O Sr. João


“Nas últimas férias conhecemos o Sr. João. Trabalha nos barcos que fazem a travessia do cais da Fuzeta até à praia”.


Descobrimos a Fuzeta em 2014, quando por mero acaso passamos lá umas férias. Não era então o Algarve a que estávamos habituados. Ainda hoje é assim. De início estranha-se esta vila que parece ter parado no tempo. Num Algarve dos anos 90.

Não digo isto com desprimor ou com pouco respeito pelas suas gentes. É um facto. A vila, que cresceu desordenadamente, não é bonita, não é limpa, não está cheia de hotéis caros e elegantes. Mas transborda de uma genuinidade de que se aprende a gostar.

Apaixonamo-nos de imediato pela beleza quase intocada das suas praias magníficas, pela formosura da Ria Formosa ao entardecer, ao amanhecer, durante todo o dia. Durante todos os dias. Apercebemo-nos do privilégio raro de poder ter, em julho, uma praia (quase) só para nós.

É um lugar onde apetece estar. Só estar. À espera das andorinhas que ao final da tarde aparecem, frenéticas, para beber na piscina. Dando depois lugar aos guardiões morcegos livrando-nos gentilmente de alguns insetos que certamente nos incomodariam durante a noite. E depois anoitece, com as cigarras e o seu silêncio ensurdecedor que completa a noite.

Claro que tudo isto só funciona se não for a semana das festas da Fuzeta. Aí temos que ser pacientes e aguentar a música do baile que, refletida no espelho da ria, transporta o palco para a nossa varanda. E lá se vai a magia, ao som do “despacito”!

Desde o primeiro ano que vamos absorvendo esta vila por quem nos fomos apaixonando, apesar das suas personagens, locais e passantes. Dizemos sempre que este local dava um filme. De Fellini. Dada a peculiaridade das suas gentes. Genuínas. Gentes da Fuzeta.

Nas últimas férias conhecemos o Sr. João. Trabalha nos barcos que fazem a travessia do cais da Fuzeta até à praia. Cedo reparamos na sua permanente boa disposição e simpatia. Com uma graçola sempre na ponta da língua. Com uma forma muito própria de tratar bem os passageiros. Evidencia marcas de que a vida não lhe deve ter sido leve. Fomos sabendo que trabalhou muito no mar, no assoreamento da barra e outros trabalhos duros. Sem que isso lhe tenha retirado a alegria. Aparentemente.

Mas o que despertou mais a nossa atenção foram as conversas que mantinha com alguns passageiros. Para tudo o Sr. João tinha assunto e opinião fundamentada. Uma das mais curiosas terá sido a propósito de religião, com um devoto casal de brasileiros. Já não me recordo de como a conversa teve início, mas retive algumas partes do diálogo.

“É através do Filho que se chega ao Pai “- dizia a senhora, católica, referindo-se obviamente a Jesus Cristo e a Deus. “O Pai não existe se o Filho não existir em nós.”

O Sr. João rebateu, pragmático.

“Não pode ser, minha senhora. O filho só existe se primeiro existir o pai. Eu também sou pai e sei que é assim. Não é ao contrário.”

E desengane-se quem pensar que o Sr. João estava a ser ingénuo e pouco profundo nesta discussão. Na realidade, a senhora estava a ser um pouco snob e condescendente nos seus anteriores argumentos, perante um homem simples e pouco culto (pensava ela), que nunca tinha lido a Bíblia. Pasme-se!!!

E a conversa foi continuando com a simplicidade e a ironia inteligente das suas respostas
desmontando o discurso dela, ao ponto de se lhe notar uma quase indelével irritação.

“Porque é através Dele que se obtém a redenção, o perdão dos nossos pecados” – continuava ela.

“Mas se eu não fizer nada de mal não necessito de me redimir. Só tem que se redimir quem faz coisas más. E eu não faço mal a ninguém, portanto… “- argumentava o Sr. João, convicto.

E a conversa lá continuou, tão divertida quanto profunda, até que chegamos de novo ao cais da Fuzeta onde esperavam outros passageiros. Certamente com outras conversas para o Sr. João.

Já fora do barco ainda ouvimos, de passagem, o início de uma delas.

“Hoje está um bocadinho de vento Sr. João” – comentava um grupo de jovens.

“Um bocadinho não é muito” – responde ele.

“Estão com sorte. Se fosse muito era pior. Era bué! “

E num golpe de vento passamos da Bíblia para o Bué. É assim a Fuzeta.

Designer

 

 

O Sr. João


“Nas últimas férias conhecemos o Sr. João. Trabalha nos barcos que fazem a travessia do cais da Fuzeta até à praia".


Descobrimos a Fuzeta em 2014, quando por mero acaso passamos lá umas férias. Não era então o Algarve a que estávamos habituados. Ainda hoje é assim. De início estranha-se esta vila que parece ter parado no tempo. Num Algarve dos anos 90.

Não digo isto com desprimor ou com pouco respeito pelas suas gentes. É um facto. A vila, que cresceu desordenadamente, não é bonita, não é limpa, não está cheia de hotéis caros e elegantes. Mas transborda de uma genuinidade de que se aprende a gostar.

Apaixonamo-nos de imediato pela beleza quase intocada das suas praias magníficas, pela formosura da Ria Formosa ao entardecer, ao amanhecer, durante todo o dia. Durante todos os dias. Apercebemo-nos do privilégio raro de poder ter, em julho, uma praia (quase) só para nós.

É um lugar onde apetece estar. Só estar. À espera das andorinhas que ao final da tarde aparecem, frenéticas, para beber na piscina. Dando depois lugar aos guardiões morcegos livrando-nos gentilmente de alguns insetos que certamente nos incomodariam durante a noite. E depois anoitece, com as cigarras e o seu silêncio ensurdecedor que completa a noite.

Claro que tudo isto só funciona se não for a semana das festas da Fuzeta. Aí temos que ser pacientes e aguentar a música do baile que, refletida no espelho da ria, transporta o palco para a nossa varanda. E lá se vai a magia, ao som do “despacito”!

Desde o primeiro ano que vamos absorvendo esta vila por quem nos fomos apaixonando, apesar das suas personagens, locais e passantes. Dizemos sempre que este local dava um filme. De Fellini. Dada a peculiaridade das suas gentes. Genuínas. Gentes da Fuzeta.

Nas últimas férias conhecemos o Sr. João. Trabalha nos barcos que fazem a travessia do cais da Fuzeta até à praia. Cedo reparamos na sua permanente boa disposição e simpatia. Com uma graçola sempre na ponta da língua. Com uma forma muito própria de tratar bem os passageiros. Evidencia marcas de que a vida não lhe deve ter sido leve. Fomos sabendo que trabalhou muito no mar, no assoreamento da barra e outros trabalhos duros. Sem que isso lhe tenha retirado a alegria. Aparentemente.

Mas o que despertou mais a nossa atenção foram as conversas que mantinha com alguns passageiros. Para tudo o Sr. João tinha assunto e opinião fundamentada. Uma das mais curiosas terá sido a propósito de religião, com um devoto casal de brasileiros. Já não me recordo de como a conversa teve início, mas retive algumas partes do diálogo.

“É através do Filho que se chega ao Pai “- dizia a senhora, católica, referindo-se obviamente a Jesus Cristo e a Deus. “O Pai não existe se o Filho não existir em nós.”

O Sr. João rebateu, pragmático.

“Não pode ser, minha senhora. O filho só existe se primeiro existir o pai. Eu também sou pai e sei que é assim. Não é ao contrário.”

E desengane-se quem pensar que o Sr. João estava a ser ingénuo e pouco profundo nesta discussão. Na realidade, a senhora estava a ser um pouco snob e condescendente nos seus anteriores argumentos, perante um homem simples e pouco culto (pensava ela), que nunca tinha lido a Bíblia. Pasme-se!!!

E a conversa foi continuando com a simplicidade e a ironia inteligente das suas respostas
desmontando o discurso dela, ao ponto de se lhe notar uma quase indelével irritação.

“Porque é através Dele que se obtém a redenção, o perdão dos nossos pecados” – continuava ela.

“Mas se eu não fizer nada de mal não necessito de me redimir. Só tem que se redimir quem faz coisas más. E eu não faço mal a ninguém, portanto… “- argumentava o Sr. João, convicto.

E a conversa lá continuou, tão divertida quanto profunda, até que chegamos de novo ao cais da Fuzeta onde esperavam outros passageiros. Certamente com outras conversas para o Sr. João.

Já fora do barco ainda ouvimos, de passagem, o início de uma delas.

“Hoje está um bocadinho de vento Sr. João” – comentava um grupo de jovens.

“Um bocadinho não é muito” – responde ele.

“Estão com sorte. Se fosse muito era pior. Era bué! “

E num golpe de vento passamos da Bíblia para o Bué. É assim a Fuzeta.

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