“Pode o sorriso ter mais elevação que a gargalhada. Mas vivemos uma época em que o riso é tão necessário como o pão, desde que a alegria-relâmpago que ele traduz seja salutar, efeito de emoções dimanadas da fábula realista, que anda ao de cima da vida. E arte em toda a obra enxerta”.
Andavam poéticas as notas editoriais de o Diário de Lisboa e depois da estreia de O Pai Tirano, a 19 de setembro de 1941, uma sexta-feira, não foi diferente. Lia-se assim na primeira página do jornal, saudando o “batalhador, paladino iluminado e estudioso constante” António Lopes Ribeiro, realizador que abria um novo capítulo na produção cinematográfica portuguesa, a viver a sua época de esperança.
Das Produções Lopes Ribeiro viriam a sair O Pátio das Cantigas, Aniki-Bobó, Amor de Perdição e Camões. Hoje estreia a adaptação do clássico do cinema português que deixou no imaginário o mestre Santana, Chico e Tatão – e na tela uma Lisboa que já não existe. Pelas páginas dos jornais e da revista de Lopes Ribeiro, Animatógrafo, que documentou toda a produção, viajámos 81 anos até ao país que acolheu o original, que nos últimos anos alguns autores têm notado que não foi um sucesso assim tão retumbante, com sete semanas nas salas do Éden, atribuindo a longa vida no imaginário coletivo à programação da televisão portuguesa nos anos 60, que o repôs várias vezes.
Se a história é sempre feita à posteriori, naquele setembro de 1941 foi sucesso. O mítico cinema Éden nos Restauradores, porque suspiram os populares logo nos primeiros minutos do filme – tinha aberto em 1937 – teve lotação esgotada e não foi só no primeiro dia. Na antevéspera, a sala estava cheia pelo menos até ao sexto dia de exibição.
‘Vestem, falam e andam como o povo’ “Nas páginas interiores do Diário de Lisboa, o filme de estreia das produções Lopes Ribeiro que pretendiam profissionalizar a máquina do cinema nacional – gabando-se da gravação em apenas 75 dias, não falhando a data de estreia apesar de contratempos – era alvo de análise, quase psicanálise.
“O Pai Tirano não pode comparar-se a qualquer outro filme português. Nem melhor, nem pior – diferente. Daí em parte, também, o seu grande interesse. Nas outras obras do cinema português tem havido a preocupação superior da arte, e os seus autores – em cinema diz-se realizador – têm posto no trabalho muito da sua personalidade, refletindo o seu temperamento artístico, o seu gosto e predileção, a maneira de encarar a vida, esquecendo-se do público, afinal a quem as obras se dirigem. Desta vez procedeu-se de forma diversa. A personalidade do realizador apagou-se um pouco, talvez propositadamente”, escrevia o repórter.
“Não há paisagens nem meias tintas, nem sentimentos, nem estados de alma em que ele se revele, embora se lhe reconheça, evidentemente, a personalidade. Tudo foi feito – dá essa impressão – tendo em atenção o público, pensando nele, nos seus gostos, nos seus juízos, espreitando as suas reações. Os atores movem-se num quadro estreito, em faixas de Lisboa muito conhecidas, vestem, andam e vivem como qualquer pessoa do povo. O público tem assim algumas vezes a sensação de que também representa. E como tudo está realmente feito para o cativar, para o distrair, ele ri-se ou sorri sem esforço do princípio ao fim, de todas as situações que lhe são dadas, maravilhosas de graça, ironia e pitoresco”.
O cenário eram os armazéns Grandella, no Chiado. Um empregado da sapataria – custavam 10 escudos os sapatos modernos que tenta vender ao lado do mestre Santana, caixeiro de dia, dramaturgo de vocação – apaixona-se por uma rapariga que gosta é de cinema e tenta esconder-lhe esse gosto, que por aqueles dias mobiliza os ‘Grandelinhas’ de Santana até à grande estreia, numa intriga amorosa à bairro de Lisboa onde toda a gente se conhece e onde Tatão aspira mais, e só se deixa seduzir quando acredita que Chico é rico.
“No fim, tudo acaba bem, exatamente ao gosto da plateia. Deseja-se ao par amoroso largo futuro de venturas e pronto”, descreve o crítico, salientando a seriedade do filme ter estreado na data prevista – como prometia a publicidade, 75 dias depois da primeira volta da manivela – e de não haver solenidade na estreia. Senão, apontava-se: “ser interpretado por atores de teatro, que nós conhecemos. Julgamo-nos no teatro, estando no cinema.”
É nas páginas da revista Animatógrafo, publicada por Lopes Ribeiro neste período de ouro do cinema português e guardadas na Hemeroteca de Lisboa, que ficaram registados alguns marcos e peripécias da rodagem, que transportam também para o país de então. As filmagens começaram a 7 de julho.
“Cinema e cinéfilos devem estar hoje em festa: começaram as filmagens do Pai Tirano, primeira fita das Produções António Lopes Ribeiro”, lê-se na edição que foi para as bancas naquele dia. Arrancava o novo período de produção portuguesa, com tudo feito cá, já com pontapé de saída de José Leitão de Barros, que dez anos antes filmara A Severa, o primeiro filme sonoro português.
“Tudo até aqui se passou como se o Cinema português, sem saber nadar, lutasse desesperadamente para não morrer afogado. Volta e meia esbracejava, vinha à superfície. Mas rapidamente, à custa dum esforço que só valia momentaneamente pois tudo tinha de se sepultar logo em seguida. E não se avançava. Era tudo inglório. Trata-se agora de flutuar regularmente, nadando em boas braçadas, com a respiração normal. O método não vai ser esbracejar – a perspetiva que se nos depara não pode ser ficar sempre no mesmo sítio, ora acima, ora abaixo – mas sim avançar regularmente”, prometia-se.
“Pôr à margem toda a tragédia” Não foram rosas, mas no primeiro filme eram, com objetivos bem definidos pelo seu ideólogo. O propósito n.º1, lê-se na revista Animatógrafo no tal dia em que a manivela rodou pela primeira vez, era “fazer rir”. E o manifesto era este em 1941 poucos dias depois da invasão da União Soviética pela Alemanha, com uma guerra que matava na Europa há dois anos.
“Numa época congestionada e alarmada como a que atravessamos em que todos os meios de comunicação de ideias se lançaram em desafio para nos dar a todos os momentos as mais graves notícias, numa época em que da rádio já quase desapareceu completamente a música para só ficarem as notícias dos combates; numa época em que o espetáculo desportivo do domingo é invadido pelos jornais da tarde e as suas novas da guerra; no tempo em que a tragédia é esmiuçada e estendida pelas páginas dos jornais que nunca nos contam um caso feliz, como se não os houvesse – fazer rir, afastar todos os pesados realismos ‘intelectuais’, pôr à margem toda a tragédia, trabalhar com a ternura, com a graça (…) tudo será obra social de valor e ganhar direito ao apreço do público”, lê-se, críticas não muito diferentes das que alguns traçam hoje aos media.
Havia ainda, para o mentor de Pai Tirano, uma distinção séria a fazer: piada e graça não são iguais, frisava a revista de Lopes Ribeiro, defendendo que era mais fácil fazer tragédia que comédia, o género com que se comprometia. “Nasce a graça do comentário com espírito e, por muito cáustica que seja, adivinha-se-lhe sempre um ar indulgente, um ar feliz. Nasce também da situação bem encontrada, da complicação tantas vezes ingénua e até inverosímil mas aceitável. Nasce como o humor do encarar das situações com otimismo e é extremamente nobre pela coragem de quem ri – quando ri francamente”.
Ora, a piada não: “é o trocadilho barato, filho da confusão. Nasceu ou para ferir, ou da situação duvidosa, ou para a situação equívoca. É dita em voz baixa, quase sempre (…) Com a ‘chalaça inconsequente’ e a ‘laracha superficial’, forma uma trempe pobre de coisas muito tristes, gastas paradoxalmente e abusivamente para fazer rir. É a necessidade de fazer constantemente uma seleção de todos estes inconvenientes que torna difícil fazer rir sem ceder nada ao gosto fácil, sem perder a honrada preocupação de fazer espetáculo alegre sim, mas também com qualidade, com valor”.
Prosa não faltava, assim como o elogio da aposta nos atores, entre os quais Vasco Santana, arredado nos tempos anteriores dos palcos. E ao longo de julho, agosto e até chegar a setembro assim foi nas páginas da revista Animatógrafo, que ia gabando outras estreias cá e no estrangeiro e onde se dava nota também das dificuldades da produção lusas, enquanto já se falava do propósito do filme seguinte, O Pátio das Cantigas: “dar um novo sentido à palavra popular”.
O inimigo nº1 das filmagens? O tempo Na rodagem de Pai Tirano, os desafios ficaram à vista. Inimigos cinematográficos, chamaram-lhes: “Uma avaria mecânica irreparável no momento cortou ao meio as filmagens no Alto de Santa Catarina que só se puderam concluir muitos dias mais tarde. Durante dias seguidos a equipe manteve-se alerta para concluir a cena mas o tempo não deixava por causa da forte ventania. E o tempo (que se revelou outra vez o inimigo n.º1 das filmagens) interrompeu outra vez de madrugada, com uma chuva miudinha e irritante uma cena que só nos últimos dias da semana passada se conseguiu filmar”, reportava-se já quase em cima da estreia.
Outro “susto” foi a falta de negativo, que obrigou a suspender por dois dias os trabalhos. “Com grandes dificuldades chegou da América, felizmente a tempo de impedir maior dano e em quantidade suficiente para nos deixar descansados”.
Certo é que no dia da exibição, tudo já parecia ter ficado para trás, com a equipa a dispensar uma estreia de gala, mas a revista a saudar as muitas “celebridades” presentes e a sala aberta aos espetadores comuns. “Tantos e tão calorosos aplausos nunca ouviu um filme português”, vaticinava. “Foi entusiasmo sincero, do mais espontâneo e fervoroso que se tem visto, que arrancou do segundo balcão de pé aquela saudação final feita com os lenços a acenar, como que a querer dizer que as palmas já não chegavam.”
A vida continuou, com os seus dramas quotidianos a par das notícias da guerra. No Diário de Lisboa falava-se por exemplo naqueles dias da crise do meio tostão: à falta de cobre para moedas mais pequenas, só havia quarenta milhões de moedas de meio-tostão a circular no país, o que dificultava os trocos e deixava os portugueses “a arder”, fosse no elétrico ou nas compras. “Raro é o mês em que não ‘perco’ dez a doze escudos. No fim do ano, o bastante para um fato’, lê-se no relato de uma conversa num café da Baixa.
Outra constatação era que Lisboa se modernizava, mas tardavam em aparecer os ascensores, gabados até pelo seu potencial educador: “A promiscuidade das escadas, perigoso fator de desvios de educação, desaparece com o uso dos ascensores. Um elevador é uma espécie de ante-sala. A sua natureza, mesmo, de transporte elétrico, habituaria as pessoas a serem mais convenientes nas palavras e modos”, escreve o diário.
Anunciava-se racionamento de gasolina, faltava carne e havia outras discussões em aberto, cíclicas, como a necessidade de Portugal ter o seu celeiro de cereais e depender menos das exportações: seriam ainda assim os anos de superávit.
“Portugal não aspira à grande indústria, porque não foi fadado para isso”, lê-se a 23 de setembro de 1941 na nota editorial do diário lisboeta. Bem podia fazer rir O Pai Tirano, que o pessimismo permanecia. “Liquidado o monstruoso conflito a que assistimos, as nações ficarão mais pobres que Job, sem falarmos da perturbação nervosa causada pelo choque final. Se as velhas ideias que, por mais dum século, presidiram à educação das gerações e à organização das sociedades, estão em vésperas de falência, apressemo-nos a abraçar ideias novas que, na tremenda derrocada, nos sirvam de guia, amparo e proteção (…) A agricultura, que tantos votaram ao desprezo, considerando-a retardatária e egoísta, breve voltará à sua tão antiga posição de domínio”.