Não, não se trata da “mão invisível” de Adam Smith, mas das mãos e cabeças que determinam as opções, os critérios e as consequências do que acontece na sociedade portuguesa, numa crescente espiral de falta de equidade, senso e sentido de coesão.
A visibilidade assume uma centralidade nos tempos modernos, ao ponto de a existência de uma ideia, de um projeto ou de uma iniciativa estar mais dependente da perceção social do que do seu posicionamento real. A realidade existe além da visibilidade, mas não é devidamente considerada, daí a profusão de exposições individuais nas redes sociais, numa inversão frequente do “penso, logo existo”. O “mostro, logo existo” está presente em muito mais do que parece, servindo para que as cabeças e as mãos invisíveis da praça desenvolvam estratégias que nada têm a ver com o interesse comum ou com um sentido de igualdade no tratamento das realidades iguais ou similares. Bastam três ou quatro perguntas para ficar claro que o país está entregue a demasiadas mãos invisíveis, sem escrutínio e sem prestação de contas pelas opções que são feitas. É assim no público, mas também no privado. No mínimo, falta explicação.
1. Face ao padrão instituído na investigação criminal, por que razão, existindo relatórios que evidenciam o desbaratar de património e de recursos no Novo Banco, depois das injeções de dinheiro dos contribuintes, não estiveram os decisores sujeitos aos espetáculos de detenções para audição a que estiveram sujeitos outros cidadãos? A investigação judicial tem impulsos diferenciados em função dos protagonistas e da relevância mediática das iniciativas? É verdade que nem uns nem outros deveriam estar sujeitos a esses espetáculos, a menos que houvesse perigo real de fuga e não delírios judiciais, mas qual o critério das encenações?
2. Face ao perfil populista do jornalismo do grupo Cofina, que se insurge de forma seletiva com tanta coisa e não hesita em desenvolver investigações orientadas, estranha-se que não haja uma investigação a uma autarquia da margem sul liderada pela CDU que, a pretexto de um evento alegadamente singular, deposita nesse media por ajuste direto 244 mil euros, depois de ajuste similar de 100 mil euros em 2018. Não se investiga isso, como nada se diz sobre os eucaliptos ou sobre o tango da indústria do papel com o Rio Tejo. Serão critérios jornalísticos ou meras mãos invisíveis?
3. Como é possível que o Presidente da República, na ânsia de opinar sobre tudo, em todo o lado, a todas as horas e nos mais diversos estados de alma, tenha o desplante de contestar que o Tribunal Constitucional tenha escolhido uma agência de comunicação para o apoiar na divulgação das deliberações e na relação com os media, até para lhes facilitar o trabalho, por exemplo, no acesso a documentação, quando tem nos serviços da Presidência contratações de empresas similares? Bem prega Frei Marcelo, olhem para o que eu digo, não para o que eu faço.
4. O que faz com que alguns temas e especulações em relação ao Sport Lisboa e Benfica sejam assunto por tudo e por nada, mas exista uma complacência enorme com a injeção de 15 milhões desviados BES Angola ou com a profusão de doping numa equipa de ciclismo que, apesar das evidências e das consequências, até pode participar na Volta a Portugal com recurso a tarefeiros do pedal apresentados engalanados com a marca em causa?
5. Como é possível que alguns possam fazer o que não é possível ao cidadão, quando este, no quadro dos seus direitos e deveres, por regra, sujeita-se a uma miríade de fiscalizações, inspeções e afins, posicionadas num 80, no que concerne à intromissão na sua esfera de personalidade, mas num 8 na consideração cívica pelo outro como merecedor de critério, explicação e tratamento igualitário?
Vivemos tempos estranhos, em que a falta de critério das cabeças e mãos ocultas reiteram um sustentado registo de arbítrio preocupante, num quadro de crescentes dúvidas, incertezas e dificuldades das pessoas e das comunidades. Numa sociedade de mínimos, o arbítrio pode medrar a partir dos abusos de posições mais ou menos dominantes, mas é preciso termos noção dos seus impactos na observância das regras e na instalação de um contexto de selvajaria, de um vale tudo em que se sabe sempre como começa, mas nunca como acaba. Sem solidez na previsibilidade das regras, restará o arbítrio institucional, público e mediático. Será esse o caminho que pretendem as cabeças e as mãos invisíveis da praça? E os portugueses?
NOTAS FINAIS
A BOLA QUASE A ROLAR, FUTEBOL POSITIVO PRECISA-SE. Estão quase de regresso as emoções do jogo jogado e, infelizmente, a barganha dos programas de bota-abaixo. É preciso um compromisso para um futebol positivo, para os clubes, os adeptos e o fenómeno, sem mãos invisíveis a tentar passar entre os pingos da chuva como acontece com a Federação Portuguesa de Futebol com a arbitragem e a disciplina, principais pontos de discórdia, em que são os responsáveis últimos pelas decisões. Mais rigor, transparência e explicação significam maior confiança na prova, agora que todas as esperanças são renovadas e que todos os riscos deveriam ser mitigados. O Presidente da Liga avançou com ideias positivas, emergiram logo os instalados. O que está mal, muda-se, não se perpetua como sistema ou modus operandi. Que venha o espetáculo, sem mais do mesmo.
MISÉRIA IMPERIAL DA RÚSSIA. Em boa parte, a Rússia nunca deixou de ser soviética nas atitudes, como os comunistas sempre mantiveram a adesão ao modelo ideológico que não provou. É tudo o que justifica a ousadia da Embaixada da Federação Russa em Lisboa para vir ameaçar um artista português, em solo de um Estado de Direito Democrático, pelo exercício da sua liberdade de expressão, da sua criatividade cultural, perante a barbárie que desenvolve com a guerra na Ucrânia. Tenham juízo!
CHEGA, É PRECISO ATUAR NAS CAUSAS. Os exercícios de contenção democrática do Chega no parlamento só farão sentido se além da ação dos democratas no palco de exposição pública e mediática, houver real, sustentada e consequente intervenção nas áreas e zonas de implantação da entidade. E nessas, das forças policiais aos militares, dos bombeiros a algumas comunidades locais, vê-se muito pouca ação.
Escreve à segunda-feira