Macau entrou mais uma vez num duro confinamento, esta semana, e o desgaste começa a sentir-se no seio da comunidade portuguesa. Muitos começam a fazer as malas ou a planear partir, fartos de ter a vida em pausa. Receia-se que um dos efeitos colaterais da política chinesa de tolerância zero à covid-19 seja que a língua portuguesa – que já estava em declínio em Macau desde a entrega desta antiga colónia à China, há duas décadas – se torne ainda menos presente nesta Região Administrativa Especial.
É fácil compreender a exasperação dos residentes de Macau. Sejam eles macaenses, originários da China continental, cidadãos portugueses ou os muitos outros trabalhadores estrangeiros, atraídos sobretudo pelos casinos desta Las Vegas da Ásia, que esta semana fecharam pela primeira vez em mais de dois anos. Passou a ser obrigatório ficar em casa exceto por motivos essenciais – quem se esquece como isso custou cá em Portugal? – e nem passear animais serve de desculpa. Também passou a ser obrigatório usar máscara na rua. Mas não umas máscaras quaisquer, atenção. Nem sequer máscaras cirúrgicas servem, têm de ser tipo KN95 ou de padrão superior, arriscando os infratores uma pena de prisão de até dois anos ou multa.
O constante policiamento, a incerteza, a separação de familiares ou amigos cá em Portugal – portugueses não-residentes só puderam voltar a entrar na Região Administrativa Especial de Macau (RAEM) no final de maio, mesmo os residentes têm que fazer quarentena de 17 dias no regresso – e os receios de perder o emprego começam a ser demais para muitos.
Encolhendo ainda mais a comunidade portuguesa em Macau, numa altura em que já só há registo consular de menos de 155 mil cidadãos portugueses nas Regiões Administrativas Especiais, segundo dados fornecidos ao i pelo Ministério dos Negócios Estrangeiros.
“Estamos a esvaziar Macau da presença de portugueses. Falamos de muita gente que tinha feito uma aposta de vida aqui”, lamenta o antropólogo Carlos Piteira, professor o Instituto Superior de Ciências Sociais e Politicas da Universidade de Lisboa (ISCSP), que se especializou em Macau, onde nasceu.
“A sensação da comunidade portuguesa, pelo menos aqueles com que tenho contacto, é de esgotamento”, explica o antropólogo, que viu mais de um terço dos seus conhecidos portugueses saírem de Macau, estando outro terço a planear fazer o mesmo. “Sei de gente que pondera até procurar emprego em Singapura ou no Dubai”.
Agora então, esse êxodo de portugueses nota-se ainda mais. Mas não necessariamente como reação às restrições anunciadas esta semana, “não é uma decisão em cima da hora”, garante Amélia António, a presidente da Casa de Portugal em Macau. “Há muitas pessoas que planearam o seu regresso para este verão, no final das aulas dos filhos”, relata ao i.
“A realidade é esta. Houve expatriados que saíram antes, outros tiveram de sair, nomeadamente trabalhadores não-residentes”. continua Amélia. “As coisas foram fechando, os casinos deixaram de estar ativos e muitos trabalhadores dessas empresas são não-residentes. Esses foram tendo que sair porque sem trabalho não podiam continuar cá”.
Macau encurralado por Pequim A questão é que, enquanto fora da China se tenta aprender a viver com o vírus, melhor ou pior, Macau deu por si pressionada a alinhar com a Administração central. Apesar de quarta-feira se terem registado somente 32 novas infeções nesta Região Administrativa Especial, com mais de 680 mil habitantes, bem como a sua quarta morte relacionada com a covid-19 desde o início da pandemia.
Ainda a semana passada, pouco antes de serem anunciadas as restrições em Macau, Pequim criticara o Governo desta Região Administrativa Especial, liderado por Ho Iat Seng. Num artigo no Diário do Povo, o jornal oficial do Partido Comunista da China, escrevera-se que “a abordagem de Macau não tem sido satisfatória”, salientando que o surto de covid-19 em Macau “embora repentino, não foi inesperado”.
Esta “chamada de atenção” do Governo central, como descreve Carlos Piteira, obrigou o Executivo de Macau a agir rapidamente. Esta antiga colónia portuguesa sempre foi apontada como o bom aluno de Pequim, comparativamente à rebeldia que se vê na outra Região Administrativa Especial, Hong Kong, e continua a sê-lo. Contudo, as restrições podem criar uma certa tensão.
Macau “sente nesta altura um estrangulamento enorme da sua atividade económica”, explica o antropólogo do ISCSP. Há muito que os casinos – a indústria legal do jogo em Macau é uma herança colonial portuguesa, que o partido comunista chinês, apesar de detestar jogos de sorte, decidiu preservar, com o chamado regime de “um país, dois sistemas”, levando a que jogadores vindos de toda a China, ou do resto da Ásia, afluíssem a este território, que chegou a bater Las Vegas em termos de lucros – são a grande fonte de rendimentos de Macau. Era isso “que permitia o El Dourado de uma governação orçamental muito à vontade”, explica Piteira. Ainda que a quebra não seja de agora, vinha do início da pandemia, deixando esta antiga colónia portuguesa de receber 40 milhões de visitantes por ano, como sucedera em 2019.
Na prática, o Executivo de Macau está sob uma “pressão enorme dos habitantes”, garante o antropólogo. “Não falamos só da pequena comunidade portuguesa. Até porque é um contexto localizado, há muita proximidade entre a população e o Governo local”, explica. “Começa a haver ruturas, porque é diferente lidar com um contexto de comunidade, como em Macau, ou ter linhas de orientação para toda a China, para metrópoles como Pequim ou Xangai”.
Saudade e dominação Mesmo quem viveu confinamentos em Portugal tem dificuldade em imaginar o stresse causado pelas medidas contra a covid-19 aplicadas pelo regime chinês, cujo inegável sucesso contra a pandemia tem um custo enorme.
Em Macau, é exigido aos habitantes que todos os dias façam um teste rápido e o enviem às autoridades, para que seja atualizado o seu QR Code, que têm de passar por um scanner para entrar em praticamente todos os espaços públicos e estabelecimentos comerciais. Depois, se houver um surto, recorrentemente são chamados aos centros de testes PCR, para testagens massivas.
Já a comunidade portuguesa ainda tem de lidar com a tão típica saudade. Afinal, poucos têm férias suficientes para visitar familiares, sabendo que no regresso a Macau tem de estar dez dias de quarentena num hotel – não falamos de ficar a desfrutar da piscina ou do bar, falamos de ficar fechado num quarto – e depois mais sete confinado em casa, impedido de ir a quase todos os espaços públicos, ficando o seu QR Code a dar amarelo.
A separação de familiares “tem tido um peso muito grande na decisão das pessoas”, admite Amélia António. Com a saída de portugueses em Macau – que se dedicam sobretudo a áreas como a advocacia, arquitetura, jornalismo, engenharia, marketing, gestão, consultoria, gestão ou ensino, segundo os dados do Ministério dos Negócios Estrangeiros – mesmo a própria presença da língua portuguesa está em risco, alerta a presidente da Casa de Portugal. “É óbvio que, quando saem pessoas que têm funções importantes, que são quadros qualificados, não substituídas com pessoas com a mesma preparação, portanto isso vai ter repercussões na parte social e cultural”, frisa.
A grande esperança para a comunidade portuguesa em Macau seria uma viragem de rumo em Pequim, no que toca à sua política de tolerância zero quanto à covid-19. Afinal, o desgaste é notório em toda a China – ainda a semana passada Xangai, que proclamara vitória contra a covid-19, voltou a sofrer um surto. Contudo, não são esperadas alterações em breve, pelo menos até à reeleição de Xi Jinping para mais um mandato à frente do regime, num congresso que se deve realizar em novembro, antevê Carlos Piteira.
O máximo que Macau pode fazer é esperar que Xi sinta a sua autoridade interna reforçada, para que a China comece a aprender a conviver com o vírus e “se volte a dedicar a dominar o mundo”, comenta o antropólogo, rindo.