A pandemia e a guerra já levaram a uma reorganização das disponibilidades de consumo a que não estávamos habituados. Mesmo quando há dinheiro, pode não estar disponível um determinado bem ou serviço que se queira. É claro que esse é um problema menor para quem não está na posse dos recursos básicos, mas ocorreu uma mudança de paradigma, provavelmente para ficar, dadas as inconsistências das cadeias de fornecimento e as incertezas geopolíticas no mundo.
Se esta alteração do quadro de consumo foi determinada pelas circunstâncias, há muito que se desenvolve uma tendência, por vezes contraditória, de ataque à proximidade, com relevantes impactos nas realidades e nas perceções dos cidadãos, na organização da sociedade e no futuro que queremos. É o ataque à proximidade, alegadamente compensado por uma digitalização que não está ao alcance de todos, sendo um enleio para relevantes segmentos da população. Por razões economicistas e de falta de recursos, o Estado deu o mote, os privados aproveitaram a deixa, com a legitimidade conferida por um certo abandono de partes do território e dos persistem em lá viver,
Por regra, os modelos de organização do Estado e de muitas das instituições públicas e privadas estão desfasados da realidade. O modelo de organização é estático, compartimentado, a realidade é dinâmica, muito além das baias, das fronteiras e dos limites previstos na lei e cumpridos com zelo pelos burocratas de turno. Há muito que a organização das funções, dos serviços e das respostas deveria ter sido adaptada, para se sintonizar com as pessoas e com os territórios. É o mesmo problema dos tempos de decisão, do calvário entre a necessidade e a concretização da resposta, mas com um grande lastro de insuficiências ao longo de anos.
Se em boa parte da disponibilização de bens e serviços, o critério deveria ser as condições de acesso em tempo útil, no modelo de organização de serviços como os de segurança há uma dimensão de perceção geral que é vital, mas tem a ver com os paradigmas que se instaram e nunca foram contrariados. Em boa parte do que tem falhado na saúde, na proteção civil, na segurança, na justiça e em tantas outras áreas, a falta de sintonia começa na falta de sustentabilidade das opções políticas nos recursos e projeta-se na organização, na alocação dos meios e na proximidade. Estando os meios desequilibrados para as necessidades, o desajuste do modelo concorre para adensar os problemas. Veja-se, a situação das forças de segurança.
Insuficientes, mal pagos, desconsiderados, sem os recursos de mobilidade adequados e com uma disposição no território desfasada das necessidades, a PSP e a GNR acabam por fazer milagres. As esquadras e os postos em todo o lado, típicos de um modelo estático, nem têm gente para ser guarnecidos com os efetivos necessários para as tarefas, nem têm os recursos para assegurar uma presença dinâmica no território junto das pessoas, a reforçar as perceções e a dissuadir a criminalidade. Precisamos de mais segurança em mobilidade e menos pontos de ocupação territorial, salvaguardando os contextos excecionais de risco agravado ou de circunstância (turismo, eventos, entre outros). Não queremos nem nunca haverá um polícia a cada porta, mas, mais policiamento de proximidade, se necessário com um sistema misto de um polícia por veículo a par da existência de patrulhas de dois que circulem abundantemente pelo território. Impõem-se respostas às dinâmicas das realidades, das pessoas e dos territórios. Sim, para isso são precisos recursos disponibilizados de forma sustentada e mudança das mentalidades. Se muitos de nós, em especial em meio urbano, vivemos dias que atravessam vários limites territoriais, porque devem os serviços ser estáticos?
Enquanto não mudar a organização, podem despejar mais dinheiros e remendar as ocorrências com soluções mal-amanhadas, que a desadequação virá sempre ao de cima, como aconteceu com a resposta dos postos móveis em socorro a autarcas que não cuidam da proximidade local, veja-se o estado da recolha de lixo em Lisboa, mas exalam determinação, modernidade e inovação. No Interior e nas Regiões Autónomas, a proximidade, o acesso em tempo útil aos bens e serviços essenciais ganham ainda maior relevância, por se constituir em fator de desertificação e de consagração de uma perceção de um miserável abandono do Estado central. Portugal precisa de muito mais que uma gestão de quotidianos, sobretudo quando o PRR e o Portugal 2030 disponibilizam recursos para transformar o básico, além dos temas sexy da transição energética e digital. Persistir em remendos do dia-a-dia, sem mudar de forma sustentada os modelos de organização, fará com que não se responda com eficácia à realidade concreta dos portugueses e dos territórios, contribuindo ainda para a total ausência de atratividade para o regresso dos que deixaram o país à procura das oportunidades que não têm cá dentro. Sem proximidade, não há futuro e haverá cada vez menos humanismo.
NOTAS FINAIS
LUCROS QUE QUEIMAM. A brutalidade dos milhões de lucros e das percentagens obscenas da banca, dos combustíveis, das papeleiras, da distribuição e do Estado (receitas de impostos) chocam com a realidade dos portugueses. É o mercado a funcionar, dirão alguns. Como diria António Costa, “Se pensarmos como a direita pensa, acabamos a governar como a direita governou”.
A GANÂNCIA DA BRISA. Boa parte das concessionárias de autoestradas têm contratos leoninos com o Estado, com risco quase nulo, compensações em barda e tolerância total face às obrigações. A BRISA tem infraestruturas rodoviárias com troços num estado miserável de conservação, com evidentes riscos para a segurança rodoviária, veja-se a faixa da esquerda em vários troços da A2 rumo ao sul. No tempo da Troika, reduziram as condições de segurança, com o desligar de iluminação e outras poupanças. Agora, à primeira oportunidade, António Pires de Lima, o ex-ministro do CDS, vestido de feitor da concessionária, vem avisar de significativos aumentos das portagens se o Estado não se chegar à frente. É chegar já na exigência de segurança rodoviária nas vias da Brisa!
CONTRIÇÃO RIMA COM INQUISIÇÃO. O Papa Francisco, que é uma lufada de ar fresco, aderiu à deriva da assunção dos erros do passado. Sabe-se onde começa e bem, mas, antes de acabar o processo, deveria ir à contrição pelas ações do Tribunal do Santo Ofício, a Inquisição portuguesa que, em nome da doutrina da Igreja, tantos dizimou.
Escreve à segunda-feira