“A Queda do Céu” é uma etnografia original e subversiva sobre o diálogo interétnico entre a ecologia ocidental e a cosmologia indígena. É original porque desafia a ideia clássica da relação entre antropólogo e objeto de estudo, e subversiva porque o resultado desse contacto é uma poderosa narrativa ecologista sobre a urgência e as estratégias de proteção da Amazónia. O livro, publicado em 2000, é resultado do encontro, prolongado ao longo de décadas, entre o etnólogo e ativista Bruce Albert e o xamã e líder indígena yanomami Davi Kopenawa.
“A queda do céu” é uma profecia cosmológica sobre o fim do mundo que o povo yanomami incorporou no discurso científico e político contemporâneo sobre as consequências das alterações climáticas. Esse fim do mundo remete para o mito da queda do céu dos primeiros tempos, originada pela morte dos grandes xamãs ancestrais, que criou o mundo atual. No entanto, mesmo tratando-se de uma visão apocalíptica, para Kopenawa a destruição total não é uma inevitabilidade. É um resultado possível do embate entre a pandemia xawara – provocada pelo “fumo do metal” e pelo “canibalismo da mercadoria” dos brancos – e o ambientalismo xamânico, a ecologia.
Esta introdução é uma tentativa de compreensão antropológica da aliança política que as lideranças indígenas conseguiram fazer com os movimentos ecologistas de todo o mundo e, em particular, com a oposição democrática ao governo de Bolsonaro. Essa aliança tem sido incansável na denúncia do genocídio indígena em curso no Brasil, e meço as minhas palavras.
Desde a chegada ao poder de Bolsonaro, o mundo chocou-se com a intensificação dos incêndios e a velocidade do desmatamento da Amazónia. As políticas anti indigenistas deram carta branca aos exploradores ilegais de minério (garimpeiros) para entrar a matar (em muitos casos, literalmente), assim como à exploração ilegal de gado e de recursos piscatórios dos territórios indígenas. Ao mesmo tempo, asfixiaram as associações de defesa dos povos indígenas, elegendo como inimigo número um a Federação Nacional do Índio (Funai). Como consequência, o mais recente relatório da Comissão Pastoral da Terra mostra que o número de assassinatos de yanomamis aumentou em 1.100% de 2020 a 2021 e o garimpo ilegal está a fazer a pior ofensiva em 30 anos, e certamente a mais violenta.
Será isso suficiente para falar em genocídio? Sim. Para os povos indígenas, a destruição do seu território significa o extermínio do seu povo. Não há índio sem terra. E por isso a Constituição brasileira reconhece que as terras indígenas são “as por eles habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições”. É um direito originário.
Ao travar o processo de demarcação de territórios indígenas e permitir a invasão e destruição ilegal de territórios demarcados na Amazónia, Bolsonaro está a provocar deliberadamente um genocídio indígena. O indigenista brasileiro Bruno Pereira e o jornalista britânico Dom Phillips são as vítimas mais recentes desse crime organizado. Foram assassinados, os seus corpos foram encontrados esquartejados e incinerados, durante uma viagem pelo Vale do Javari, segunda maior terra indígena do Brasil. Segundo a Univaja, os suspeitos do crime integram grupos de caçadores e pescadores profissionais que fazem invasões constantes à terra indígena Vale do Javari e ameaçam de morte quem atua contra eles.
O crime indignou além fronteiras porque Dom Phillips e Bruno Pereira são símbolo de duas realidades indivisíveis: a esperança e coragem de quem levanta os braços, num mundo que nos faz pensar que talvez não estejamos assim tão longe da queda do céu.
Deputada do Bloco de Esquerda