Cada um é de onde se sente bem e eu tenho o hábito muito antigo de me sentir em casa para qualquer lado onde vou, seja nas faldas das montanhas do Pamir ou em pleno Registan de Samarcanda onde as andorinhas parecem voar em voos suicidas contra as paredes policromas das madraças e havia um rapazinho que tirava fotografias por meia dúzia de moedas e se chamava a si mesmo Zica Polaroid, um dos nomes comerciais mais bem caçados que alguma vez ouvi. A táctica não tem requintes.
Encontro rapidamente os meus lugares, as minhas rotinas, os amigos que me bastam; procuro sobreviver com o que me agrada e relevar o que poderia aborrecer-me. Quando me mudei para Alcácer do Sal fugi a sete pés daquilo que O’Neill chamava o meio pulvimerdento da cidade que é linda como poucas e mal frequentada também como poucas. Já não é questão de salvar Lisboa, que parece não ter salvação possível, mas salvarmo-nos de Lisboa.
Não precisava de encontrar uma cantina – é fundamental ter sempre uma mesa confortável e bem servida por perto para criar magia na vida – porque há muito tempo que a Dália e o Fernando nos recebem no Porto Santana como amigos que são e a sorte é nossa porque há poucos restaurantes por Portugal fora tão bom como o que têm. Ia à procura do silêncio e encontrei-o, tirando uma ou outra saloiada de provocar aneurismas, felizmente cada vez mais raras.
O silêncio das noites de Alcácer devia ser considerado património universal pela Unesco e, como todos os silêncios, está cheio de pequenos ruídos que lhe garantem a existência: o marulhar do Sado, o coaxar das rãs, o pio do mocho, as horas no sino da igreja de Santiago.
Por cima do silêncio há estrelas que brilhavam ontem num céu sem lua. Milhares de pontos prateados num fundo escuro como se teimassem em contrariar a avareza do luar. Pois. Foi a única coisa que falhou: esquecemo-nos de contá-las. Enfim, coisas que só o coração pode entender…