Foi campeão do mundo de xadrez, perdeu o título e recuperou-o, e morreu campeão do mundo de xadrez, no Estoril, engasgado com um naco de carne ou muito provavelmente não. A.A.A. – Alexander Alexandrovich Alekhine.
Arthur Larrue, que nasceu em Paris em 1984 e vive actualmente em Portugal construiu um livro, peça a peça, frase a frase, sobre a complexa personalidade de Alekhine, considerado universalmente como um dos maiores xadrezistas de todos os tempos. Já quanto à sua sociabilidade, estamos conversados. Pouco lhe faltou para ser uma besta, se é que não a foi mesmo, tornando-se numa espécie de imagem invertida do maior dos seus adversários e inimigos, Raul Capablanca, um cubano finíssimo, dândi de profissão, que também chegou a campeão do mundo mas dedicava-se sobretudo a fazer exibições da sua arte nos grandes salões das capitais da Europa e da América do Sul sem nunca perder o seu tique inconfundível de cavalheiro dos trópicos.
Alexandre Alekhine nasceu em Moscovo no dia 31 de Outubro de 1892. Tinha tudo para ser como Capablanca e odiou-se a si próprio por não ter sido. Falava correctamente russo, francês, inglês e alemão. Em 1914 já tinha ganho torneios suficientes para ser um grande-mestre e sonhar com o título mundial que viria a arrebatar a Capablanca em 1927. Entretanto, a nova nomenclatura nascida da revolução soviética, desconfiava dele. Foi preso por espionagem, em Odessa. Depois desinteressaram-se dele. Deixaram-no à solta. Ou algo do género. Foi campeão da União Siviética, era um estudioso irreversível, fazia-se acompanhar para toda a parte das notas que tirava sobre todos os jogos a que assistia ou que jogava, confusamente rabiscadas nas margens dos cadernos, tanto em russo como em alemão, mas também em latim e em grego antigo, garantindo que ninguém pudesse traduzi-las.
Depois de ter batido o seu inimigo de estimação, Raul Capablanca, soltou a língua: “O que nos ensina a minha vitória? Que Capablanca está vencido! Nada nem ninguém é invencível, meus amigos. O que nos ddeve fazer pensar sobre a invencibilidade dos bolcheviques”. Estava em Buenos Aires, o calor dilatou-lhe a alma e as palavras. Estaline proibiu-o de voltar à Rússia. Tornou-se cidadão francês, mas foi chamado para cumprir o serviço militar como tenente-intérprete. Vestiu a farda e odiou-a, tanto como odiava Capablanca. Ou talvez tanto como começou a odiar-se. Mas isso Larrue explica melhor do que ninguém.
Loucura e alcoolismo
É comum dizer-se que os grandes génios do xadrez costumam ficar presos nas 64 casas do tabuleiro. As sombras vão, ao longo do livro, perseguindo Alekhine; os seus diálogos perdem a coerência; o seu medo torna-se absurdo. Com a subida dos nazis ao poder, sujeita-se à humilhação de escrever artigos pseudo-científicos sobre a distinta forma de jogar entre arianos e judeus, algo que choca profundamente a comunidade xadrezistica mundial e o faz perder o resto dos amigos que lhe sobram. No Paris Zeitung rabisca a sua sentença de morte: “O xadrez ariano é por natureza agressivo, ao passo que o xadrez que cedeu ao erro semita julga obter a vitória pela defesa”. Mas, graças a essa vénia aos nazis, voltou a poder participar em torneios internacionais ganhando algum dinheiro, ele que vivia por conta da fortuna de Grace, sua quarta mulher.
Tornou-se também um fantoche do exército alemão, servindo de parceiro para simultâneas com oficiais da Wehrmacht e das Waffen-SS. Convenhamos que é um dos pontos mais altos de frisson da narrativa de Larrue o momento em que no casino de uma Praga ocupada lhe preparam uma mesa em forma de U sobre a qual deverá jogar simultaneamente em 22 tabuleiros contra bestas sanguinárias de uniformes saturados de medalhas e de cruzes germânicas. Ao pousar os olhos sobre os 22 crâneos rapados que esperam excitadamente o momento de defrontarem o grande mestre, eis que o orgulho de Alexander Alekhine renasce num esforço supremo assente numa garrafa de vodka bebida praticamente de golada:
– Sois uns palhaços e já perdestes!
A frase é dita para com os seu botões. Para a plateia em seu redor, Alekhine limita-se educadamente: “Meus senhores, jogarei simultaneamente e… às cegas!
Pede uma poltrona e senta-se de costas para os adversários. Aguarda que o informem das jogadas. “Contra os vinte e dois, nenhum tabuleiro, nenhuma forma sólida, nenhum objecto apreensível e circunscrito”. Foi fumando cigarros, entrando numa espécie de transe. Hecatombe total. A pouco e pouco os alemães iam desistindo e abandonando a sala. Para o último adversário, guardou a humilhação mais aberrante. Ordenou que virassem o tabuleiro ao contrário. Pegando no que o oficial alemão fizera até aí, e que o deixara numa desvantagem extremamente crítica, revolucionou a partida e ganhou. Uma voz ergueu-se na sala:
– O Standartenfüherer Eisen perde no final de uma disputa formidável!
Algo tão ridículo que até Alekhine, o jogador mais infeliz do mundo, conseguiu sorrir por dentro.
Domingo, 24 de Março de 1946, no quarto 43 do Hotel do Parque do Estoril, Alexander Alexandrovich Alekhine foi encontrado morto. O governo francês não quis responsabilizar-se pelo repatriamento do cadáver. “As últimas palavras de Alekhine ficarão órfãs. Não haverá mais ninguém para as escutar, só as tílias podadas a cordel e os canteiros”.