Migrações e cidadania. Gonçalo Saraiva Matias

Migrações e cidadania. Gonçalo Saraiva Matias


Quando o tema das migrações voltou a um lugar nuclear do debate internacional e a imigração passou a integrar o primeiro plano da discussão política portuguesa, revisitemos um ensaio, e o claro roteiro de argumentos éticos, económicos, políticos, sociais que nele marcam presença, e que podem ajudar-nos a balizar a conversação pública sobre o assunto.


O ensaio em causa é Migrações e Cidadania (FFMS, 2014), de Gonçalo Saraiva Matias, reconhecido especialista nestas matérias, assessor para os Assuntos Jurídicos e Constitucionais da Casa Civil da Presidência da República durante os mandatos de Aníbal Cavaco Silva, doutor em Direito pela Universidade Católica Portuguesa, docente e investigador na Universidade Católica Portuguesa, tendo defendido a tese de doutoramento “The path to citizenship: towards a fundamental right to a specific citizenship”. Realizou investigação na Georgetown University Law Center. É professor convidado na Washington University na St. Louis Law School.

Complementemos esta perspectiva com o estudo “Migrações e sustentabilidade demográfica” (FFMS, 2017), coordenado por João Peixoto, e com um acervo de elementos de experiência comparada internacional recolhidos, quanto às atitudes eleitorais de diferentes povos face à imigração, por Yascha Mounck, em “Povo vs Democracia” (Lua de Papel, 2019)

1. O argumento pelas «fronteiras abertas»: não está demonstrado que a vida dos nacionais para cujo país os migrantes se dirigem se encontre pior pelo facto de estes ali passarem a viver; e, mesmo que algum prejuízo de aí adviesse, era necessário que este fosse superior ao do migrante que não acede ao país pretendido, para se poder obstaculizar a entrada deste (nesse território). Um argumento (ético) de Joseph Carens.

2.O argumento pelo controlo (de cidadania) dos migrantes: se fosse, exclusivamente, o migrante a decidir acerca da cidadania tal não seria verdadeiramente democrático. A decisão ficaria nas mãos de uma pessoa só, em vez da multiplicidade e diversidade de pessoas e correntes existentes no interior de uma comunidade. O ponto de Martha C. Nussbaum.

3.Faz todo o sentido: um controlo, por parte dos Estados, a quem estão acometidos os desenhos normativos da regulação destas matérias, em função, por exemplo, da segurança nacional (registo criminal, etc.) ou questões de saúde (ex: epidemia da gripe das aves, etc.).

4.A diferenciação habitual (pelo menos, em termos europeus): os imigrantes têm acesso aos direitos fundamentais (liberdade de expressão, de pensamento, liberdade religiosa, direitos de personalidade, mas também os direitos sociais como o direito à saúde, educação, segurança social). Os direitos políticos é que, em muitas ocasiões, não são os mesmos dos que os cidadãos nacionais possuem.

5.Um acquis: a) o direito dos Estados de controlo dos seus fluxos migratórios; b) os efeitos positivos das migrações nas contas públicas; c) o efeito positivo das migrações, em geral, nas sociedades de destino, de origem e para os próprios migrantes, quer do ponto de vista material, quer do ponto de vista imaterial, enquanto elemento enriquecedor da diversidade cultural. A partir de Paul Collier.

6.Países com sistemas migratórios mais desenvolvidos: Austrália, Canadá, Nova Zelândia, EUA. Têm políticas migratórias com grande concepção e vários instrumentos administrativos a acompanhar.

7.Sistema de pontos: O primeiro país a conceber um sistema de pontos foi o Canadá, em 1967. O sistema procura antecipar a provável contribuição a longo prazo do migrante para a sociedade de acolhimento e sua economia. Factores (pontos) a ponderar: i) idade; ii) percurso académico; iii) conhecimento da sociedade de acolhimento e sua língua; iv) experiência de trabalho. Permite, nos critérios de seleção, ser claro, transparente e não discriminatório. Pode ser conhecido de antemão. Mecanismo flexível que permite contemplar vários factores e fazer variar o seu peso específico.

8.Pedra angular no tratamento de migrantes: a consideração da dignidade da pessoa humana. A ninguém, portanto, podem ser denegados direitos fundamentais. Já ao nível dos direitos políticos, faz sentido que os migrantes – nomeadamente, os que não se pretendam instalar, de modo permanente, num dado território/Estado – possam ter uma consideração diferente. No entanto, os migrantes, a sua posição, deverá ser a antecâmara da cidadania. Não devemos ter leis dirigidas a quem nelas – ainda que indiretamente, em democracia representativa – não participa (na elaboração destas). No taxation without representation. Seyla Benhabib tem participado nesta discussão acerca de quem compõe, hoje, o demos. Para que não se repita a experiência grega antiga (sem mulheres, escravos ou estrangeiros a integrar a polis).

9.O elogio de Portugal: a separação de entidades que estão vinculadas à questão migratória, mas numa ótica de fiscalização, e outras a esta adstritas, mas numa lógica de integração e acolhimento, tem merecido elogios internacionais.

10.A novíssima migração: representada por jovens quadros, a trabalhar em multinacionais, que fazem o percurso Norte-Sul, em sistema de grande rotatividade, dadas as oportunidades, muitas vezes muito bem remuneradas, em países pobres ou emergentes. De aí o fenómeno de considerável emigração, também, em população de países ricos – neste tempo de globalização.

11.Falácias sobre imigrantes: "a ligação entre imigração e terrorismo é largamente despropositada já que não só não há relação entre ambos os fenómenos como a experiência demonstra que, em alguns casos, os ataques terroristas são perpetrados por cidadãos nacionais, como exemplos recentes no Reino Unido o comprovam" (p.25, Gonça).

12.Falácias sobre imigrantes (II): "o argumento financeiro [contra o reconhecimento de direitos sociais aos imigrantes ilegais] assenta, normalmente, na convicção de que os imigrantes ilegais não pagam impostos e, assim, estariam a beneficiar de serviços suportados pelos nacionais e pelos imigrantes legais. Esta convicção não corresponde, todavia, à realidade. Na maior parte dos sistemas fiscais, os imigrantes ilegais pagam impostos. Desde logo pagam os impostos de consumo como o IVA, exactamente do mesmo modo que todos os consumidores num determinado país. Depois, quanto aos impostos sobre o rendimento, é também possível que o seu pagamento ocorra por via da retenção na fonte na medida em que as autoridades fiscais não procedem ao controlo do estatuto migratório dos sujeitos passivos. Finalmente, na utilização de serviços públicos os imigrantes ilegais pagam todos os tipos de tributos e taxas que são devidas como contrapartida da prestação desses serviços. Assim, não corresponde à verdade que os imigrantes ilegais se encontrem numa situação de «imunidade fiscal» em resultado da sua situação perante o regime migratório, pelo que o argumento financeiro não pode ser considerado decisivo na negação de direitos sociais aos imigrantes ilegais" (p.42).

13.Falácias sobre imigrantes (III): a experiência vem demonstrando que os Estados são incapazes de controlar, menos ainda eliminar, a imigração ilegal. Há cerca de 12 milhões de imigrantes ilegais nos EUA.

15.Um caminho em tempo de globalização: "seria possível estender aos imigrantes um conjunto de direitos humanos e alguns direitos de cidadania, como o direito de voto, de maneira que, simultaneamente reconhecesse direitos de cidadania sem atribuir o estatuto de cidadão. Isto permitiria atribuir direitos aos imigrantes que seriam próprios dos cidadãos sem os integrar definitivamente na comunidade nacional, o que seria mais consentâneo com uma época de globalização em que as pessoas estabelecem elementos de conexão com diversos Estados e sem estabilidade temporal. Não existe um perfil único de migrante. Há pessoas que migram para se estabelecer e criar família e outras que migram temporariamente para um trabalho ou tarefa específica (…) Nenhuma resposta é adequada para todos" (p.52).

16.O regresso de jovens emigrados: Taiwan e a Coreia do Sul investiram fortemente no regresso dos seus jovens quadros expatriados, alterando o seu perfil migratório na última década.

17. De um modo muito paradoxal, num tempo caracterizado pelo regresso das fronteiras, pelo medo do outro, por atentados que lançam dúvidas sobre, e em, comunidades inteiras, em Portugal vemo-nos confrontados com uma exigência de natureza inversa: os estudos sobre a demografia apontam a urgência da imigração para que o país não definhe quer quanto à população que permeia o território, quer quanto ao preenchimento de postos de trabalho e satisfação da economia, mitigação do envelhecimento da população, dinâmica social, quer, ainda, relativamente ao sistema de Segurança Social. É isso que nos vêem dizer as projeções elaboradas por um vasto grupo de cientistas sociais, de diferentes universidades portuguesas, com liderança do Prof. João Peixoto (“Migrações e sustentabilidade demográfica”, FFMS, 2017). Sem migrações, sem entrada e saída de pessoas, os cálculos apontam para que Portugal passe de 10 milhões e 400 mil pessoas em 2015 para 7 milhões e 800 mil pessoas em 2060. Com mais de 65 anos, nesta mesma projecção – anterior aos efeitos demográficos que começamos agora a descortinar da pandemia covid19 em especial, o “excesso de mortes”, ocorridas nos últimos dois anos, na população idosa -, a percentagem da população portuguesa (nesta faixa etária) passaria de 20%, em 2015, para 40%, em 2060. Para que a população portuguesa não diminuísse, segundo este estudo, necessário seria que o saldo migratório anual fosse positivo em 47 mil migrantes (partindo do pressuposto de que os índices de fecundidade serão idênticos entre os migrantes que saem e aqueles que entram no país, e que a composição etária destes migrantes é idêntica à de anos anteriores, para os quais possuímos os dados dos Censos). Por outro lado, para manter a mesma população em idade ativa (face à que hoje existe, no nosso país) o saldo migratório teria de ser positivo em 75 mil pessoas. Quanto às migrações necessárias para parar a progressão do envelhecimento populacional, elas implicariam a chegada de um contingente populacional a Portugal muito mais numeroso: 590 mil pessoas por ano. Em diferentes cenários prospectivos para o emprego, e mau grado a automação, a previsão deste estudo é que nas médias e altas qualificações o emprego aumente; diminua, entre as “baixas qualificações”. Mesmo no cenário de mais baixo crescimento económico sempre seria necessário um saldo migratório positivo para atender à mão-de-obra de que carece a economia portuguesa. Nas qualificações baixas, os trabalhadores, sem migrantes, serão escassos para as necessidades (em qualquer cenário, optimista ou pessimista) projetado. Já nas qualificações médias, num cenário de fraco crescimento económico, poderiam não ser necessários trabalhadores advindos de migrações. Mas só neste pior cenário. Nas altas qualificações, em qualquer cenário, as migrações são essenciais. De um ponto de vista global, para assegurar as necessidades de população activa, Portugal precisaria de um saldo positivo anual na ordem das 90/100 mil pessoas – nos melhores cenários da economia -, enquanto nos cenários menos exigentes, 40 mil/ano (neste momento, no nosso país, a clara maioria dos imigrantes são brasileiros; em função do Brexit, muitos britânicos vieram viver para o nosso país e, nos últimos Censos, notava-se já a presença da população do Nepal e Bangladesh. Antes da guerra brutal de Putin, o número de ucranianos em Portugal estava em claro decrescimento, sucedendo o inverso com os indianos e reformados europeus. Os imigrantes em Portugal    têm uma muito maior prevalência de contratos a termo e temporários, têm horários mais compridos e estão mais associados a trabalhos por turnos. Como referiu Catarina Reis Oliveira, diretora do Observatório das Migrações, “em 2020 agravou-se a diferença no rendimento médio mensal dos imigrantes, que já é 8,3% inferior. Se for do Bangladesh recebe menos 32%. E muitas vezes a profissão não reflete a sua formação. Há 13% de estrangeiros com educação superior e que não estão a utilizá-la”, Expresso, 18-12-2021).  Num cenário de baixo crescimento económico, mas com migrações de substituição, o desequilíbrio financeiro vai sendo corrigido ao longo dos anos. As migrações de substituição, em qualquer cenário, têm um impacto positivo, sendo que vai sendo maior ao longo do tempo. Numa palavra, a existência de saldos migratórios positivos é condição necessária, ainda que não suficiente, para a sustentabilidade (demográfica e económica) do país. O desafio passa, pois, tanto por não cavalgar ondas populistas que fazem da rejeição do outro um programa – mas, felizmente, na sociedade portuguesa, temos tido bons exemplos de acolhimento de populações de culturas diversas, embora o contrário também aconteça como, tudo o indica, as comunidades afegãs o veem testemunhando, como o têm feito sentir nos protestos recentes que realizaram e que se espera que possam ser atendidos no que ao escrupuloso respeito pela dignidade da pessoa diz respeito -, mas, também, o de não ignorar a realidade da complexa integração e de compreensão de pessoas oriundas de culturas e mundividências que são diversas das da população nacional. Trata-se, finalmente, de conseguir articular o pluralismo – o convívio entre diferentes – numa sociedade, sem cair no relativismo – que seria dizer que tudo, todos os modos de vida, têm o mesmo valor. Quando o futuro do país aparece muito dependente das migrações – ainda que estejamos perante projecções e, por exemplo, se os efeitos da automação forem mais drásticos do que aqui previstos, as conclusões teriam que ser diferentes -, são grandes os desafios pela frente. Segundo a Pordata, em 2020 eram 661.607 os cidadãos estrangeiros titulares de autorização de residência, o que significou um aumento de 12,3% em relação a 2019. Pelo quinto ano seguido, constatava-se, então, um aumento da população estrangeira residente em Portugal.

18.Um passo que considero especialmente sofisticado em “Povo vs Democracia” (Lua de Papel, 2019), de Yascha Mounk, prende-se com a reacção de diferentes eleitorados (ocidentais) à imigração. Se há uma constatação, que podemos encontrar em vários lados/autores, é a de que não são os estados ou regiões com maior número ou percentagem de imigrantes (no total da população) a avolumar os resultados de partidos de extrema-direita ou de uma direita nacionalista que fez/faz da hostilidade aos imigrantes um tópico fundamental (de campanha), e em países/regiões nos quais o eleitorado coloca a questão da imigração como primeira preocupação, as consequências, os corolários, o raciocínio que daqui retira o cientista político formado em História, no Trinity College (Cambridge) é, tanto quanto tinha podido ler e escutar, bem mais amplo do que em muitas outras teorizações acerca do tema candente.

19.Se a hipótese de um eleitorado representar/supor que há muito maior imigração, e nomeadamente muçulmana, do que aquela que realmente existe em seus países ou regiões  – nos EUA, a maioria da população, quando questionada, tende a referenciar, em média, 17% de muçulmanos como compondo a população dos EUA, quando, em realidade, trata-se de apenas 1% da população; em França, a percentagem de muçulmanos na população é de 8%, mas a generalidade dos cidadãos acredita que ultrapassa os 31% – pode ser, e é, uma explicação aventada frequentemente para o voto nos partidos/personalidades populistas, todavia, o mais interessante, e o que distingue esta abordagem, é compreender que em uma zona dos EUA, com muitos imigrantes, a população, habituada a lidar com a diversidade e miscigenação, jovens que entendem mesmo como positiva esta heterogeneidade social, como que não nota um acréscimo de imigrantes (mesmo quando este ocorre), dado que estes fazem parte da sua paisagem quotidiana (e nestes territórios dos EUA, as forças partidárias que apontam baterias à imigração não obtêm bons resultados), em um outro lugar, de um outro Estado norte-americano, em que durante gerações as pessoas não contactaram com pessoas de outras etnias ou contextos culturais, uma vaga de imigração, por muito pequena que seja (e por muito que a população residente imigrante naquela localidade seja muito inferior aquela outra vinda de apontar) tende ou pode suscitar um desconforto e uma tensão no ar muito consideráveis, nomeadamente como ameaça a um modo de vida, a um dado mundo (e eis uma tentativa de explicação para este paradoxo de zonas com muito menos imigrantes, nos EUA, aderirem e se identificarem com um discurso anti-imigração com muito mais frequência e intensidade do que outras zonas, no mesmo país, onde a imigração é muito maior; o mesmo raciocínio se aplica a dadas regiões da Alemanha ou França onde o fenómeno eleitoral é muito semelhante). Procurar compreender, não justificar o que seja.

20.E que dizer da sanha anti-imigração em países da Europa Central e Oriental? Os exemplos húngaro e polaco seriam, neste âmbito, muito impressivos. A imigração para estes países é baixíssima, quando não nula, nomeadamente provinda do espaço cultural muçulmano (aquele que tem gerado, em especial no pós-11 de Setembro, mais receios nas populações ocidentais). Na interpretação de Yascha Mounk, citando, para o efeito, Ivan Krastev, o que aqui sucede é que "nações e Estados têm o hábito de desaparecer na história recente da Europa Oriental e Central": os residentes destes países, tendo perfeita consciência de que a população está em perda e que a imigração tem sido apontada como única solução para este problema, pelo que uma espécie de grande ansiedade toma conta de muitos cidadãos destas regiões. A impressionante emigração da população búlgara – 10% dos cidadãos búlgaros emigraram nos últimos 25 anos e a ONU prevê a diminuição da população da Bulgária em 27% até 2050 – como que condensará todos os alarmes sentidos: "o alarme em relação ao 'desaparecimento étnico' pode ser sentido em muitas das pequenas nações da Europa Oriental. Para eles, a chegada de migrantes assinala a sua saída da história, e o argumento popular de que uma Europa a envelhecer precisar de migrantes só reforça um sentimento crescente de melancolia existencial"(p.180). 

21.Não menos perspicaz é a desimplicação desta busca de compreensão, por banda de Mounk: numa concepção pessimista, populações de há muito monoétnicas não possuem condições locais para acomodar a imigração. Por terem pouca história de acolhimento de recém chegados e uma capacidade limitada para enfrentar o que é diferente, respondem de uma maneira negativa aos aumentos no nível geral de imigração e tenderão sempre a optar politicamente por partidos populistas; numa perspectiva optimista, as primeiras vagas de imigração para uma zona com as características vindas de apontar tenderão a ser recebidas com hostilidade, mas a habituação a uma sociedade multiétnica fará com que as atitudes relativamente à imigração evoluam no sentido de a considerar de modo positivo. A experiência da Califórnia – que votou claramente em partidos com retórica anti-imigração nos anos 80 e 90, excluindo certos imigrantes dos benefícios públicos, mas que nos anos 2000 e 2010 reverteu várias decisões que visavam os imigrantes duas décadas antes – demonstraria que, pelo menos em alguns lugares, o posicionamento mais optimista não deixaria de contar com certo apoio da história recente.

22.Uma abordagem suplementar, ao modo como a população, em diferentes latitudes, se vem colocando face à imigração: de acordo com a teorização de Ronald Inglehart, perante uma situação de escassez absoluta, em que há necessidade de encontrar alimentos e abrigo, a política tende a organizar-se em chave classista, com os mais pobres a defenderem partidos que sustentem a redistribuição e o Estado-Providência e os mais ricos a preferirem partidos que procurem proteger a sua riqueza. Contudo, em prosperando as sociedades, com uma percentagem cada vez maior da população com as suas necessidades básicas garantidas, podiam então emergir preocupações outras como o ambiente, a liberdade de expressão, o destino dos pobres no mundo. Os valores pós-materialistas impor-se-iam. A ideia de uma história em progresso levou a que não se atentasse devidamente, então, que este estado de coisas podia não se perpetuar. E um aumento considerável de imigração, associada a uma estagnação profunda do nível de vida, leva a um re-emergir do "materialismo" (ou, se se preferir, de valores pós-pós-materialistas). Diversas populações voltam a olhar de modo menos benigno para a imigração (e votam em partidos populistas).