Tenho por hábito, antigo, passar parte das minhas férias de verão na mesma praia.
Alugo ali, há cerca de sessenta nos, o guarda-sol no mesmo banheiro e, mais ou menos, no mesmo local.
Tenho aí, ao meu lado, os mesmos vizinhos, os seus filhos e netos.
Fico, normalmente, na casa que era dos meus pais: uma antiga casa de pescadores, reconvertida e arranjada por minha mãe.
Contacto com as mesmas pessoas, umas da terra, outras banhistas como eu, quase desde que me conheço.
Frequento os mesmos cafés, mas já não os mesmos restaurantes, pois estes foram mudando ao longo dos anos.
Esta estabilidade e rotinas permitem-me observar criticamente esta pequena sociedade dual: os habitantes da povoação e os veraneantes.
Muita coisa mudou, desde que, pequeno, comecei a frequentar esta praia.
A aldeia piscatória paupérrima, mas característica e fazendo lembrar algumas imagens de filmes neorrealistas italianos, deu origem a um desconchavado núcleo urbano onde se misturam, sem cuidado de harmonia mínima, prédios de pequenas e grandes proporções, com estilos e alturas várias.
Os locais vivem indubitavelmente melhor do que quando para cá comecei a vir: antes, a miséria era óbvia e, diria, generalizada.
Lembro-me, ainda, de mães a catarem piolhos aos filhos à porta de casa e de estes andarem, em regra, descalços a vender conquilhas.
Estes, os filhos dos pescadores, afrontavam em grupo os filhos dos banhistas numa demonstração clara de uma luta de classes infantil, mesmo que não assumida como tal.
Os banhistas ricos, mas não muito ricos – os mais ricos tinham já moradia nova e construída de propósito para as férias – bastavam-se, então, com o aluguer das modestas casas dos pescadores, que, assim, juntavam algum dinheiro para o inverno.
As famílias eram, então, maiores: mais filhos, sobrinhos, primos e amigos.
A praia era, em comparação com os dias de hoje, pouquíssimo frequentada e permitia alguns pequenos luxos, hoje impensáveis: fazer picnics conjuntos entre famílias conhecidas, debaixo das sombrinhas.
Havia mesas de balsa, próprias para o efeito, que se estendiam juntas umas às outras ao longo das filas das sombrinhas e que nos permitiam a todos ir provando e petiscando as iguarias que uns e outros traziam.
As crianças frequentavam apenas a praia de manhã.
À tarde, depois da sesta obrigatória, iam para a mata, pois, dizia-se, fazia-lhes bem o ar do pinhal.
Só ao fim da tarde se juntavam de novo aos pais, nos cafés ou no Casino, que tendo esse nome, era afinal um clube social.
A vida era simples e rotineira, mas havia duas esplanadas de cinema onde os miúdos, como eu, se iniciavam e viciavam na arte cinematográfica: vício que, no meu caso, apesar da televisão, só a pandemia moderou.
«E tudo o vento levou» vi-o eu, sentado em bancos corridos de madeira sem encosto, acompanhando a sessão com amendoins comprados a granel e laranjadas que deixavam a língua colorida.
Hoje, não resta um cinema, uma «bôite», um bar comummente frequentado e onde, mesmo sem combinar, sempre se possa encontrar alguém conhecido.
A frequência da praia massificou-se e os restaurantes floresceram, sendo que, nos anos mais recentes, alguns ganharam verdadeira qualidade.
O estacionamento é caótico e é quase impossível encontrar um sítio disponível para parar o carro.
Fecharam as poucas agências bancárias – mesmo a da CGD – e é uma tortura demorada usar o Multibanco.
Os lugares de estacionamento em frente das casas guardam-se ciosamente com garrafões de água para impedir que ali parem carros de terceiros: e este costume, curiosamente, é respeitado.
A praia, mesmo algarvia, continua frequentada maioritariamente por portugueses: os estrangeiros são raros e quase todos espanhóis.
É, verdadeiramente, uma praia popular.
Perdeu-se muita da tranquilidade que a caracterizava, mas os seus habitantes ganharam, sem dúvida – desde o 25 de Abril – outro estatuto cívico e económico, que lhes permite viver melhor e usufruir de melhores casas e de alguma qualidade de vida.
Eu, pelo meu lado, confundo-me nas minhas contradições, tendo saudades dos tempos mais tranquilos e pacíficos, mais propiciadores de amizades e companhias que se reviviam a cada ano, mas reconhecendo que os locais devem lembrar esses tempos com olhos bem mais negros e muito menos saudades do que eu.
A vida é assim: feita de contradições que importa resolver, mas quem não atenta e delas não se apercebe não a ama verdadeiramente.