Filho de um chefe berbere que foi, a pouco e pouco, alargando a sua popularidade e a sua influência na política marroquina, Si Thani El Glaoui foi nomeado paxá de Marrakesh em 1912. Uma recompensa: colocou-se sempre ao lado das autoridades francesas no que, à época, levava o nome de Protectorado Francês de Marrocos. Em agosto de 1956 criava sarilhos por toda a parte por onde passasse: resolvera pôr em causa a autoridade do sultão Sidi Mohamed Ben Yussef e afirmou, alto e bom som, que este deixara de ser o chefe dos fiéis que seguiam caninamente El Glaoui. A matéria foi de tal ordem grave que passou a existir, em francês, um novo verbo: “glaouiser” – trair.
Foi o Miguel Peixe Dias, filho do meu velho mestre Peixe Dias, que conheci nos primórdios da minha carreira e esteve quase a convencer-me de que Mircea Eliade foi o maior escritor de todos os tempos, que me chamou a atenção para um pormenor antes de começar a rabiscar este texto. El Glaoui era um homem habituado a ter tudo o que queria, e o sultão de Marrocos que o diga. É aqui que entra Louis-François Cartier, o famoso construtor de relógios. O paxá tinha um desejo ávido de um relógio que lhe permitisse contar as horas enquanto tomava banho. Então entrou em contacto com a relojoeira, tal como o confirmou Pierre Rainero, director de imagem da marca: “O paxá de Marrakesh, El Glaoui, comprou um dos primeiros relógios à prova d’água da Cartier na década de 1930”, diz. E conclui: “Então, quando lançámos este relógio em 1985, tivemos a ideia de batizá-lo de ‘Pasha’ como uma homenagem”.
O Cartier Pasha certamente compartilhou a arrogância decadente de seu homônimo. “Desafiadoramente ousado, o relógio era uma declaração de design idiossincrático”, afirma Rainero. Entretanto, de volta ao tórrido agosto marroquino de 1956, El Glaoui escolhera o dia 16 para juntar em seu redor cerca de mil fanáticos e declarando o seu tio, Moulay Mohamed Ben Arfa como chefe máximo dos fiéis. Ora, isto deixava o sultão em muito maus lençóis. E era visto, pelos observadores internacionais, como uma forma de a França voltar a ingerir-se na governação de Marrocos, utilizando um dos seus homens de mão.
Pobre sultão. “O sultão está numa posição muito complicada e, naturalmente, devia abdicar”, afirmou um funcionário da embaixada francesa em Rabat. Mais achas para a fogueira que ardia no sopé das montanhas do Atlas. Entretanto, uma fileira de 600 automóveis foi barrada pela polícia à saída de Casablanca. Os seus ocupantes queriam ir a Rabat apoiar o seu sultão. Os acontecimentos estavam a milímetros de descambar numa violência total. O filho de Glaoui, Si Brahim, aumentou a temperatura do forno prestes a explodir: “Para nós já não existe sultão. Há um novo chefe dos fiéis. Só ainda não tomámos a decisão de depor o sultão para não embaraçar o governo francês”. O protetorado tinha sido extinto no anterior mês de março, mas a economia e o policiamento do país ainda estava dominada pelos franceses e a moeda ainda era o franco. Glaoui pretendia lavar as mãos do sarilho em que se enfiara e desafiava os franceses a correrem com Sido Mohamed. Mas, para o governo de França, a situação era muito clara: a nomeação de um novo líder dos fiéis era, apenas, uma ação religiosa que deveria ser afastada de qualquer ideal político. Ou seja, toda a gente lavava as mãos mas a água estava suja. Tão suja que, nessa madrugada, 1500 apoiantes do sultão marcharam sobre o palácio de El Glaoui em Marrakesh até serem travados por uma barreira policial francesa. Um guarda morreu, 15 pessoas foram baleadas. Do Cartier não houve notícias…