São poucos aqueles que, ao saírem nas suas férias para explorar destinos mais ou menos longínquos com o desejo de escapar ao espaço que foi mortificado pela vida quotidiana, ainda se sustentam da noção de que há algo de aventuroso numa viagem que tenha como eixo o aeroporto. Para um escritor e viajante como Paul Theroux, se uma jornada de comboio ainda é viagem, “tudo o resto – especialmente aviões – é transporte, começando a viagem quando o avião aterra”. Segundo ele, “os aviões embotaram-nos e tornaram-nos insensíveis; estamos espartilhados, como amantes dentro de uma armadura.”
Nas tantas viagens que relatou, este autor não cede aos artifícios das grandes descrições enfáticas, nem ao anedotário que acompanha a forma como os lugares são reconduzidos à paródia de si mesmos. Theroux segue de forma tensa, preservando sempre a lucidez, numa prosa atenta, analítica, severa e contida, que não deixa de captar esses detalhes luminosos, essas relações e nuances que são capazes de expor o mecanismo por trás dos cenários, e isto numa época em que está em pleno esse fenómeno de expropriação por meio de um processo de monumentalização, de tal forma que a razão do autóctone se dissolve, e acabamos por olhar a nossa própria cidade com os olhos do turista que a monumentaliza. No seu diagnóstico dessa forma moderna da peregrinação, Theroux diz-nos que “é quase axiomático que a viagem aérea só mandou turistas para os países mais caducos do mundo: o turismo, nunca diligenciado com tanta energia como nas sociedades estáticas, consiste habitualmente no rico móbil que efectua uma cega e precipitada visita ao pobre inerte.”
Num verão que viu o colapso dos principais aeroportos europeus e alguns nos EUA, tivemos um ponto de vista privilegiado para a forma como, nos nossos dias, o aeroporto funciona mais como “um posto militar em desordem”, para usar uma expressão de António Guerreiro, que nos fala de um regime de mobilização geral e de um espaço do qual é impossível partir para algo de aventuroso ou sequer livre. Assim, ao sair para férias, a classe média viu-se confrontada com a realidade que enfrentam no dia-a-dia aqueles que são obrigados a usar os autocarros e os transportes colectivos de passageiros. No fundo, ao ser transtornada e maltratada quando partia para férias, recorrendo ao único transporte colectivo que ainda usa, foi como se a classe média sido obrigada a viajar (aí sim, uma verdadeira viagem) na condição dos elementos mais desfavorecidos da sociedade, e, contrariada, foi levada a conhecer o mundo dos pobres, que são confrontados diariamente com estas formas de degradação relacionadas com atrasos, supressão, multidões etc. E isto faz-nos ver o outro lado da gentrificação, a forma como se impõe por toda a parte uma política que cumpre um apartheid social, expulsando os pobres do circuito de valor, para não incomodar o consumo dos que têm efectivo poder de compra. E o turista, antes visto como a espécie invasora, tornou-se o verdadeiro nativo desses lugares destituídos dos aspectos que os distinguem, impondo-se os “espaços turistificados”, conceito que é usado pelos geógrafos e que se alargou ao ponto de hoje já não conhecer fronteiras. “É tanto a cidade histórica e monumental como o mundo rural, para onde se viaja em busca do típico e do arquetípico”, escreve António Guerreiro numa das suas crónicas.
O turista é o burguês quando resolve espairecer, abandonar a órbita da sua existência regida pela negação do ócio e as virtudes de quem acumula riqueza, e, na base desta fé que, na verdade, se baseia num materialismo ateu que zomba de todos os valores de outra ordem, nas suas deslocações pelo circuito turístico, estes viajantes hedonistas contentam-se em gozar do conforto a que se habituaram em casa, ou exigem ainda um nível de bem-estar e luxo ainda maior, enquanto se convencem do encanto de passar uns dias “de boca aberta a espreitar para antiguidade”, como nota Theroux. Por sua vez, este autor exprime as razões que o levaram a devotar-se à errância: “Viajo para encontrar obstáculos, descobrir os meus limites, aliviar a passagem do tempo, garantir a mim próprio que a inocência e a ancestralidade existem, procurar vínculos com o passado, fugir ao detestável que é a vida urbana e à paranoia, quando não verdadeira demência, do mundo tecnológico.”
Noutra das suas crónicas, Guerreiro citava Gerhard Nebel, um autor alemão contemporâneo de Heidegger, muito conservador, e que antecipava um futuro pavoroso em decorrência da massificação das viagens: “O turismo ocidental é um dos maiores movimentos niilistas, uma das grandes epidemias do Ocidente, que no seu grau de nocividade está apenas abaixo das epidemias do centro e do Leste, mas ultrapassa-as em silenciosa perfídia. Os enxames dessas bactérias gigantes chamadas turistas recobrem as substâncias mais diversas da viscosidade uniformemente cintilante que dá pelo nome de Thomas Cook, de maneira que acabam por não distinguir bem o Cairo de Honolulu e Taormina de Colombo.” Nebel sentenciava ainda que “um país que se abre ao turismo fecha-se metafisicamente – oferece um cenário, mas já não a sua mágica potência.”
Assim, este verão, depois dos despedimentos massivos levados a cabo no sector da aviação para fazer frente à brusca interrupção provocada pela pandemia, numa altura em que as empresas não contavam com uma retoma tão imediata, os aeroportos transformaram-se na verdadeira face do turismo mundial, cenários de pandemónio, em que muitos foram aqueles que viram as suas vidas suspensas, obrigados a passar várias noites seguidas naquelas plataformas pensadas meramente como zonas de trânsito, espaços enormes mas, na verdade, bastante inóspitos, e, na dificuldade de apanhar um voo de volta a casa ou ao destino de férias, os turistas estavam como fantasmas frente à ruptura das suas expectativas. A burocracia expos a sua face infernal, a impossibilidade de quem se vê apanhado num dos seus labirintos de encontrar uma saída, e, tendo-se tornado uma lotaria conseguir entrar num voo, como notou Francisco Louçã, muitos viram-se numa réplica d' “O Processo” de Kafka. “Era tão fácil comprar o bilhete online, fazer o check-in online, passar por portarias eletrónicas, seguir pelo centro comercial adentro e chegar ao avião, não era? O problema é quando se precisa de falar com alguém. As pessoas desapareceram deste paraíso digital. Não se pode telefonar, ficamos presos num labirinto de códigos e gravações; não se encontra ninguém que diga quando é o próximo voo, ou se a empresa cumpre a obrigação de fornecer entretanto o hotel (e há lugar em algum hotel?), os transportes e as refeições. Não existe vivalma, é como se o cliente tivesse aterrado num planeta deserto e só tivesse náufragos à sua volta. E isso permite que as empresas usem o truque da clandestinidade para o abuso: em Lisboa, perante o desaparecimento das companhias aéreas, a solução é dormir no chão; num aeroporto alemão, viajantes afortunados receberam uma senha de 4 euros para as refeições do dia. E experimente fazer uma reclamação, busca pela internet um sítio com um formulário, receberá depois uma resposta automática e vai com sorte, mergulhou num abismo que não sabe se alguma vez lhe responderá.
Diga lá que isto não é um sucesso do mercado? Os trabalhadores reduzidos a robôs, os clientes conduzidos como gado, os pagamentos já foram feitos, deixe estar que isto há-de passar.”
Se este curto-circuito parece lançar-nos no regime da catástrofe, há algo bem pior que é tudo prosseguir sem constrangimentos, tudo correr pelo melhor, e o fenómeno do turismo de massas, depois de uma interrupção forçada, continuar a sua a crescer de forma imparável, afinando as formas de organização de uma política totalitária, à medida que se serve de métodos de conformação das cidades, dos lugares e da paisagem às determinações do turismo. E Guerreiro recorda-nos que se até os autóctones e os seus modos de vida acabam por ver-se como “necessárias encenações para uso turístico”, estamos, então, perante um cenário de mobilização geral, com a analogia militar que propôs Enzensberger na sua “teoria do turismo”, em 1958, e que viu a sua força profética plenamente demonstrada pelo desenrolar dos acontecimentos. De acordo com esta analogia, o ensaísta e poeta alemão anteviu a forma como os grandes “quartéis-generais” do turismo se assemelhariam “a estados-maiores onde se calcula antecipadamente os movimentos das tropas” E Guerreiro adianta que, neste sentido, os guias turísticos são verdadeiros manuais de combate, lições de táctica e de estratégia a seguir no teatro de operações. Ora, nas condições actuais em que toda a cultura foi apropriada para fins económicos, resta saber o que é que escapa a essa forma de propaganda, essa cultura que apenas serve para vender destinos e experiências, consumos que fortalecem um estilo de vida que não significa outra coisa senão um modo de conformação e um conformismo absoluto em troca de segurança pessoal e bem-estar.
Como explica Guerreiro, “a ameaça do colapso chega sempre da mesma maneira, qualquer que seja o seu campo de acção: chega primeiro sob a forma de uma utopia, de uma novidade que, na sua forma ampliada, trará a felicidade, o bem-estar, a riqueza, a democracia. A pouco e pouco, porém, aquilo que era o bem em estado puro revela as suas ‘estratégias fatais’, a suas dimensões nefastas.” Assim tem vindo a ocorrer no campo do turismo mundial, e os aeroportos foram o eixo dessa forma de miséria camuflada num regime de propaganda delirante, isto à medida que, as operações logísticas impunham uma “catástrofe serena”, e, sem que tenha havido quedas de aviões ou qualquer ordem de acontecimentos imprevistos, as multidões que esperavam realizar as suas fantasias no êxodo estival, viram-se confrontadas com o negativo de todas as suas expectativas, ficando expostas, vulneráveis, exasperadas, confrontadas com maus presságios.
Ruía assim “a ilusão de uma felicidade de massas, de que todos podem voar para o seu paraíso de lazer”, e ficou claro que umas férias verdadeiramente tranquilas se tornou, hoje, uma prerrogativa ao alcance de muito poucos. E, com os aeroportos a parecerem-se com campos de refugiados, as multidões que pretendiam obter a compensão das suas existências quotidianas de sacrifício e desolação, deram-se conta de que já não há alhures, e que viajar significa cada vez mais ir dar uma volta pelo perímetro desta gigantesca prisão.
Números do Turismo
1 – Dados sobre as chegadas internacionais de turistas
Atualmente, o volume de negócios do turismo iguala ou até ultrapassa o das exportações de petróleo, produtos alimentares ou automóveis. E o crescimento desta indústria tem sido constante e exponencial. Contabilizavam-se 25 milhões de turistas no mundo em 1950, perto de 300 milhões em 1980, mais de 680 milhões em 2000, mil milhões em 2012, e, não fosse pela pandemia, contava-se que se chegasse a dois mil milhões em 2020, sendo provável que, logo que estejam ultrapassados os constrangimentos no tráfego aéreo, esse marco seja atingido muito em breve.
2 – Pegada de carbono
Um estudo sobre a pegada de carbono do turismo mundial, publicado a 7 de maio de 2018 na revista Nature Climate Change, analisa os fluxos turísticos aéreos entre 160 países ao longo do período 2009-2013, naturalmente considerando as emissões associadas ao transporte dos turistas (querosene dos aviões e gasolina das viaturas), mas também ao transporte do que lhes é indispensável (restauração, atividades hoteleiras, mercadorias consumidas…). O resultado é eloquente: o setor turístico emitiu o equivalente a 3,9 mil milhões de toneladas de CO2 em 2009, e 4,5 mil milhões de toneladas em 2013, ou seja, 8% das emissões mundiais de gases com efeito de estufa. Por comparação, o transporte marítimo em todo o mundo fica-se por 3%.
3 – O previsível domínio chinês
Relativamente à quota de mercado, França, EUA, Espanha e China são os principais destinos turísticos, ao passo que, em termos de turismo emissor, China, EUA e Alemanha lideram as tendências da procura em todo o mundo. Se a China é uma recém-chegada a este respeito – de acordo com a Organização Mundial do Turismo, em 2016, os turistas chineses gastaram mais de 260 mil milhões de dólares, ou seja, mais do dobro da quantia desembolsada pelos norte-americanos fora do seu país e cerca de um quinto da despesa global dos turistas internacionais – é importante lembrar que apenas uma década antes a despesa dos turistas chineses tinha representado somente 3% da despesa mundial. Ou seja, isto é apenas o início, uma vez que actualmente só 10% dos chineses possuem passaporte, em comparação com mais de 40% dos norte-americanos em 2017. Estima-se que no fim desta década o número de titulares de passaporte na China duplique para 240 milhões.
4 – Cidades submergidas pelas vagas turísticas
Thierry Paquot, teórico do urbanismo nota que “certas cidades atraem torrentes impressionantes de visitantes, como Nova Iorque, Londres, Paris, Veneza, Istambul, Xangai, Rio de Janeiro, Tóquio, etc., sendo estas tão significativas que ultrapassam o número dos seus habitantes regulares. Assim, contam-se, por exemplo, 26 turistas por cada veneziano, 16 por cada parisiense, 15 por cada habitante de Amesterdão, 12 por cada residente de Praga, 10 por cada um de Barcelona, Roma, Munique… A média para as cidades europeias era de 7,14 em 2014. Daí a sensação, experimentada pelos habitantes de certos bairros, de já não estar em sua casa, mas numa espécie de ‘safari humano’, no qual turistas armados de câmaras e de telemóveis vêm fotografá-los sem qualquer constrangimento, não hesitando em penetrar nos pátios, nos becos, nos jardins…”
5 – O caso português
Nos últimos 20 anos, tem-se registado um crescimento contínuo da atividade turística em Portugal, sendo esta indústria um dos maiores contribuidores para a economia do país (cerca de 10% do PIB, segundo o INE) e o maior empregador, com quase um milhão de empregos diretos e indiretos, segundo o Conselho Mundial de Viagens e Turismo. O número de turistas estrangeiros tem vindo a crescer de forma constante, ano após ano, e aumentou 12% para 12,7 milhões de pessoas em 2017. Contando com os turistas nacionais, o total é de cerca de 21 milhões, em comparação com uma população residente que não chega aos 10 milhões.