Como acontece todos os anos, na semana passada, coube-me apresentar o relatório do ano transato das atividades do gabinete de Portugal na Eurojust à Comissão de Direitos Liberdades e Garantias da Assembleia da República.
Longe de se ter tornado numa mera formalidade, essa apresentação proporciona sempre aos deputados e ao membro nacional na Eurojust momentos de reflexão que, julgo poder dizer com verdade, servem para iluminar o trabalho de cada uma destas duas instituições.
Este ano, a pedido de um deputado, vi-me na contingência de explicar (e de me explicar) por que razão, estando consagrados no Tratado de Lisboa e no Regulamento da Eurojust os princípios do reconhecimento mútuo e da confiança mútua em matéria de cooperação judicial no âmbito dos países que integram a União Europeia (UE), surgem, ainda assim, desentendimentos, e mesmo conflitos, no momento da execução dos pedidos de cooperação fundados em tais princípios.
Se o reconhecimento mútuo das decisões nacionais está assegurado no Tratado de Lisboa (artigo 61.º, n.º 3), porque motivo surgem dúvidas ou incidentes que questionam a conformidade da consequente execução das decisões a que respeitam os pedidos de cooperação com o Direito Europeu?
A questão é pertinente.
O mais interessante da pergunta é, contudo, que ela, na sua aparente simplicidade, foi direta ao assunto: o mesmo é dizer, foi direta à própria razão de ser da existência da Eurojust e ao seu método de trabalho.
Por tal motivo, não sendo tão fácil de responder quanto possa parecer, tal pergunta propiciou-me, também a mim, uma reflexão que, de algum modo, quero aqui desenvolver.
Os princípios do reconhecimento e confiança mútua, que antes referi, fundam-se na presunção de que os países que integram a UE são regidos por legislação que respeita os primados da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia.
Em regra, é assim que acontece, e é por tal razão que o reconhecimento mútuo das decisões das distintas autoridades judiciárias europeias é possível.
Acontece que, da mesma forma que sucede a nível nacional, tal presunção, sendo, em princípio, comummente aceite, é, em alguns casos, posta à prova nos tribunais.
Razão porque se exige, em tais circunstâncias – cada vez mais frequentes, entretanto – a intervenção do Tribunal de Justiça da União Europeia.
Este órgão jurisdicional europeu é, pois, chamado por iniciativa de um tribunal de um Estado membro a interpretar e confirmar se uma dada decisão nacional, fundada numa lei nacional ou numa interpretação de uma lei nacional, respeita, ou não, os primados da Carta e do Direito Europeu.
A sua intervenção tem, por exemplo, sido decisiva na definição do que se deva entender como autoridade judiciária.
O TJUE afirmou que a noção de autoridade judiciária integra um conceito de Direito Europeu que corresponde ao de uma autoridade com poderes jurídico-processuais determinados e independente do poder político.
Razão por que pôs em questão, desde logo, os modelos de Ministério Púbico de alguns países e, bem assim, por esta via, alguns dos poderes processuais que eles hoje exercem.
A Eurojust, nesta interseção de princípios e decisões judiciais fundadas em culturas jurídico-judiciais muito diferentes e na aludida jurisprudência do Tribunal Europeu – que vai, caso-a-caso, constituindo e interpretando o Direito Europeu e os seus conceitos e noções – assume, por conseguinte, uma missão delicada.
A Eurojust não tem, convém recordar, poderes próprios de decisão, mas, apenas – e bem, em nosso entender – de aconselhamento e orientação operacional das autoridades nacionais na resolução dos casos concretos.
A Eurojust sendo constituída por autoridades judiciárias nacionais, não é, ela mesma, uma autoridade judicial ou judiciária autónoma, ou hierarquicamente superior, que possa, por isso, substituir-se às autoridades judiciárias nacionais que a interpelam ou tomar decisões à sua revelia.
Os poderes da Eurojust visam, no essencial, encontrar uma solução prática – mas legal – e aceitável, por todos os intervenientes, para os problemas reais que surjam no decurso da execução de uma dada decisão judiciária proferida num Estado Membro, consistente em levar a cabo medidas de investigação por uma autoridade judiciária de outro Estado Membro
O papel da Eurojust concretiza-se, portanto, a partir da criação de um clima de confiança entre as autoridades dos diferentes Estados membros; um clima que só pode resultar da procura conjunta e incessante – e, já agora, de respeito – da cultura e história judicial e judiciária de cada um.
Na verdade, independentemente da diferença da arquitetura dos sistemas jurídicos e judiciários europeus, há, quase sempre, um ponto em que a solução escolhida pelo legislador nacional pode ser compatível com a que se desenhou num outro sistema de cariz democrático.
As garantias que se buscam assegurar existem, não raramente, nos distintos sistemas, mesmo quando arrumadas, sistematicamente, noutro lugar do ordenamento jurídico ou judiciário.
É por tal razão que – sem passos apressados, nem imposições incompreensíveis e inaceitáveis para os distintos sistemas jurídico-judiciários europeus – tem sido possível, à volta das mesas das reuniões de coordenação que a Eurojust promove, e em que intervêm sempre as distintas autoridades nacionais, ou pessoalmente, entre os membros dos diversos gabinetes dela integrantes ou representados, ultrapassar problemas que, inicialmente, se configuravam como irresolúveis.
Este processo de respeito e compreensão histórica das soluções e instituições judiciárias existentes nos diferentes países europeus, realizada através do diálogo das diferentes autoridades judiciárias nacionais é lento – reconheçamos –, mas é, também, porventura, o mais seguro e o único propiciador da confiança mútua em que repousa o princípio do reconhecimento mútuo.