Um encontro fugaz entre um cineasta, um pintor e um poeta

Um encontro fugaz entre um cineasta, um pintor e um poeta


Ervas contém vários livros, todos em diálogo, partindo dos filmes de Yasujiro Ozu, sendo o seu cinema lido tanto pela poesia de João Miguel Fernandes Jorge como pelo trabalho pictórico de Rui Vasconcelos.


A edição é cuidada, demonstrando o que pode fazer o serviço público, e contém vários livros ao mesmo tempo, todos em intenso diálogo uns com os outros. Ervas tem o trabalho pictórico de Rui Vasconcelos, cuja intensidade se mede na forma como, na fragilidade, vemos nascer a imagem a partir de um movimento caótico, entrópico – aquele que é interior à natureza. Cheia de sombras e de vazios, de entrelaçamentos, lugar sem caminhos onde só nos podemos perder, o caos vegetal, imparável, faz valer toda a sua potência de natureza que não nos reconhece. Tem, igualmente, o trabalho de Rita Azevedo Gomes, a quem se deve o primoroso e sóbrio arranjo gráfico do livro e a escolha dos fotogramas dos filmes de Ozu. Figura, de forma perfeitamente justa, como um dos seus autores e o seu gesto é triplamente difícil: os fotogramas contam, também eles, uma história, ao mesmo tempo que lêem o cinema de Ozu (a importância do gesto, das coisas, a paisagem industrial e urbana, com as chaminés das fábricas e os comboios) e dialogam, de forma distante, nunca direta nem ilustrativa, com os poemas de João Miguel Fernandes Jorge e com o trabalho de Rui Vasconcelos. Uma ou outra personagem que comparece em ambos, um plano que ressoa com um verso, um motivo diferentemente interrogado na poesia e no fotograma: é assim que se tece o diálogo delicado que Rita Azevedo Gomes instaura entre os fotogramas que escolhe e a poesia de João Miguel Fernandes Jorge. Como um ligeiro murmúrio de múltiplas vozes, tudo, neste livro, ecoa, tudo se inscreve num movimento que é, ao mesmo tempo, único, singular e diferenciado, como “as ervas nas dunas/ diapasão a vibrar ao sopro do mar/ testemunham dias futuros.”

E, por fim, tem o trabalho poético de João Miguel Fernandes Jorge, divido entre o conjunto de poemas, passagens dos diários de Ozu (em francês, optando JMFJ por não traduzir) e entradas de conteúdo diarístico, onde, por vezes, comparecem breves comentários à obra de Ozu. Já tínhamos tido, de JMFJ, um conjunto de poemas dedicados a Bresson e a Dryer e, no prefácio, José Manuel Costa alerta que Ozu, Bresson e Dryer constituem o que um investigador chamava de “estilo transcendental”, isto é, uma forma de o inefável se dar a pensar no cinema. E este conjunto de poemas, seguindo um movimento parecido, são plantados e germinam nas margens do inefável – para seguirmos o motivo vegetal, tão presente em Ervas, que instaura um espaço de diálogo com o cinema de Ozu e o trabalho de Rui Vasconcelos.

Na poesia portuguesa contemporânea, JMFJ é talvez o poeta onde o diálogo com outras formas artísticas atinge uma forma mais intensa e coerente – ao ponto de se confundir, tantas vezes, com esse diálogo. Escapa aos gestos mais fáceis, que seriam a tendência para a écfrase, para a mera descrição, através de versos, de planos de determinado filme (Ervas reúne poemas sobre 20 filmes de Ozu), ou a de partir de detalhes que funcionam tantas vezes como meros pretextos para um poema. Se hoje a referência musical ou cinematográfica toma tantas vezes o lugar da tradição literária e poética – sinal, talvez, de um retrocesso do carácter obsessivo com que se lia certos poetas, como se houvesse aí um corpo-a-corpo fundamental que escapa a qualquer lógica da influência -, em JMFJ a tradição poética é estendida de forma a englobar outros gestos artísticos, e, neste caso em concreto, o cinema de Ozu.

E o gesto de JMFJ é múltiplo, diferenciado e diferenciador – como afirma numa pequena nota no final do livro, os poemas “enviam em proximidade e distância para vinte filmes de Yasujiro Ozu”. Há aqueles, sem dúvida, que se tornam facilmente identificáveis, fazendo referência tantas vezes a planos determinados ou a determinadas personagens de Ozu. “O Barco”, por exemplo, que começa por resumir a história de Viagem a Tóquio para, de seguida, se ater a um dos planos iniciais do filme – planos tantas vezes simples, mas que podem modificar a tonalidade do filme, como aquele onde vemos chaminés fabris que “anunciam a cidade/ estendal de roupa branca ao sol/ os cem lugares por onde o vento curva a /erva nova e farrapos”. Há outros, no entanto, mais distantes, cujo eco ou laço que estabelecem com os filmes são mais longínquos, mais delicados – “delicada fragância”, como afirma num outro poema, poderia ser uma das formas de descrever a maneira como JMFJ vai integrando o cinema de Ozu na sua poesia, sem nunca se tentar impor, nem nunca sobredeterminar o cinema deste, sem nunca o dobrar à sua voz. É uma fidelidade – aquém de qualquer representação – que se dá a ver na inserção de falas dos filmes ou de planos determinados e que dá lugar, tantas vezes, a imagens que condensam em si uma energia que dificilmente encontramos na poesia contemporânea, avessa a uma certa sobriedade e a um recorte límpido do verso – imagens como esta, por exemplo: “um cordão de búzios era o canto límpido da onda/ espraiada na face.”, ou esta, que ecoa com Dias Serenos de Outono: “a mulher, crisântemo em flor/ a filha, tece-lhe o rosto cavatina de vento.”

Seria interessante, aliás, interrogar a oficina poética de JMFJ, que é tantas vezes reduzida a inspirações, influências, locais e horários de trabalho. É uma poesia do encontro fugaz, que quase não deixa impressão na memória, que deposita neste uma imagem, um pequeno acontecimento, “questões menores” e “mistérios bem menores” (“Passos tão leves/ quase não deixam rasto, o/ rapaz/ apenas o suficiente para as marcas // do seu crescer/ permanecerem visíveis/ por instantes). Mas toda esta fugacidade, o efémero que deixa entrever, é índice de uma contenção, de uma sobriedade avessa a qualquer excesso – mesmo quando parece ganhar fôlego narrativo, a poesia de JMFJ é pouco palavrosa, contida; semelhante a estes gestos de um tempo outro que encontramos no cinema de Ozu, também ele apostado em eliminar qualquer excesso, a poesia de JMFJ parece tantas vezes um exercício de desbaste, de aclaração, de recorte límpido – do verso, da imagem -, de forma a concentrar a energia em pouco movimentos, de forma a fazê-la surgir, como um clarão que ilumina brevemente o poema.

“Questões menores

neve ventos granizo geada

a roda do tear no rodeio da vida, o

movimento dos corpos celestes

e o que está para além

se não no nosso mundo, então

noutro mundo qualquer

 

mistérios bem menores

eclipses relâmpagos

trombas de água nuvens chuva

os fios entre os cossoiros de ferro a

rolarem o urdume do pano

tremores de terra vulcões

a dureza da vida

gira o boné na mão do rapaz”

É a última imagem (“gira o boné na mão do rapaz”) que concentra em si todas estas “questões menores” e “mistérios bem menores” – que só o são graças a ela, que lê o poema a contrapelo.

Continuamos a encontrar, nesta poesia, aquele denso erotismo que parece nascer nas margens das imagens que cria (“de um vaso/ irrompe no outro a flor do açafrão // rapazes nus – o outro nome da flor amarela”), como se este erotismo as viesse inundar, dando-lhes uma concentração própria, uma limpidez delicada, a breve felicidade sempre em estado de promessa – uma promessa de felicidade, como dizia Stendhal relativamente à beleza.

No entanto, Ervas acrescenta algo a essa promessa de felicidade – uma serenidade que é rente às coisas, que não se separa delas, mesmo quando estas são caóticas, tantas vezes violentas como essas “questões menores”. Não chamemos velhice, porque JMFJ encontrou uma formulação bastante mais interessante para o lento declinar quando se refere a Shukichi e Hirayama, personagens de Viagem a Tóquio: eles são “tocados pela turvação da tarde”. É esta turvação da tarde, presente também no cinema de Ozu (estas duas personagens, em particular, têm-no num grau dificilmente comparável), que lemos em diversos poemas de Ervas, um olhar sem nostalgia (“No remanso da vida/ o desejo de chuva e nevoeiro/ trazem a lonjura do teu sorrir e o negalho/ de cabelo brincão”), cheio de serenidade e desprendimento, que estima a imperfeição (“Nos últimos tempos/ vivo para as plantas do meu jardim/ procuro a mínima deformação (…) estimar estas imperfeições/ nasce de um pensamento igual”). Talvez não seja por acaso que JMFJ, num dos apontamentos diarísticos que acompanham os poemas, convoque o poeta japonês Saigyô:

“O mais ardente desejo

morrer sob as flores da cerejeira

disseminar-se na terra

durante a lua cheia

do décimo mês”

Mas na turvação da tarde, e isto também se lê nesta poesia de recorte límpido, somos igualmente esse “rapaz pequeno, erva que brincou/ no mar dos pinhais/ com pescadores ao longe,/ testemunho da terra e também/ dos céus é hoje/ faia rubra, erva ardente”.