O retrato de António Ribeiro Ferreira não quadra bem com uma lenda pitoresca. Não era um herói, não estava para essas fitas, e não queria nada com a eternidade. Sempre foi muito mais da carne e do osso, dos dias e das noites, das lutas que se travam para que a vida não arrede pé. Era um homem entre homens, e gostava desses traços nobres tanto como das fraquezas e dos vícios, das coisas que emergem quando nos reconhecemos uns nos outros. Tinha a consciência clara de que as coisas importantes nunca estão ganhas, mas obrigam a uma obstinação diária. Ele tinha o jornalismo em cada nervo, com aquele mau feitio estupendo, uma coisa leonina, entregando-se a umas iras que, quem estava com ele, ia percebendo que aquilo era uma forma de nos oferecer abrigo. Estrebuchava, tinha gestos cheios de arestas, nas suas explosões distribuía galhetas pelo ar, e isso, juntamente com os palavrões e os insultos, não era gratuito. Era uma forma de erguer uma barreira, de mostrar a quem estava do outro lado do braço-de-ferro, muitas vezes enfiado nalgum gabinete, a espiar pelos vidros, que cá fora havia margem para um motim. Essa indignação dele impedia que certos abusos fossem normalizados. Tinha muitos anos disto, sabia bem que as redações são autênticos campos de batalha. E as coisas foram sempre piorando. Se muitos jornalistas se habituaram à arrogância e à prepotência das chefias, a uma corrosiva acção com vista a subalternizar e degradar a sua condição, o Ribeiro Ferreira, que há muito deixara de ir apeado no delírio utópico, era algo como um sindicalista de direita, um liberal ferocíssimo, que não aceitava as formas de destrato que se tornaram comuns nos ambientes profissionais, esse regime de infernização que tomou conta desta profissão, com a progressiva proletarização de um ofício a que se associou sempre um ideal de liberdade, independência e autonomia.
Sob as espessas sobrancelhas, tinha aquele olhar que podia ser duro, fulminante, e que, de igual modo, podia abrir-se com um sorriso afectuoso e fazer-nos ganhar o dia. Se em momentos de pressão podia usar aquela corcunda que nasceu como uma distinção dos muitos anos de estar sentado a atacar o teclado, se o víamos andar pela redacção danado, também depois tinha o reverso, quando se ria muito, tinha uma gargalhada calorosa, e aquele jeito familiar de nos pôr o braço sobre os ombros, de nos recomendar aos outros e a nós próprios, dar-nos confiança.
Nos últimos tempos, aquela fronte alta e sulcada por preocupações não escondia o mal que as coisas iam. Ele assistiu a um nível de degradação inimaginável de um mundo que amava e a que dedicou toda a vida. Mas protegeu até ao fim os jornalistas, defendia-os e ao seu talento, e mesmo que o não tivessem, dava-lhes alento, encorajava-os, muitos deles muito jovens, começando a trilhar um rumo cada vez mais incerto. E tinha sempre alguma história, uma lição inteligente, uma sugestão que compunha as coisas. Além disso, ouvia, ouvia calado, aguardando que os outros também pudessem afiar o seu desânimo perante ele. Era companheiro, um tipo realmente formidável.
Ainda fumava muito já depois de se saber doente. Tinha sempre tabaco, conversa, só não tinha um cigarro para dispensar ao medo. Dizia o suficiente para sabermos em que ponto as coisas estavam, mas era sempre mais importante garantir que ninguém “fodia” o fecho da edição. Isso era sagrado. De resto, para ele o jornalismo não era um trabalho, mas um sacerdócio, e a redacção um mosteiro. Isto apesar de não haver nele um só osso beato, e de, em vez de uma vaga fé nalgum ser superior, preferir essa relação que se estabelece entre quem fala claramente, quem expõe os termos do seu entendimento das coisas, sem enrolar nem vir com balelas. Se se sentava para redigir uma notícia, fazia-o com as mãos treinadas, lestas, batia as teclas num ritmo nervoso, quase musical, que também nos instigava.
Nunca usou a sua experiência ou autoridade para nos censurar. Ensinava-nos a defender até às últimas consequências a nossa visão, e a ver a redacção como um lugar para se travar uma guerra leal, e que o jornalismo só tem sentido enquanto é animado por uma consciência clara das oposições de interesses que sempre embalam os revezes da história. Em vez de enclausurar-se, o jornalista, mais do que registar certos trejeitos da actualidade, devia afinar a sua percepção sem nunca estar inteiramente seguro do que possa ser a verdade. Esta não aceita a posse, não se deixa abater, mas mantém-se esquiva, de modo que todos os dias há que persegui-la. Só que esse é um método desfavorável e demasiado dispendioso numa época em que o imediato triunfa e se impõe mias facilmente qualquer relato que reafirme as noções comuns, os vícios mentais, os preconceitos que servem para nunca se chegar a um auto-exame.
Ribeiro Ferreira nunca perdeu o hábito de conversar. Sabia que é disso que o mundo se faz, do acordo e do desacordo entre os homens. Gostava que lhe contassem histórias, como gostava de as contar, e falava como os miúdos se falam, muito perto, em tom de conspiração, ou com aquele vigor radiante, rindo desbragadamente, abraçando-nos muito. O que lhe contássemos não ia para um túmulo. Antes parecia que distribuía um outro jornal de anotações mais pessoais pelos anjos, a ver se podiam dar um jeito. Pressinto que muitos de nós nem chegámos a saber de sacanices e intrigas de que fomos alvo nalgum momento e que ele esmagou antes que produzissem os seus efeitos. Dava-se com anjos da pesada. Sabia ser realmente duro, e era o tipo de homem junto do qual mesmo os canalhas têm o cuidado de se comportar de forma minimamente decente pois se sentem observados. O desaparecimento dele da redacção foi, por isso, sentido pelos que continuaram como a perda daquele génio que tinha acessos fantásticos de raiva sempre que outra canalhice nos era imposta. E se era uma figura tão presente, que fazia toda a diferença, não era por ser um tipo que publicitava uma grande moral. Era, pelo contrário, alguém que não vinha com tretas, preferindo mil vezes a galhofa.
O Ribeiro Ferreira sabia que tudo o que realmente temos é o presente, isto embora poucos o vivam ou se esforcem realmente por compreendê-lo. Para ele, o melhor de nós brota do confronto, de um convívio honesto em que somos levados a abandonar as ilusões que trazemos devido aos ângulos mortos da nossa visão parcial, e, por isso, respeitava como ninguém a diferença, odiando de morte a superioridade moral com que alguns se posicionam em questões complexas. Não era nada meigo com os “lacaios do sistema e do pensamento único”, e preferia ser um inimigo dessa cultura bem-pensante a participar no enredo perverso com que o bom-senso disfarça essa forma de violência ideológica que procura promover como normal algo que é apenas uma imposição regulada por interesses de grupo ou de classe. Não era nem pessimista nem optimista. Para ele, o mundo não era nem isto nem aquilo, mas todas as coisas simultaneamente, e a cada um segundo a sua visão, a sua coragem, o seu sentido de dever para com as coisas em que acredita. Para mim, ele foi um amigo e um mestre que me vi muitas vezes obrigado a defender fora da redacção, quando se lhe referiam como um grande reaccionário. E eu tentava explicar-lhes que nunca conheci uma pessoa de esquerda que defendesse tão empenhadamente os colegas e, particularmente, esses que estavam em posições mais vulneráveis.
Reencontrei-o há uns dois meses, no Snob, e estava de tal modo devastado pela doença que me custou aproximar-me dele. Continua a ser importante para mim que esteja de saúde, imaginá-lo lá na redacção, porque é quase certo que ainda haverá alguma outra coisa pior, algo que não imaginávamos e que vai ainda tornar a vida mais lixada. Mas se ele estiver lá, depois de ouvirmos a pior notícia ainda poderemos virar-nos na sua direcção, para ver na expressão dele o que verdadeiramente sentimos. O Ribeiro Ferreira não era nenhum herói, mas lembrava-nos de que não são precisos heróis, desde que saibamos ser homens.
O seu velório terá lugar amanhã, a partir das 17h, na Igreja de Santa Isabel. A missa de corpo presente é na sexta, às 9 da manhã. E a cremação no Alto de São João é às 13h30.