Chove de repente em pleno Agosto


Há dez anos, no dia 8 de agosto, um pássaro-do-Paraíso entrou na minha vida. Chama-se Francisca, é a mais pequenina dos meus filhos, e quando pousou pela primeira vez no meu colo, com três dias de vida, fixou em mim os seus olhos já tão azuis, daquele azul-Olival, e toda a Terra em meu redor…


Por ser mais malandro, mais atrevido, atribui-lhe o pronome possessivo embora saiba que ninguém pode alguma vez ser dono dos pássaros a menos que seja céu (e não seu). Com um descaramento divino, digno do Alencar do Eça, solta-se dos companheiros e invade-me o sótão num voo curto, exploratório. Não pousa. Provavelmente não sente confiança para isso. Mas dá uma volta quase batendo no tecto baixo e regressa à varanda e ao arroz que deixara a arrefecer. Enfim, à segunda refeição do dia já que são cinco e meia da tarde, o calor violento abrandou ligeiramente e os grãos estarão mais frios.

Há dez anos, no dia 8 de agosto, um pássaro-do-Paraíso entrou na minha vida. Chama-se Francisca, é a mais pequenina dos meus filhos, e quando pousou pela primeira vez no meu colo, com três dias de vida, fixou em mim os seus olhos já tão azuis, daquele azul-Olival, e toda a Terra em meu redor estremeceu de ternura. Vi-a crescer, dizer palavras baralhadas e começar a andar, trapalhona e teimosa, cada vez mais igual a mim, toda ela tão, tão eu que doía por dentro. De mãos dadas entrámos no País das Fadas. E Chesterton avisou a seu tempo como era perigoso entrar no País das Fadas. Uma saudade profunda, fininha, corta-me cada dia sem ela como uma lâmina. E as cicatrizes vão ficando; e as cicatrizes falam. “Aquela madrugada que/viu lágrimas correrem do teu rosto/e alegre se fez triste como se/chovesse de repente em pleno Agosto”,  escreveu o meu amigo Manuel Alegre. No dia 8 de agosto chove sempre em mim. Água escorre pela vidraça dos meus olhos. Há uns tempos vi-a, ao longe, mais um vislumbre que outra coisa. Um par de olhos azuis brilhava por entre toda a gente tão feia em seu redor: e tu, Francisca, tão completamente linda como rapariguinha que já és, não bebé como quando te tive comigo e te ensinei a voar atrás dos pássaros. Ontem começou a chover em mim e ainda não parou. E não, Francisca, a culpa não é tua. Nunca será tua, minha menina azul. Minha dor infinitamente azul.

Chove de repente em pleno Agosto


Há dez anos, no dia 8 de agosto, um pássaro-do-Paraíso entrou na minha vida. Chama-se Francisca, é a mais pequenina dos meus filhos, e quando pousou pela primeira vez no meu colo, com três dias de vida, fixou em mim os seus olhos já tão azuis, daquele azul-Olival, e toda a Terra em meu redor…


Por ser mais malandro, mais atrevido, atribui-lhe o pronome possessivo embora saiba que ninguém pode alguma vez ser dono dos pássaros a menos que seja céu (e não seu). Com um descaramento divino, digno do Alencar do Eça, solta-se dos companheiros e invade-me o sótão num voo curto, exploratório. Não pousa. Provavelmente não sente confiança para isso. Mas dá uma volta quase batendo no tecto baixo e regressa à varanda e ao arroz que deixara a arrefecer. Enfim, à segunda refeição do dia já que são cinco e meia da tarde, o calor violento abrandou ligeiramente e os grãos estarão mais frios.

Há dez anos, no dia 8 de agosto, um pássaro-do-Paraíso entrou na minha vida. Chama-se Francisca, é a mais pequenina dos meus filhos, e quando pousou pela primeira vez no meu colo, com três dias de vida, fixou em mim os seus olhos já tão azuis, daquele azul-Olival, e toda a Terra em meu redor estremeceu de ternura. Vi-a crescer, dizer palavras baralhadas e começar a andar, trapalhona e teimosa, cada vez mais igual a mim, toda ela tão, tão eu que doía por dentro. De mãos dadas entrámos no País das Fadas. E Chesterton avisou a seu tempo como era perigoso entrar no País das Fadas. Uma saudade profunda, fininha, corta-me cada dia sem ela como uma lâmina. E as cicatrizes vão ficando; e as cicatrizes falam. “Aquela madrugada que/viu lágrimas correrem do teu rosto/e alegre se fez triste como se/chovesse de repente em pleno Agosto”,  escreveu o meu amigo Manuel Alegre. No dia 8 de agosto chove sempre em mim. Água escorre pela vidraça dos meus olhos. Há uns tempos vi-a, ao longe, mais um vislumbre que outra coisa. Um par de olhos azuis brilhava por entre toda a gente tão feia em seu redor: e tu, Francisca, tão completamente linda como rapariguinha que já és, não bebé como quando te tive comigo e te ensinei a voar atrás dos pássaros. Ontem começou a chover em mim e ainda não parou. E não, Francisca, a culpa não é tua. Nunca será tua, minha menina azul. Minha dor infinitamente azul.