“Diz-me como trabalhas, dir-te-ei que velho serás”


A regra passou a ser o turno, a hora extra, o descompasso com a vida. São corpos disponíveis para a acumulação de capital que deixam de estar disponíveis para viver a partir dos 50, 60 anos.


No meu primeiro dia de trabalho na Holanda, há 10 anos, no Instituto Internacional de História Social, tive duas surpresas – diria Cantarella, o siciliano humilde e naïf criado por Andrea Camillieri –, surpresas surpreendentes. A primeira foi que a secretária me entregou, mal entrei, o cartão, computador, senhas, mostrou-me o meu gabinete, com vista para o canal, aquecido (o empregado de limpeza, marroquino, meu companheiro de tagines, deixava-me sucessivos recados em holandês “demasiado quente!”). A secretária pediu-me, nesse dia, a lista de todas as minhas viagens durante um ano para serem compradas. Perguntei-lhe se não estaria enganada, até junho de certeza? Cerca de uma hora depois – sem ter preenchido nenhum formulário linha a linha, casa a casa, quase ter vontade de desistir de viajar –, tinha todos os bilhetes no meu email. Confiança, responsabilidade, autonomia. A produtividade, ora aí está. Uma vez por mês tínhamos seminários onde apresentávamos as nossas ideias, com trabalhos, e críticas ao trabalho dos colegas, sujeitando os nossos a avaliação, em mesa-redonda. Aqui residia, na qualidade, a nossa avaliação.

A segunda foi muito mais impressionante. O ex-diretor, que tinha sido meu professor numa Masterclass, já perto dos 70 anos, perguntou-me se eu queria boleia (eu estava a viver com a família dele a 60km de Amesterdão, ia e vinha de comboio todos os dias confortavelmente, e a estação ficava a 1 km e meio do Instituto). Disse que sim, agradeço a boleia, ainda não estava totalmente familiarizada com o caminho. Quando chegou o fim do dia, nevava, dirigi-me à porta, e ele esperava-me…na bicicleta…! Eu ia de boleia na traseira da bicicleta do meu diretor, a nevar, e ele tinha 70 anos ou perto disso.

A minha vivência com ele e a esposa foi maravilhosa. Nenhum deles tinha carro ou carta de condução – as férias eram de bicicleta, era também na bicicleta que iam buscar os netos, faziam ginástica e ele, uma vez por semana, com temperaturas negativas e gelo, remo. Namoravam. Passeavam. A Televisão, para minha sorte, era numa pequena sala fora da sala de convívio e só era ligada para eles verem as notícias de 20 minutos (ainda me surpreende como é possível termos noticiários de 1 hora e meia). O resto da noite líamos, conversávamos e ele tinha um hobby, colecionava moedas. Um dia fui a Londres e encomendou-me um livro, que não posso reproduzir de memória, mas era algo como 600 páginas sobre, creio, as moedas da Índia cunhadas no império britânico num século específico. Ela tinha responsabilidades numa escola, dirigidas, se bem me lembro, a migrantes.

O contraste com Portugal fez-me então pensar, pela primeira vez, o que era ser velho aqui e o que era ser velho lá. O que era ser velho e pobre ou velho e remediado. Ou ainda velho, de classe média, mas num país empobrecido, como Portugal. Ou velho e rico. Dificilmente conseguimos conversar com alguém no nosso país com 65, 70 anos, na verdade 55, 50 anos sem saber que a pessoa tem o colesterol alto, é diabético, tem uma consulta marcada para o médico para a semana, foi operado a uma hérnia, tem uma condição cardíaca…São raras as pessoas em Portugal, com 70 anos, com quem podemos ir passear de bicicleta, quanto mais ir de boleia na traseira da bicicleta, a fintar a neve e o gelo.

Os números ajudam-nos a traçar o quadro – Portugal tem a mesma esperança média de vida do que a Holanda (81 anos, pouco mais ou menos) mas 15 anos a menos na esperança média de vida saudável face a vários países da Europa – em Portugal entre os 54 anos e os 57 (mulheres e homens) em média as pessoas deixam de viver em condições saudáveis. Na Suécia isto acontece aos 74 anos, em Portugal quase 15 a 20 anos antes do que os países centrais da Europa.

Estes dados da periferia têm causas sociais conhecidas. E soluções, políticas, também sobejamente conhecidas. E ignoradas pelo poder político.

São os baixos salários, a que vem agregada a má alimentação, e o frio dentro das casas e escritórios (há uma relação direta estudada na saúde pública e determinantes sociais da saúde entre 2 a 3 graus menos de temperatura e o espoletar de doenças). Depois da Troika, a revista de saúde Lancet publicou um estudo onde Portugal estava à cabeça nas doenças respiratórias e pneumonia, e eram associadas ao frio dentro de casa e trabalho. Longe do trabalho braçal da enxada e das cozinhas exteriores, onde a lenha aquecia sempre as refeições, hoje as pessoas trabalham de forma sedentária ou estão em casa com temperaturas que os adoecem; os longos horários de trabalhos e os turnos, sobretudo os noturnos, pagam-se com a vida – ao final de 5 anos de trabalho por turnos começa a disparar a possibilidade de doenças e síndroma metabólico (o famoso obesidade, diabetes, hipertensão).

Se em 1864, na fundação da Associação Internacional de Trabalhadores, em Londres, se exigia que o trabalho noturno devia só ser permitido de forma excecional e “a tendência deve ser a de suprimir todo o trabalho noturno”[1], hoje a laboração contínua coloca os trabalhadores em turnos e trabalho noturno quase como regra. Com impacto direto na degradação da sua saúde, vida afetiva, sexual, ócio – são corpos disponíveis para a acumulação de capital que deixam de estar disponíveis para viver a partir dos 50, 60 anos.

A regra passou a ser o turno, a hora extra, o descompasso com a vida.  A tendência é para usar os trabalhadores até ao limite, o que naturalmente significa que esse limite chega muito antes da idade da reforma. Os Governos, conhecedores desta – a que chamei, nos estudos sobre trabalho, obsolescência programada da força de trabalho –, vão modificando as leis das reformas, aumentando por um lado a idade da reforma, e por outro, reconhecendo que ninguém aguenta estes ritmos, vão permitindo que as pessoas se reformem ou sejam encaminhadas para a segurança social com uma panóplia de exceções que os colocam a receber muito pouco, em casa, incapacitados ou muito limitados em termos de saúde. E aí começa o círculo vicioso, porque estão em casa já adoecidos, com baixos rendimentos, má alimentação…

Os cuidados de saúde, sobretudo primários, preventivos; e outros fatores menos mensuráveis metricamente, ainda assim cientificamente sustentados – a falta de autonomia nos locais de trabalho, a subjugação, o medo, a insegurança laboral, a falta de confiança interpares, a ausência de afetos, tudo podendo redundar em patologias da solidão –, tudo isto agrava cada vez mais as condições em que se envelhece.

Há evidentemente fatores no envelhecimento que nos colocam desafios para lá das classes sociais – para mim um dos mais complexos e difíceis de resolver é que o desenvolvimento da medicina permite prolongar a vida, por vezes sem qualidade, e não falo da eutanásia. Falo da grande questão: até que limite devemos intervir na vida das pessoas mantendo longos anos de vida que para muitos são também de enorme sofrimento? Aqui, claro, surgem questões éticas, para as quais não tenho resposta, mas que creio que deviam ser debatidas. Recordo-me de um dos meus grandes amigos, que morreu com 91 anos, me disse, quando o visitei, e estava numa cadeira de rodas, dependente, e assim esteve um ano, “isto não é vida”. Não creio que a eutanásia resolva este dilema ético, tão pouco o sei resolver. Penso, porém, que se devia pensar nele sem tabus. Com medo das perguntas, como encontraremos as respostas? Isto mexe com a dignidade das pessoas, o seu direito a escolher, a nossa vontade de não as perder, a forma como encaramos a morte, e naturalmente convoca-nos a pensar também a questão cimeira do papel dos lares em muitas sociedades.

Lares que na pandemia foram atores, em toda a Europa, sem exceção, de alguns dos mais tristes acontecimentos. Lares ou “casa de cuidado” (tradução livre) sabemos hoje não são, apesar do esforço louvável de tantas instituições e seus trabalhadores, propriamente lares (é certo também que muitas famílias não conseguem ter um lar, no sentido de casa onde há bem-estar e afeto). A forma solitária e resignada como a sociedade competitiva está organizada, aliada a horários de trabalho brutais, que impedem o cuidado dos mais velhos pelos mais novos, que trabalham; os núcleos familiares reduzidos;  a que se juntam doenças que exigem cuidados especializados, e, naturalmente, o aumento da esperança média de vida, e a pobreza cada vez mais generalizada (quem tem 1500 euros para pagar duas cuidadoras?), tudo isto faz com que o tema dos lares seja de uma enorme urgência.

Mais uma vez aqui a questão de classe e país não é idêntica – se na Suécia, por exemplo, há uma política de cuidado ao domicílio e só se vai para um lar quando se está mesmo muito doente, em muitos países os lares são muito vezes o refúgio de quem, cedo, não conseguiu compatibilizar o cuidado dos mais velhos com os horários de trabalho e os baixos salários.

Não quero, porém, reduzir a questão do envelhecimento a esta situação limite.

A forma paternalista com que tantos, com mais de 70 anos, em pleno uso de todas as suas capacidades, foram na pandemia vítimas de supressão de direitos, à margem da Constituição, reflete justamente esta ideia de que ser velho é estar no fim da vida. Não raras vezes vemos governantes, familiares, dirigirem-se aos mais velhos com autoritarismo e paternalismo – o corte das pensões na Troika anunciava já está ideia de que ser velho pode equivaler a ter direitos suprimidos. 

A realidade tem que ser outra. Podemos e devemos ter políticas que construam uma sociedade onde ser velho não é um retrocesso – o lugar dos mais velhos, os que mais deram à sociedade, e a quem tanto devemos, não pode ser encarado como um fardo, e o aumento da esperança média de vida como um problema.

Precisamos de soluções políticas que nos ajudem a cuidar de quem cuidou de nós, com o máximo de disponibilidade nos campos da saúde, sociais e afetivos. A eles, que são os nossos pais e avós devemos uma sociedade que não os envelhece antes do tempo, não lhes retira o direito a viver, namorar, passear, ser autónomos, respeitar as suas liberdades e direitos, e não os tratar com paternalismo e vitimização ou abuso de poder.  E devemos, claro, na hora da despedida, poder estar ao seu lado, com o mesmo carinho e atenção com que nos pegaram ao colo.

 

Publicado no número especial Envelhecer – União das Misericórdias Portuguesas

Professora Universitária FCSH/UNL HTC/ Socialdata Nova4Globe e Observatório para as Condições de Vida e Trabalho

“Diz-me como trabalhas, dir-te-ei que velho serás”


A regra passou a ser o turno, a hora extra, o descompasso com a vida. São corpos disponíveis para a acumulação de capital que deixam de estar disponíveis para viver a partir dos 50, 60 anos.


No meu primeiro dia de trabalho na Holanda, há 10 anos, no Instituto Internacional de História Social, tive duas surpresas – diria Cantarella, o siciliano humilde e naïf criado por Andrea Camillieri –, surpresas surpreendentes. A primeira foi que a secretária me entregou, mal entrei, o cartão, computador, senhas, mostrou-me o meu gabinete, com vista para o canal, aquecido (o empregado de limpeza, marroquino, meu companheiro de tagines, deixava-me sucessivos recados em holandês “demasiado quente!”). A secretária pediu-me, nesse dia, a lista de todas as minhas viagens durante um ano para serem compradas. Perguntei-lhe se não estaria enganada, até junho de certeza? Cerca de uma hora depois – sem ter preenchido nenhum formulário linha a linha, casa a casa, quase ter vontade de desistir de viajar –, tinha todos os bilhetes no meu email. Confiança, responsabilidade, autonomia. A produtividade, ora aí está. Uma vez por mês tínhamos seminários onde apresentávamos as nossas ideias, com trabalhos, e críticas ao trabalho dos colegas, sujeitando os nossos a avaliação, em mesa-redonda. Aqui residia, na qualidade, a nossa avaliação.

A segunda foi muito mais impressionante. O ex-diretor, que tinha sido meu professor numa Masterclass, já perto dos 70 anos, perguntou-me se eu queria boleia (eu estava a viver com a família dele a 60km de Amesterdão, ia e vinha de comboio todos os dias confortavelmente, e a estação ficava a 1 km e meio do Instituto). Disse que sim, agradeço a boleia, ainda não estava totalmente familiarizada com o caminho. Quando chegou o fim do dia, nevava, dirigi-me à porta, e ele esperava-me…na bicicleta…! Eu ia de boleia na traseira da bicicleta do meu diretor, a nevar, e ele tinha 70 anos ou perto disso.

A minha vivência com ele e a esposa foi maravilhosa. Nenhum deles tinha carro ou carta de condução – as férias eram de bicicleta, era também na bicicleta que iam buscar os netos, faziam ginástica e ele, uma vez por semana, com temperaturas negativas e gelo, remo. Namoravam. Passeavam. A Televisão, para minha sorte, era numa pequena sala fora da sala de convívio e só era ligada para eles verem as notícias de 20 minutos (ainda me surpreende como é possível termos noticiários de 1 hora e meia). O resto da noite líamos, conversávamos e ele tinha um hobby, colecionava moedas. Um dia fui a Londres e encomendou-me um livro, que não posso reproduzir de memória, mas era algo como 600 páginas sobre, creio, as moedas da Índia cunhadas no império britânico num século específico. Ela tinha responsabilidades numa escola, dirigidas, se bem me lembro, a migrantes.

O contraste com Portugal fez-me então pensar, pela primeira vez, o que era ser velho aqui e o que era ser velho lá. O que era ser velho e pobre ou velho e remediado. Ou ainda velho, de classe média, mas num país empobrecido, como Portugal. Ou velho e rico. Dificilmente conseguimos conversar com alguém no nosso país com 65, 70 anos, na verdade 55, 50 anos sem saber que a pessoa tem o colesterol alto, é diabético, tem uma consulta marcada para o médico para a semana, foi operado a uma hérnia, tem uma condição cardíaca…São raras as pessoas em Portugal, com 70 anos, com quem podemos ir passear de bicicleta, quanto mais ir de boleia na traseira da bicicleta, a fintar a neve e o gelo.

Os números ajudam-nos a traçar o quadro – Portugal tem a mesma esperança média de vida do que a Holanda (81 anos, pouco mais ou menos) mas 15 anos a menos na esperança média de vida saudável face a vários países da Europa – em Portugal entre os 54 anos e os 57 (mulheres e homens) em média as pessoas deixam de viver em condições saudáveis. Na Suécia isto acontece aos 74 anos, em Portugal quase 15 a 20 anos antes do que os países centrais da Europa.

Estes dados da periferia têm causas sociais conhecidas. E soluções, políticas, também sobejamente conhecidas. E ignoradas pelo poder político.

São os baixos salários, a que vem agregada a má alimentação, e o frio dentro das casas e escritórios (há uma relação direta estudada na saúde pública e determinantes sociais da saúde entre 2 a 3 graus menos de temperatura e o espoletar de doenças). Depois da Troika, a revista de saúde Lancet publicou um estudo onde Portugal estava à cabeça nas doenças respiratórias e pneumonia, e eram associadas ao frio dentro de casa e trabalho. Longe do trabalho braçal da enxada e das cozinhas exteriores, onde a lenha aquecia sempre as refeições, hoje as pessoas trabalham de forma sedentária ou estão em casa com temperaturas que os adoecem; os longos horários de trabalhos e os turnos, sobretudo os noturnos, pagam-se com a vida – ao final de 5 anos de trabalho por turnos começa a disparar a possibilidade de doenças e síndroma metabólico (o famoso obesidade, diabetes, hipertensão).

Se em 1864, na fundação da Associação Internacional de Trabalhadores, em Londres, se exigia que o trabalho noturno devia só ser permitido de forma excecional e “a tendência deve ser a de suprimir todo o trabalho noturno”[1], hoje a laboração contínua coloca os trabalhadores em turnos e trabalho noturno quase como regra. Com impacto direto na degradação da sua saúde, vida afetiva, sexual, ócio – são corpos disponíveis para a acumulação de capital que deixam de estar disponíveis para viver a partir dos 50, 60 anos.

A regra passou a ser o turno, a hora extra, o descompasso com a vida.  A tendência é para usar os trabalhadores até ao limite, o que naturalmente significa que esse limite chega muito antes da idade da reforma. Os Governos, conhecedores desta – a que chamei, nos estudos sobre trabalho, obsolescência programada da força de trabalho –, vão modificando as leis das reformas, aumentando por um lado a idade da reforma, e por outro, reconhecendo que ninguém aguenta estes ritmos, vão permitindo que as pessoas se reformem ou sejam encaminhadas para a segurança social com uma panóplia de exceções que os colocam a receber muito pouco, em casa, incapacitados ou muito limitados em termos de saúde. E aí começa o círculo vicioso, porque estão em casa já adoecidos, com baixos rendimentos, má alimentação…

Os cuidados de saúde, sobretudo primários, preventivos; e outros fatores menos mensuráveis metricamente, ainda assim cientificamente sustentados – a falta de autonomia nos locais de trabalho, a subjugação, o medo, a insegurança laboral, a falta de confiança interpares, a ausência de afetos, tudo podendo redundar em patologias da solidão –, tudo isto agrava cada vez mais as condições em que se envelhece.

Há evidentemente fatores no envelhecimento que nos colocam desafios para lá das classes sociais – para mim um dos mais complexos e difíceis de resolver é que o desenvolvimento da medicina permite prolongar a vida, por vezes sem qualidade, e não falo da eutanásia. Falo da grande questão: até que limite devemos intervir na vida das pessoas mantendo longos anos de vida que para muitos são também de enorme sofrimento? Aqui, claro, surgem questões éticas, para as quais não tenho resposta, mas que creio que deviam ser debatidas. Recordo-me de um dos meus grandes amigos, que morreu com 91 anos, me disse, quando o visitei, e estava numa cadeira de rodas, dependente, e assim esteve um ano, “isto não é vida”. Não creio que a eutanásia resolva este dilema ético, tão pouco o sei resolver. Penso, porém, que se devia pensar nele sem tabus. Com medo das perguntas, como encontraremos as respostas? Isto mexe com a dignidade das pessoas, o seu direito a escolher, a nossa vontade de não as perder, a forma como encaramos a morte, e naturalmente convoca-nos a pensar também a questão cimeira do papel dos lares em muitas sociedades.

Lares que na pandemia foram atores, em toda a Europa, sem exceção, de alguns dos mais tristes acontecimentos. Lares ou “casa de cuidado” (tradução livre) sabemos hoje não são, apesar do esforço louvável de tantas instituições e seus trabalhadores, propriamente lares (é certo também que muitas famílias não conseguem ter um lar, no sentido de casa onde há bem-estar e afeto). A forma solitária e resignada como a sociedade competitiva está organizada, aliada a horários de trabalho brutais, que impedem o cuidado dos mais velhos pelos mais novos, que trabalham; os núcleos familiares reduzidos;  a que se juntam doenças que exigem cuidados especializados, e, naturalmente, o aumento da esperança média de vida, e a pobreza cada vez mais generalizada (quem tem 1500 euros para pagar duas cuidadoras?), tudo isto faz com que o tema dos lares seja de uma enorme urgência.

Mais uma vez aqui a questão de classe e país não é idêntica – se na Suécia, por exemplo, há uma política de cuidado ao domicílio e só se vai para um lar quando se está mesmo muito doente, em muitos países os lares são muito vezes o refúgio de quem, cedo, não conseguiu compatibilizar o cuidado dos mais velhos com os horários de trabalho e os baixos salários.

Não quero, porém, reduzir a questão do envelhecimento a esta situação limite.

A forma paternalista com que tantos, com mais de 70 anos, em pleno uso de todas as suas capacidades, foram na pandemia vítimas de supressão de direitos, à margem da Constituição, reflete justamente esta ideia de que ser velho é estar no fim da vida. Não raras vezes vemos governantes, familiares, dirigirem-se aos mais velhos com autoritarismo e paternalismo – o corte das pensões na Troika anunciava já está ideia de que ser velho pode equivaler a ter direitos suprimidos. 

A realidade tem que ser outra. Podemos e devemos ter políticas que construam uma sociedade onde ser velho não é um retrocesso – o lugar dos mais velhos, os que mais deram à sociedade, e a quem tanto devemos, não pode ser encarado como um fardo, e o aumento da esperança média de vida como um problema.

Precisamos de soluções políticas que nos ajudem a cuidar de quem cuidou de nós, com o máximo de disponibilidade nos campos da saúde, sociais e afetivos. A eles, que são os nossos pais e avós devemos uma sociedade que não os envelhece antes do tempo, não lhes retira o direito a viver, namorar, passear, ser autónomos, respeitar as suas liberdades e direitos, e não os tratar com paternalismo e vitimização ou abuso de poder.  E devemos, claro, na hora da despedida, poder estar ao seu lado, com o mesmo carinho e atenção com que nos pegaram ao colo.

 

Publicado no número especial Envelhecer – União das Misericórdias Portuguesas

Professora Universitária FCSH/UNL HTC/ Socialdata Nova4Globe e Observatório para as Condições de Vida e Trabalho