Nunca se cansou disto: do desafio de puxar pelo rabo um acontecimento ou vários, pô-los em ordem, com umas taponas se preciso, e preencher um espaço definido, martelando uns linguados de prosa cinzelada, apoiando-se no instinto, na tarimba, para que a coisa resultasse clara. Os jornalistas são, afinal, uma espécie de galos dando corda nas trevas para que o dia nasça e a sua claridade se exprima com algum relevo na escala humana. António Ribeiro Ferreira gostava do ambiente buliçoso das redações, da forma como essa orquestra meio desavinda, em vez de uma harmonia, corre a atirar com os seus instrumentos de tinta e se lança a esse primeiro esboço da História. E isto sem grande margem para tomar balanço, exposta ao erro, tentando não ficar enredada nos vícios mentais que triunfam no imediato e em cada época. Mas há também esse outro lado, essas miudezas impressivas que escapam aos relatos triunfantes, e que veem o jornalista isolar-se, «uivar como um herege na fogueira das suas penas». Quem esteve com ele na redação, viu-o atacar o dia que vai nascer, cobrindo-o de insultos. Ribeiro Ferreira esteve muitas vezes nesse papel, a lutar contra a soneira geral. E se é triste vir aqui deixar a notícia da sua morte em letra de forma, é certo que o seu exemplo persiste nos tantos que tiveram o privilégio de estar na sua companhia e aprender com o seu ímpeto, o qual não se confunde com essas mãos atirando o milho que faz as galinhas beijar o pó.
António Ribeiro Ferreira morreu esta segunda-feira (27 de junho), aos 73 anos, vítima de cancro, doença com que se debateu ao longo de vários anos, como se lhe estendesse o crédito para que o viesse esbanjar na redação, tendo sido apanhado pela reforma quando chefiava a do jornal i, onde além de um breve período como diretor, fez um pouco de tudo, e esteve à frente das secções de Economia e Internacional. Foi uma carreira onde passou por todo o lado, desde o extinto semanário Tempo, ao Notícias de Primeira Página, foi editor e chefe de redação do Liberal, e em 1989 integrou, como redator de fecho, o Diário de Lisboa, na equipa de Mário Mesquita e Diana Andringa. No ano seguinte, foi convidado por Paulo Portas para integrar a equipa d’ O Independente, onde esteve até 1996 e, como chefe de redação, capitaneou aquela nau rombuda num período de irreverência sem igual no jornalismo português. Depois foi diretor adjunto de Mário Bettencourt Resendes no Diário de Notícias, onde permaneceu até 2003, passando ainda pelo Correio da Manhã, onde foi redator principal antes de chegar ao i.
Nascido em Lisboa, Ribeiro Ferreira formou-se em engenharia no Técnico, e tomou parte nas lutas estudantis antifascistas e na agitação política do pós-25 de abril no Movimento da Esquerda Socialista. Confessou mais tarde, nas páginas do i, que foram as cheias de 1967, que mataram centenas de pessoas na zona da grande Lisboa que o fizeram mudar de rumo e decidir que queria ser jornalista. «A emoção e o medo de entrar no Instituto Superior Técnico foi em outubro de 1967. O despertar para a vida veio mais tarde, quando, de pá na mão, andei por vilas e aldeias a limpar lama, a descobrir cadáveres e a revoltar-me contra um regime que deixou 500, 600 ou 700 pessoas morrerem nas inundações desse ano maldito. E foi então que as terríveis aulas de Matemáticas Gerais, Geometria Descritiva, Desenho e Química deram lugar a dias seguidos de lama, fome, frio, cansaço e muita revolta. A cadeira Lamas mudou-me a vida e marcou-me até hoje», escrevia no i a 25 novembro de 2017, 50 anos depois da tragédia.
Tinha um humor espantoso, capaz das inversões mais drásticas, e todos lhe conheciam a gargalhada aberta, a atitude generosa e a redoma alegre dos seus abraços, mas também, o lado reverso, e como não eram precisos mais que segundos ao lume para lhe ferver o sangue e se lançar numa das suas iras vulcânicas, fazendo soar os alarmes e prometendo erupções num esforço de garantir que ninguém «fodia» o fecho da edição. Isso era sagrado. De resto, para ele o jornalismo não era um trabalho, mas um sacerdócio, e a redação um mosteiro. Isto apesar de não haver nele um só osso beato, e de, em vez de uma vaga fé nalgum ser superior, preferir essa relação que se estabelece entre quem fala claramente, quem expõe os termos do seu entendimento das coisas, sem enrolar nem vir com balelas. Se se sentava para redigir uma notícia, fazia-o com as mãos treinadas, lestas, batia as teclas num ritmo nervoso, quase musical, que também nos instigava.
E se foi um grande jornalista, um exemplo para tantos, isso explica-se por Ribeiro Ferreira ter muito claro sempre que tudo o que realmente temos é o presente, isto embora poucos o vivam ou se esforcem realmente por compreendê-lo.
Para ele, o melhor de nós brota do confronto, de um convívio honesto em que somos levados a abandonar as ilusões que trazemos devido aos ângulos mortos da nossa visão parcial, e, por isso, respeitava como ninguém a diferença, odiando de morte a superioridade moral com que alguns se posicionam em questões complexas. Não era nada meigo com os «lacaios do sistema e do pensamento único», e preferia ser um inimigo dessa cultura bem-pensante a participar no enredo perverso com que o bom-senso disfarça essa forma de violência ideológica que procura promover como normal algo que é apenas uma imposição regulada por interesses de grupo ou de classe. Não era nem pessimista nem optimista. Para ele, o mundo não era nem isto nem aquilo, mas todas as coisas simultaneamente, e a cada um segundo a sua visão, a sua coragem, o seu sentido de dever para com as coisas em que acredita. Para mim, ele foi um amigo e um mestre que me vi muitas vezes obrigado a defender fora da redacção, quando se lhe referiam como um grande reaccionário. E eu tentava explicar-lhes que nunca conheci uma pessoa de esquerda que defendesse tão empenhadamente os colegas e, particularmente, esses que estavam em posições mais vulneráveis.