O atentado contra Salman Rushdie


Conforme o escritor relatou nas suas memórias, publicadas em 2012, foi obrigado a adoptar o pseudónimo de Joseph Anton, tendo tido que mudar de casa 56 vezes nos primeiros seis meses.


Em Setembro de 1988 Salman Rushdie publica a sua obra Os versículos satânicos, livro que desencadeia imediatamente polémica, por ser considerado blasfemo face à religião islâmica. Logo no mês seguinte, a Índia proibiu a importação do livro, no que foi seguida por mais vinte países. 

A polémica chega ao conhecimento do líder religioso do Irão, o Ayatollah Ruhollah Khomeini, que em 14 de Fevereiro de 1989 emite uma fatwa, condenando Rushdie à morte e apelando a todos os muçulmanos do mundo para rapidamente o executarem, bem como a todos os que se tivessem envolvido ou se envolvessem na publicação do livro. Khomeini chegou mesmo a oferecer uma recompensa de 2,8 milhões de dólares a quem executasse o escritor.

Salman Rushdie correu a partir desse momento um elevado risco de atentados, que só foi evitado porque o Governo de Margaret Thatcher o colocou sob a sua protecção. Conforme o escritor relatou nas suas memórias, publicadas em 2012, foi obrigado a adoptar o pseudónimo de Joseph Anton, tendo tido que mudar de casa 56 vezes nos primeiros seis meses. Naturalmente que tal implicou que tivesse deixado de ter a vida normal a que todos os seres humanos aspiram, passando a ter que viver em silêncio numa prisão, da qual uma simples saída poderia significar a morte.

Khomeini morreu a 3 de Junho de 1989, mas a sua fatwa sobreviveu-lhe e, se não conseguiu atingir Rushdie, atingiu muitos dos que se envolveram na publicação e difusão do livro. Em Julho de 1991 o tradutor da obra para italiano, Ettore Capriolo, foi esfaqueado em casa, tendo felizmente conseguido sobreviver. Menos sorte teve Hitoshi Garamashi, o tradutor japonês do livro, que poucos dias depois foi encontrado morto por esfaqueamento no seu gabinete, sem que o assassino tivesse sido encontrado. Em Julho de 1993, o romancista turco Azziz Nesin, que tinha traduzido apenas um excerto da obra para turco num jornal local, foi alvo de ataque de manifestantes no hotel onde se encontrava, os quais lançaram fogo ao hotel. Ele conseguiu fugir pela escada de incêndio, mas 37 pessoas pereceram no ataque. Em Outubro de 1993, o editor norueguês da obra, William Nygaard, foi atingido por três tiros nas costas, tendo felizmente conseguido sobreviver.

Posteriormente, em 1998 o Governo do Irão distancia-se dessa condenação, o que permitiu a Rushdie recuperar gradualmente a sua liberdade, ainda que sob rigorosas medidas de segurança. Infelizmente na passada sexta-feira essas medidas falharam e o escritor foi alvo de um atentado por esfaqueamento, quando se preparava para dar uma palestra em Chautauqua, no noroeste do estado de Nova Iorque. O agressor, Hadi Matar, de 24 anos, e portanto nascido muito depois da fatwa de Khomeini, não se coibiu de a procurar executar 33 anos após a mesma ser emitida. Felizmente parece que terá falhado o seu objectivo, apesar das muitas lesões físicas causadas ao escritor, já com 75 anos.

Em Portugal a obra de Rushdie viria a ser publicada pela D. Quixote logo em 1989, sendo na mesma referido expressamente que “a Secretaria de Estado da Cultura apoia moralmente a edição e distribuição desta obra, com base nos artigos 37.º e 42º. da Constituição da República Portuguesa“. Efectivamente, os valores constitucionais da liberdade de expressão e da liberdade de criação cultural levam a que se deva defender intransigentemente o direito dos escritores à criação e publicação das suas obras, sem que sejam ameaçados de alguma forma pelas obras que escreveram. O atentado contra Rushdie é infelizmente mais um ataque aos nossos valores civilizacionais neste conturbado ano de 2022, em que a violência e o ódio proliferam, deixando para trás a paz e a justiça.

Professor da Faculdade de Direitoda Universidade de Lisboa

Escreve à terça-feira, sem adopção 

das regras do acordo ortográfico de 1990

O atentado contra Salman Rushdie


Conforme o escritor relatou nas suas memórias, publicadas em 2012, foi obrigado a adoptar o pseudónimo de Joseph Anton, tendo tido que mudar de casa 56 vezes nos primeiros seis meses.


Em Setembro de 1988 Salman Rushdie publica a sua obra Os versículos satânicos, livro que desencadeia imediatamente polémica, por ser considerado blasfemo face à religião islâmica. Logo no mês seguinte, a Índia proibiu a importação do livro, no que foi seguida por mais vinte países. 

A polémica chega ao conhecimento do líder religioso do Irão, o Ayatollah Ruhollah Khomeini, que em 14 de Fevereiro de 1989 emite uma fatwa, condenando Rushdie à morte e apelando a todos os muçulmanos do mundo para rapidamente o executarem, bem como a todos os que se tivessem envolvido ou se envolvessem na publicação do livro. Khomeini chegou mesmo a oferecer uma recompensa de 2,8 milhões de dólares a quem executasse o escritor.

Salman Rushdie correu a partir desse momento um elevado risco de atentados, que só foi evitado porque o Governo de Margaret Thatcher o colocou sob a sua protecção. Conforme o escritor relatou nas suas memórias, publicadas em 2012, foi obrigado a adoptar o pseudónimo de Joseph Anton, tendo tido que mudar de casa 56 vezes nos primeiros seis meses. Naturalmente que tal implicou que tivesse deixado de ter a vida normal a que todos os seres humanos aspiram, passando a ter que viver em silêncio numa prisão, da qual uma simples saída poderia significar a morte.

Khomeini morreu a 3 de Junho de 1989, mas a sua fatwa sobreviveu-lhe e, se não conseguiu atingir Rushdie, atingiu muitos dos que se envolveram na publicação e difusão do livro. Em Julho de 1991 o tradutor da obra para italiano, Ettore Capriolo, foi esfaqueado em casa, tendo felizmente conseguido sobreviver. Menos sorte teve Hitoshi Garamashi, o tradutor japonês do livro, que poucos dias depois foi encontrado morto por esfaqueamento no seu gabinete, sem que o assassino tivesse sido encontrado. Em Julho de 1993, o romancista turco Azziz Nesin, que tinha traduzido apenas um excerto da obra para turco num jornal local, foi alvo de ataque de manifestantes no hotel onde se encontrava, os quais lançaram fogo ao hotel. Ele conseguiu fugir pela escada de incêndio, mas 37 pessoas pereceram no ataque. Em Outubro de 1993, o editor norueguês da obra, William Nygaard, foi atingido por três tiros nas costas, tendo felizmente conseguido sobreviver.

Posteriormente, em 1998 o Governo do Irão distancia-se dessa condenação, o que permitiu a Rushdie recuperar gradualmente a sua liberdade, ainda que sob rigorosas medidas de segurança. Infelizmente na passada sexta-feira essas medidas falharam e o escritor foi alvo de um atentado por esfaqueamento, quando se preparava para dar uma palestra em Chautauqua, no noroeste do estado de Nova Iorque. O agressor, Hadi Matar, de 24 anos, e portanto nascido muito depois da fatwa de Khomeini, não se coibiu de a procurar executar 33 anos após a mesma ser emitida. Felizmente parece que terá falhado o seu objectivo, apesar das muitas lesões físicas causadas ao escritor, já com 75 anos.

Em Portugal a obra de Rushdie viria a ser publicada pela D. Quixote logo em 1989, sendo na mesma referido expressamente que “a Secretaria de Estado da Cultura apoia moralmente a edição e distribuição desta obra, com base nos artigos 37.º e 42º. da Constituição da República Portuguesa“. Efectivamente, os valores constitucionais da liberdade de expressão e da liberdade de criação cultural levam a que se deva defender intransigentemente o direito dos escritores à criação e publicação das suas obras, sem que sejam ameaçados de alguma forma pelas obras que escreveram. O atentado contra Rushdie é infelizmente mais um ataque aos nossos valores civilizacionais neste conturbado ano de 2022, em que a violência e o ódio proliferam, deixando para trás a paz e a justiça.

Professor da Faculdade de Direitoda Universidade de Lisboa

Escreve à terça-feira, sem adopção 

das regras do acordo ortográfico de 1990