A justiça em tempo de guerra


A Justiça é – e mesmo em tempo de guerra tem de continuar a ser – sobretudo um instrumento de pacificação e de reconciliação.


O tempo está quente em A Haia, o que não é frequente.

 Fazem mais de 27.º e, dentro das casas envidraçadas e não preparadas para estas temperaturas, ficamos todos derretidos.

Infelizmente, porém, não é só a temperatura atmosférica que nos derrete neste momento.

A guerra, que dura já demasiado tempo, deliquesce também as mentes de alguns dos que a apoiam, de um lado e do outro.

Não se fala, no entanto, de outra coisa e muito menos – como pareceria desejável – de como pôr-lhe fim.

Hoje, no gabinete de um colega da Europa central, pude verificar o pânico que, longe dos exultantes discursos mediáticos e dos hinos guerreiros que constantemente nos cantam os nossos afoitos locutores televisivos, se manifesta e coíbe justificadamente muita gente.

Apontando-me para um mapa da Europa, indicava, entre o irónico e invejoso, a distância que Portugal tem da zona da guerra e o medo que a proximidade do seu país dela lhe fazia.

Lá lhe fui explicando, em tom de conforto pouco convincente, que todos – não apenas eles – estávamos já a saborear os efeitos amargos do conflito: mas nem isso o consolou.

Mostrava o mapa com o dedo em riste e insistia: «vê como estamos tão perto!».

Foi então que, desalentado, perguntou: «como e porquê chagámos a isto?».

A guerra – dizia –, mal nasce, perde a noção do tempo e do espaço.

Torna-se imprevisível e incontrolável.

A guerra, como o calor que faz em A Haia quando escrevo estas linhas, expande-se, de facto, nas nossas mentes e leva, por vezes, sem anúncio prévio, a deformar o modo como olhamos e aplicamos as regras e os princípios que sempre dissemos respeitar.

Aconteceu, há dias, que, incautos, alguns colegas mais excitados e aplicados, se propunham convidar elementos alheios ao poder judicial para observarem, em direto, como, na área da Justiça, se estava a trabalhar bem, e empenhadamente, para coligir e analisar provas judiciais de alegados crimes de guerra.

Valeu a sapiência de outros magistrados mais velhos e mais versados nas regras do estado de direito que, rápido, os dissuadiram de tais propósitos propagandísticos, que, a acontecerem – o que, por fim, não se verificou – iria afetar, por certo, o valor jurídico das provas obtidas nos processos em causa.

O perigo e o horror da guerra não residem, pois, só nas mortes e na horrível destruição que ela espalha e mais espalhará ainda, se muito durar e se expandir para outros territórios.

Afinal todos, mesmo o nosso longínquo país, está, queiramos ou não, ao alcance de qualquer míssil mais moderno e destrutivo.

O perigo da guerra verifica-se, também e sobretudo, na subversão que ela produz na maneira exaltada de pensar a vida e de a viver.

O perigo reside na alteração das disposições íntimas que formulamos e, pior, nas ações que, em consequência, nos propomos levar a caso.

A guerra parece tudo justificar.

O perigo da duração da guerra – e não tenhamos dúvidas, de uma maneira ou de outra, todos nela estamos a intervir já – é que ela subverte, sem mais, os princípios básicos em que assenta a civilização humana, que, com o sacrifício de muitas gerações de homens bons, foi possível ir explorando, consolidando e pretendendo ampliar.

Tudo isso se congela e parece, de repente, despiciendo.

O perigo da guerra não reside pois, assim, só no especulativo aumento dos preços dos produtos, no congelamento dos salários e pensões e no desvio das verbas destinadas ao estado social para a aquisição de armas, sempre e sempre mais sofisticadas.

A guerra constitui um parêntese na maneira como a vida da maioria das pessoas é vivida: não apenas de um ponto de vista material, mas também moral, cultural e, sobretudo, civilizacional.

É por isso que, não tendo resultado os escassos e pouco convictos esforços anunciados para a impedir, nos cabe agora, a todos, obstar que ela se perpetue e alastre.

Sim, porque esta guerra tem de ter um fim e esse fim não tem de ser, necessariamente, a destruição de toda a humanidade.

Por ora, porém, limitemo-nos, no âmbito dos nossos pensamentos quotidianos e no desenvolvimento das nossas atividades profissionais e institucionais normais, a procurar salvaguardar os princípios da nossa civilização que ainda tornam a vida de todos menos árdua e desonrosa.

Também no domínio da atividade judiciária, é necessário prevenir a derrapagem dos princípios que a tornaram mais humana.

A Justiça é, e mesmo em tempo de guerra tem de continuar a ser, sobretudo um instrumento de pacificação e de reconciliação.

Um instrumento de responsabilização pessoal – certo -, mas agindo sempre servido e movido apenas pela objetividade e a equidade.

Jamais pode, por isso, ser concebida como uma arma de assalto e de vindicta coletivas.

Para tanto – pese o pendor que os ditadores têm, nestas circunstâncias, para a encenação judiciária da desforra – bastaria um eficaz pelotão de fuzilamento.

Não queiramos, assim, que, da justiça civil, se diga, agora, o que Georges Clémenceau disse, em tempos, da justiça militar: que esta estava para a verdadeira justiça, como a música militar estava para a verdadeira música.

Negar essa possibilidade é, sobretudo, uma responsabilidade nossa: dos magistrados e juristas que, mesmo em tempo de guerra, exercem com isenção em verdadeiros estados de direito.

A justiça em tempo de guerra


A Justiça é - e mesmo em tempo de guerra tem de continuar a ser - sobretudo um instrumento de pacificação e de reconciliação.


O tempo está quente em A Haia, o que não é frequente.

 Fazem mais de 27.º e, dentro das casas envidraçadas e não preparadas para estas temperaturas, ficamos todos derretidos.

Infelizmente, porém, não é só a temperatura atmosférica que nos derrete neste momento.

A guerra, que dura já demasiado tempo, deliquesce também as mentes de alguns dos que a apoiam, de um lado e do outro.

Não se fala, no entanto, de outra coisa e muito menos – como pareceria desejável – de como pôr-lhe fim.

Hoje, no gabinete de um colega da Europa central, pude verificar o pânico que, longe dos exultantes discursos mediáticos e dos hinos guerreiros que constantemente nos cantam os nossos afoitos locutores televisivos, se manifesta e coíbe justificadamente muita gente.

Apontando-me para um mapa da Europa, indicava, entre o irónico e invejoso, a distância que Portugal tem da zona da guerra e o medo que a proximidade do seu país dela lhe fazia.

Lá lhe fui explicando, em tom de conforto pouco convincente, que todos – não apenas eles – estávamos já a saborear os efeitos amargos do conflito: mas nem isso o consolou.

Mostrava o mapa com o dedo em riste e insistia: «vê como estamos tão perto!».

Foi então que, desalentado, perguntou: «como e porquê chagámos a isto?».

A guerra – dizia –, mal nasce, perde a noção do tempo e do espaço.

Torna-se imprevisível e incontrolável.

A guerra, como o calor que faz em A Haia quando escrevo estas linhas, expande-se, de facto, nas nossas mentes e leva, por vezes, sem anúncio prévio, a deformar o modo como olhamos e aplicamos as regras e os princípios que sempre dissemos respeitar.

Aconteceu, há dias, que, incautos, alguns colegas mais excitados e aplicados, se propunham convidar elementos alheios ao poder judicial para observarem, em direto, como, na área da Justiça, se estava a trabalhar bem, e empenhadamente, para coligir e analisar provas judiciais de alegados crimes de guerra.

Valeu a sapiência de outros magistrados mais velhos e mais versados nas regras do estado de direito que, rápido, os dissuadiram de tais propósitos propagandísticos, que, a acontecerem – o que, por fim, não se verificou – iria afetar, por certo, o valor jurídico das provas obtidas nos processos em causa.

O perigo e o horror da guerra não residem, pois, só nas mortes e na horrível destruição que ela espalha e mais espalhará ainda, se muito durar e se expandir para outros territórios.

Afinal todos, mesmo o nosso longínquo país, está, queiramos ou não, ao alcance de qualquer míssil mais moderno e destrutivo.

O perigo da guerra verifica-se, também e sobretudo, na subversão que ela produz na maneira exaltada de pensar a vida e de a viver.

O perigo reside na alteração das disposições íntimas que formulamos e, pior, nas ações que, em consequência, nos propomos levar a caso.

A guerra parece tudo justificar.

O perigo da duração da guerra – e não tenhamos dúvidas, de uma maneira ou de outra, todos nela estamos a intervir já – é que ela subverte, sem mais, os princípios básicos em que assenta a civilização humana, que, com o sacrifício de muitas gerações de homens bons, foi possível ir explorando, consolidando e pretendendo ampliar.

Tudo isso se congela e parece, de repente, despiciendo.

O perigo da guerra não reside pois, assim, só no especulativo aumento dos preços dos produtos, no congelamento dos salários e pensões e no desvio das verbas destinadas ao estado social para a aquisição de armas, sempre e sempre mais sofisticadas.

A guerra constitui um parêntese na maneira como a vida da maioria das pessoas é vivida: não apenas de um ponto de vista material, mas também moral, cultural e, sobretudo, civilizacional.

É por isso que, não tendo resultado os escassos e pouco convictos esforços anunciados para a impedir, nos cabe agora, a todos, obstar que ela se perpetue e alastre.

Sim, porque esta guerra tem de ter um fim e esse fim não tem de ser, necessariamente, a destruição de toda a humanidade.

Por ora, porém, limitemo-nos, no âmbito dos nossos pensamentos quotidianos e no desenvolvimento das nossas atividades profissionais e institucionais normais, a procurar salvaguardar os princípios da nossa civilização que ainda tornam a vida de todos menos árdua e desonrosa.

Também no domínio da atividade judiciária, é necessário prevenir a derrapagem dos princípios que a tornaram mais humana.

A Justiça é, e mesmo em tempo de guerra tem de continuar a ser, sobretudo um instrumento de pacificação e de reconciliação.

Um instrumento de responsabilização pessoal – certo -, mas agindo sempre servido e movido apenas pela objetividade e a equidade.

Jamais pode, por isso, ser concebida como uma arma de assalto e de vindicta coletivas.

Para tanto – pese o pendor que os ditadores têm, nestas circunstâncias, para a encenação judiciária da desforra – bastaria um eficaz pelotão de fuzilamento.

Não queiramos, assim, que, da justiça civil, se diga, agora, o que Georges Clémenceau disse, em tempos, da justiça militar: que esta estava para a verdadeira justiça, como a música militar estava para a verdadeira música.

Negar essa possibilidade é, sobretudo, uma responsabilidade nossa: dos magistrados e juristas que, mesmo em tempo de guerra, exercem com isenção em verdadeiros estados de direito.