesmo em começos do século XX”, contra a possibilidade, sistemicamente desejada, do indivíduo insone, trabalhador e consumidor compulsivo. O sono é uma impertinência (”o sono é uma afirmação irracional e intolerável de que pode haver limites à compatibilidade dos seres vivos com as forças alegadamente irresistíveis da modernização”), uma desfeita (”o escândalo do sono é a incorporação na nossa vida das oscilações rítmicas de luz solar e escuridão, actividade e repouso, trabalho e recuperação, que noutros aspectos foram erradicadas ou neutralizadas”), uma impugnação da mercantilização de tudo (do tempo às pessoas, das relações à anulação das regularidades cósmicas), pela natureza humana, que reverbera, ainda, contra os que pretendem a anulação absoluta do tempo, a consumação da sua total horizontalidade (“progressivamente, 24/7 vai minando as distinções entre dia e noite, entre luz e trevas e entre acção e repouso. É uma zona de insensibilidade, de amnésia, do que impede a possibilidade de experiência”), a sua perfeita imanência (”um mundo 24/7 é desencantado na sua erradicação de sombras e obscuridade e de temporalidades alternadas. É um mundo igual a si mesmo, um mundo com o mais superficial dos passados, por isso à partida sem espectros. Mas a homogeneidade do presente é consequência do resplendor fraudulento que se assume estender-se a toda a parte e esvaziar qualquer mistério ou incognoscibilidade. Um mundo 24/7 produz uma equivalência aparente entre o que está disponível, acessível ou utilizável no imediato, e o que existe. O espectral é, em certa medida, a intrusão ou ruptura do presente por algo fora de tempo e pelos fantasmas do que a modernidade não eliminou, das vítimas que não serão esquecidas, da emancipação por cumprir. As rotinas do 24/7 podem neutralizar ou absorver muitas experiências perturbadoras de retorno que poderiam comprometer a substancialidade e identidade do presente e a sua aparente auto-suficiência”), a derrisão do humano sem espaço para a efabulação e o imaginário que esbocem outros caminhos, de encontro às coordenadas do cosmos com dia e noite, dormir e despertar, possibilidade de contemplação das estrelas e do luar, de tudo não se dar no idêntico, na mesmidade, de encontro ao mínimo soluçar do que fosse algo a que se pudesse chamar singularidade.
O minar o sono, os néons, as cores intensas e berrantes, e os sons por todo o lado, a cidade conglomerada e sem o close (em qualquer entrada), não deixa de permitir que o sono, que grita por nós, seja objecto de compra (os químicos com que se adormece, abastecidos na farmácia; “o golpe do sono é inseparável do desmantelamento em curso das protecções sociais noutras esferas. Tal como em todo o planeta se tem arrasado de modo programático o acesso universal de água potável, pela poluição e pela privatização, com a consequente monetização da água engarrafada, não é difícil descortinar no sono uma construção paralela da escassez. Todas estas incursões criam as condições insones nas quais o sono precisa de ser comprado (…) mesmo que se pague por um estado quimicamente alterado que só se aproxima do verdadeiro sono”).
A antecipação pela arte A anulação das temporalidades cíclicas, dos tempos solares e lunares, o cancelamento do sono é antecipado, já, pode dizer-se, pela arte, em um quadro de Joseph Wright (Wright de Derby), Arkwright’s Cotton Mills by Night (Fábricas de Arkwright à Noite), se bem que este deva ser compreendido sem o literalismo de um concreto retrato (da fábrica que, em realidade, não foi, propriamente, o espaço em que se deu aquela homogeneização do tempo), antes como imagem de antecipação que outros âmbitos mercantis (que não a fábrica) iriam franquear (a este idêntico): “numa conhecidíssima obra de arte, encontram-se algumas das primeiras antecipações significativas das temporalidades 24/7 (…) Tem sido abundantemente reproduzida em livros sobre a história da industrialização para ilustrar – muitas vezes de forma enganadora – o impacto da produção fabril na Inglaterra rural (impacto esse que não foi muito sentido durante décadas). A estranheza da pintura advém em parte da implantação subtil, mas nitidamente anti-pitoresca de edifícios de tijolo de seis e sete andares no que, fora isso, é uma zona rural reflorestada e por domar.
Como constataram os historiadores, trata-se de estruturas inéditas na arquitectura inglesa. Mas o que desconcerta é a elaboração de uma cena nocturna onde a luz de uma lua cheia que ilumina um céu repleto de nuvens coexiste com os pontinhos das janelas alumiadas por lamparinas nas fábricas de algodão. A iluminação artificial das fábricas anuncia a implantação racionalizada de uma relação abstracta entre tempo e trabalho, independente das temporalidades cíclicas dos movimentos lunares e solares. A novidade nas fábricas de Arkwright não é um determinante mecânico, como a máquina vapor (as fábricas eram alimentadas somente por água ou pela recém-inventadas máquinas de fiar). Trata-se, pelo contrário, de uma reconceptualização radical da relação entre trabalho e tempo: a ideia de operações produtivas que não param, de trabalho que gera lucro e que pode funcionar 24/7. No lugar concreto que a pintura mostra, preparava-se para trabalhar nas máquinas mão-de-obra humana, que integra crianças, em turnos contínuos de doze horas. (…) A fábrica moderna emergia como espaço autónomo onde a organização laboral podia ser desligada da família, da comunidade, do meio ou de quaisquer interdependências ou associações tradicionais. (…). É evidente que, nos cem anos seguintes, já em pleno século XIX, a realidade de fábricas em funcionamento vinte e quatro horas por dia era a excepção, não a regra. Foi noutras esferas da modernização económica que se disseminaram organizações ininterruptas e desnaturalizadas do tempo. (…) A imagem de Wright de Derby é uma revelação precoce da concomitância e contiguidade de sistemas que são em última análise incompatíveis. A produção em fábrica, por exemplo, não extinguiu de supetão os antigos ritmos e laços sociais dos meios agrários. Houve pelo contrário um largo período de coexistência durante o qual a vida rural foi progressivamente desmantelada ou integrada em novos processos”.
Apesar de todas as promessas tecnológicas, os drones, os gadjets de última geração ao serviço da indústria militar, tem-se hoje por certo que a presença humana no terreno não conhece, em determinadas circunstâncias, qualquer ersatz. De aí que alcançar o soldado cognitivamente no seu máximo, sem desfalecimentos ou entorpecimentos momentâneos, todos os dias, seja desiderato.
E, obtido este, conseguida a fórmula a propósito ou em âmbito militar, a possibilidade, já se vê, de estender a toda a sociedade, essa performance inabalável 24/7 para todo o obediente trabalhador-consumidor. Podia perguntar-se: e se conseguíssemos estar, sem perdas cognitivas nem fadiga de espécie alguma, 24 sobre 24 horas acordados – já agora, o ensaio lembra como as temporalidades não foram, em todos os tempos e lugares de semanas de 7 dias, chegando, estas, a 10 dias em tempos pretéritos –, vendo todos os filmes, ouvindo todas as canções, lendo todos os livros, apreciando todos os desportos, tendo todas as conversas, lobrigando todas as descobertas científicas, visitando todas as galerias de arte, numa palavra, “aproveitando a vida ao máximo”? Mesmo aí, “poder-se-ia contra-argumentar que os seres humanos devem dormir à noite, que o nosso próprio corpo está alinhado com a rotação diária do planeta, e que ocorrem em quase todos os organismos vivos comportamentos de reacção às estações do ano e à luz do Sol”.