Um arrebatamento brusco, um fio de pesca que fica esticado na sua máxima tensão mas que, curiosamente, não parte, e que nos mantém intrigados em relação ao que estará do outro lado sacudindo-nos igualmente a imaginação e o próprio corpo. Divagações ou rumores vagamente encadeados, mas que não deixam que lhes divisemos com alguma precisão os seus contornos, às vezes problemas incitantes, outras vezes as sobras de episódios que não deixaram nunca de se revirar na nossa memória, e que ficaram como um vulto no cimo da rua assobiando ou cirandando, fumando, num deixa andar em que cabem todas as formas da mais graciosa à mais austera. Tantos livros são publicados e a maioria deles logo nos aborrecem de imediato, provocam um fastio absurdo, enquanto outros parecem não ser mais do que algo arrancado a uma origem mais promissora e posto ao serviço, domesticado ou transformado numa besta de carga por orientações algo canhestras. Mas, do outro lado de tudo isso que chega aos escaparates e acaba nas estantes ou definha nalgum armazém, há uma série de livros que nunca se comprometem com um arranjo mais firme, e que persistem numa zona mais insegura e fértil, farejando hipóteses, experimentando detalhes.
Do cerco a essas miragens mentais muitas vezes apenas ficam arestas, algum fragmento como um prego descoberto para nos agarrar mais tarde, quem sabe só numa outra vida, talvez configurando os meandros entre os quais virá a deambular o nosso fantasma. Como um mapa que nos dirigisse para as ausências. E tudo isso aponta para um território de possibilidades desperdiçadas, o qual se caracteriza por esses gestos desenhados com um rasgo insolente, uma orgulhosa espontaneidade que quebra os velhos compassos, os mecanismos que instalam um certo zelo burocrático. São gestos que abandonamos por aí como se não nos pertencessem inteiramente, como se nos tivessem caído entre os hábitos e não soubéssemos que destino lhes dar, pois são como vestígios gratuitos e delirantes desses outros que recusámos ser, heróis dessa batalha perdida que é a vida, amantes da escrita quando esta se transforma numa experiência mais errática e divertida, bem mais tumultuosa, desinteressada da perfeição e do arredondado dos acabamentos e dos géneros que acabam por triunfar e coser as meias do tédio. Há um efeito de obscuridade e magia nessas inscrições que servem para traçar uma espécie de carta geográfica mental, pontos que vão criando tensões, códigos que, com os anos, acabam por se tornar indecifráveis, mas que nem por isso caem para longe dessa magia das aberturas sugeridas, das alternativas esboçadas. No livro “O perfume das flores à noite”, enquanto nos fala das suas peripécias enquanto fumadora, dos subterfúgios a que se vê obrigada a recorrer para satisfazer o desejo de fumar, Leïla Slimani relata uma dessas hipóteses que ficou pelo caminho: “Uma vez, em Zagreb, uma mulher pôs-se a observar-me enquanto eu fumava um cigarro à janela. Ela estava no apartamento do rés do chão e chamou o marido e depois apontou para mim. Os filhos juntaram-se a eles, e todos me fitaram sem que eu percebesse porquê. Nos três dias que passei nesse quarto, de cada vez que ia fumar um cigarro, a estranha família reaparecia e observava-me desconfiadamente. Pensei em escrever uma novela sobre o assunto. Devo ter apontado a ideia em qualquer lado, e um destes dias, ao passar os olhos por um caderno, perguntar-me-ei o que quererão dizer as palavras: «Cigarro à janela, família estranha, novela fantástica.»”
Slimani deixa-nos este cigarro esquecido num livro em que também se confronta com a dificuldade dos homens em lidar com a “crueldade do acaso”. Talvez por isso vivamos numa época submersa numa verdadeira infestação de ficções que prolongam em vez de interromper a tagarelice, que acabam por nos azucrinar com a sua necessidade de encontrar um desfecho, um sentido, encarando tudo como sinais, forçando os detalhes a funcionarem como a pontuação de explicações que, no fim, reduzem tudo a uma conspiração imbecil. “As nossas sociedades, que veneram o ‘princípio da precaução’, o ‘risco zero’, detestam o acaso, pois ele arrasa com os nossos sonhos de controlar tudo”, escreve a autora franco-marroquina. “A literatura, ao invés, preza as cicatrizes, os vestígios do acidente, as desgraças incompreensíveis, as dores injustas.” É uma generalização bastante benévola, uma vez que boa parte dos autores se obstinam em perseguir o acaso mas para exterminá-lo, como se fora uma praga que se intromete nos assuntos da criação, tantas vezes derrotando as melhores expectativas que se tinha para um livro. Mas nesse campo aberto dos livros que não chegam a ser escritos, aí sim o acaso triunfa, impõe as suas leis ao mesmo tempo caóticas e pregnantes, os seus signos que distendem as possibilidades e lançam lebres em todas as direcções para desafiar a matilha caçadora da nossa imaginação. Slimani parece contradizer esta noção umas páginas mais tarde, ao afirmar que a literatura “serve para preencher vazios, lacunas” e não para restituir o real. “exumamos e ao mesmo tempo criamos uma outra realidade. Não inventamos, imaginamos, damos corpo a uma visão que construímos de uma ponta a outra, com pedaços de recordações e de obsessões eternas.” Talvez o acaso sirva então para provocar pontuais avarias na mecânica das nossas ficções, na urdidura desses planos que projectam sobre qualquer quadro imaginário um excesso de significado, tantas vezes torpe, insuportável.
Às vezes o melhor que há a fazer é chamar o acaso como convidado de honra quando se pensa em escrever um livro verdadeiramente ambicioso. Projectá-lo com um ânimo tal que a própria vida compareça e vá orientando o vigor de um estilo capaz de balançar entre a extrema lucidez e uma extrema insanidade, compondo ao mesmo tempo um argumento que seja uma autobiografia, um tratado de ciências, um manual de estratégia e a descrição de uma batalha vagamente inspirada nos chamados factos verídicos. Um livro realmente astucioso seria aquele que conseguisse capturar essa sensação de um presente sem limites, dessa circunstância fugitiva e tantas vezes assustadora pelas vertigens que nos provoca de estarmos num momento em que, com uma decisão neste ou naquele sentido, o curso da nossa vida se alteraria de forma dramática. Ricardo Piglia, nos diários escritos em nome do seu alter-ego, Emilio Renzi, oferece-nos o vislumbre de um livro que nunca chegou a escrever. Eis as linhas gerais do seu projecto: Um artista trabalha numa obra monumental e morre antes de poder terminá-la. Final inesperado, nos jornais noticia-se o suicídio. Encontram o seu apartamento com anotações dispersas por todo o lado. Na máquina de escrever está uma página onde apenas se lê: «História sentimental da humanidade. Capítulo!». Não havia nada mais e não deram com as páginas do livro anunciado, só com as anotações que mostram um sério trabalho de investigação em variadíssimas fontes. Escritas com uma caligrafia elegante, e enumeradas, estas incluem citações, bocados de frases, biografias mínimas, planos para a organização dos sucessivos capítulos, etc. Ninguém sabe se não chegou a redigir a obra ou se, depois de o fazer, se decepcionou e a fez desaparecer um dia antes de se matar.”
Num certo sentido, esses livros que ficam por terminar acabam por se confundir com as esperanças mais profundas de um criador, o seu desejo de se evadir desse cárcere em que se tornou a fábrica de relatos que é a ficção dos nossos dias, em que todos contam uma e outra vez as mesmas histórias. Repetem o que já fizeram antes e sobretudo o que virão a fazer depois. Como se o terreno da invenção não fosse mais do que um simulacro frustrante, que apenas nos oferece a oportunidade de alimentarmos o seu processo maquinal por meio de variações ao infinito de um projecto de ruptura que não passa de uma ilusão. Os narradores ouvem-se uns aos outros compassivamente, e acabam por competir entre si mais pelos efeitos e a capacidade de narrar, e pouco importa se a história que contam é impossível de imaginar ou de levar quem a ouve a acreditar nela. Assim, a produção de ficções torna-se precisamente o contrário daquilo que deveria ser a arte do romance, a qual se funda na ilusão de converter leitores em crentes.
Hoje, quando cada vez menos a ficção parece ser capaz deste acto de deslumbramento profundo, restam os truques de prestidigitação e uma continuidade tantas vezes forçada, com os melhores escritores a atraírem os leitores por meio de uma infinidade de artifícios de carácter lúdico e do tipo de considerações que funcionam como se a intriga romanesca funcionasse como um comentário à realidade, uma espécie de alegoria desdobrada em mexericos e inconfidências. Também neste sentido, um livro que se esquiva ao autor é caracterizado por não ter renunciado a uma forma definitiva, a uma condição que perpetuasse as suas falhas ou que as procurasse suprir por meio de uma imbricação complacente. Como nos diz George Steiner no livro que reúne um conjunto de sete ensaios onde nos dá conta de um igual número de livros que ambicionou escrever mas que por esta ou por aquela razão lhe escaparam, “um livro não escrito é mais do que um vazio. Acompanha a obra que fizemos como uma sombra activa, irónica e nostálgica ao mesmo tempo. É uma das vidas que poderíamos ter vivido, uma das viagens que não fizemos. A filosofia ensina que a negação pode ser determinante. É algo mais do que a uma negação da possibilidade. A privação tem consequências que não podemos antecipar ou avaliar com acerto. O livro não escrito é o que poderia ter feito a diferença. Que nos poderia ter permitido falhar melhor. Ou talvez não.”
Em certo sentido, um livro que nos escapa pode também ser esse que entende que a arte tem cada vez mais dificuldade em aceitar o tipo de acabamento que significa que cumpriu um qualquer propósito, atingiu o ponto de saturação. Num certo sentido esse livro está empenhado em não se afastar do impulso inicial, da origem. Ele procede de forma mais arisca, ao mesmo tempo insistindo e recuando, “por uma série de pequenas marteladas do finito, do nascente, da carência, do efémero, do desejo perdido, da destruição” (Pascal Quignard). É um que prefere refazer-se na névoa, na mesa de trabalho do sonho, onde é sempre possível proceder à desarticulação do tempo, em que muitas vezes o silêncio e o vazio adquirem um protagonismo quase temperamental, obrigando o escritor a reconhecer as suas incapacidades e limitações, a admitir que há muito no processo de invenção que lhe escapa, que está para lá da sua determinação e controlo, de tal modo que sempre que tenta forçar a captura desse monstro branco ele desfaz-lhe a embarcação e deixa-o à deriva num ritmo agastado, sem a menor convicção nas ligações que vai urdindo. “Neste sentido, a frase não é primordial, resulta de uma vontade de tecer, de coser desesperadamente todo o fragmentário que o escrito ainda não sobrecarregou, não contraiu – e consiste de forma muito rudimentar numa recusa apavorada e volúvel oposta à morte”, escreve Pascal Quignard no ensaio “Um incómodo técnico em relação aos fragmentos”. Um livro não escrito sabe que o seu destino é vaguear como um fantasma, a sua lucidez está consubstanciada nessa aceitação da derrota, no convite ao acaso para gozar como quiser com as próprias incapacidades do autor, que admira assim também os efeitos da sua preguiça, da procrastinação, da recusa de levar as coisas a um bom termo, a serem reduzidas a qualquer forma de utilidade.
Carlos André
Talvez os livros nos aconteçam — quem sabe? — como dizia Sofia do poema. Ou talvez aconteçam diante de nós, sem disso nos darmos conta. Porventura foi o que aconteceu com os livros que ainda não escrevi, por deles me não aperceber no tempo em que nos encontrámos.
Por exemplo, o "meu" livro da China. Calcorreei-a de Norte a Sul, de Leste a Oeste, dos vales às montanhas. Fotografei quanto vi, como se fosse essa a forma de o não perder. Mas, distraído, não transferi para a palavra o que ia vendo. Serei um dia capaz?
Ou o "meu" Rodrigues Lobo, de quem se sabe tão pouco que bem merece que dele inventemos quanto está por descobrir. Cruzámo-nos bastas vezes nas esquinas da vida. Atrever-me-ei um dia a escrevê-lo?
Ou talvez um livro de cartas de amor, a que sempre me apeteceu deitar mão, depois de ter traduzido todo o amor escrito por Ovídio.
Ou o livro que não escrevi e que nem eu sei, por ainda se não ter cruzado comigo…
Diogo Paiva
Durante anos pensei estar a guardar um livro para o qual a escrita de todos os outros seriam uma preparação. Cada capítulo diria respeito à divisão de uma casa, e a linha narrativa, em vez de ser temporal, era, assim, espacial. Num capítulo, os eventos sucediam-se num quarto, noutro, numa sala, por aí fora, até que no fim o leitor pudesse montar todo o edifício. Foi uma ideia da adolescência. À medida que fui adiando esse projecto, fui ao mesmo tempo percebendo porque é que o fazia: não passava disso mesmo, uma ideia adolescente e parola.
Luísa Costa Gomes
São bastante mais os livros que quis escrever e não escrevi, do que os enfim materializados em qualquer coisa que se visse. Um livro tem de querer mesmo ser escrito, porque é um encargo para no mínimo um par de anos. Tem os seus altos e baixos, arrancares e parares, e tempo de marinada muito incerto. Não é anormal ficar em estado latente durante dez ou quinze anos. Depois encontra o seu impulso numa noite estremunhada. Felizmente, todo este processo moroso e cheio de meandros, assim que vai para o prelo, é apagado e reconfigurado. Conta-se uma história direita do livro que não tem nada a ver com o livro e com a maneira como foi concebido e parido. Os outros que ficaram em potência ficaram em potência, e daí não vem mal nenhum ao mundo, ou à não-autora deles. Mas outros começam muito bem e depois suspendem-se sem razão aparente, descontando a preguiça da escritora e aquele sentimento been there, done that que é tão maçador no dealbar da quinta década da tal bendita carreira. Uns suspendem-se por altura das vinte páginas, ou das quarenta páginas, murcham, perdem a vontade, não se sabe se alguma vez voltarão a desabrochar. É curioso especular sobre o momento, ou número de páginas, em que se começa a pensar que é pena deitar fora. Ir a um terço de um romance já é um bom motivo para ganhar balanço. É pena deitar fora. Tenho um desses, um divertimento semi-pornográfico, chamado Diálogos no Escuro, que é pensado como um conjunto de logs de paquera do Messenger. Mas é só um bocado, obviamente que a ideia em si já é enjoativa. Não tem ainda energia para continuar, eu acho que ele se esgotou na euforia do início e também porque o enredo está feito, a história está contada, e isso para a autora é a morte do artista. Anda aí outro a rondar, um arremedo de ficção científica, que seria, será, irá ter sido, poderá ter ido ser, uma espécie de complemento do Cláudio e Constantino, desta feita com paradoxos morais e políticos. O projecto é de tal maneira pesado que caiu de ventas no chão, esborrachado pela canga teórica, e ainda não se levantou. Quizás jamás.