Acordo com a morte e deito-me com a morte. É como se a tivesse aqui, à cabeceira, sisuda, mazomba, sinistra e negra como o corvo de Allan Poe. Recito, baixinho, para mim mesmo, como se rezasse a um deus desconhecido:
“A treva enorme fitando, fiquei perdido receando/Dúbio e tais sonhos sonhando que os ninguém sonhou iguais/Mas a noite era infinita, a paz profunda e maldita/E a única palavra dita foi um nome cheio de ais/Eu o disse, o nome dela, e o eco disse aos meus ais/Isso só e nada mais”.
Morreu o Chalana, despertam-me ainda eu na cama, a cara mergulhada nas almofadas, o cérebro preso a um sonho sem sentido e por dormir. A notícia por mensagem. A morte e a palavra escrita. E, por isso, levanto-me e escrevo. Já escrevi tantas e tantas páginas sobre o Chalana mas ele ainda estava vivo. Poderia escrever jornais inteiros sobre Chalana, o Peter Pan, menino que não queria crescer e ficou sempre menino brincando com a bola que obedecia cegamente aos que ordenavam os seus pés (ambos) de cetim. Desculpa Fernando, não irei ao teu enterro.
Fiquei como o Vinicius: “Recuso-me a ir a funerais! Quero recordar vivos os meus mortos!”. Tenho a certeza de que estarão presentes aqueles que foram teus amigos e também aqueles que nunca te mereceram. Mas sê como sempre foste: tranquilo, descansando em paz, não percebendo (ou não querendo perceber) o sorriso canalha dos hipócritas. A morte entra-me pela noite. Vinda de Viseu, terra de bisavós.
O Salomão, um nos nossos Azevedo Pintos, primo direito do meu pai, todos eles tão queridos de todos nós com os seus jeitos pacíficos de ser e de falar com ches nos lugar dos esses.
“Seu olhar tem a medonha cor de um demônio que sonha/E a luz lança-lhe a tristonha sombra no chão há mais e mais/E a minhalma dessa sombra que no chão há mais e mais…” Eu sei, eu sei. É a morte. Salta-me de ombro para ombro como se de um corvo se tratasse.