Marco é um ainda jovem adulto; e como a todos sucede, vê-se numa encruzilhada. A família, de que se emancipou, está ainda omnipresente nas suas idiossincrasias, longe, em meio pequeno de província bretã. Apesar da velhice que impera, a doença que ronda, os laços não se quebraram, mas as linguagens são diversas. Inseguro, por vezes imaturo, o protagonista não se sente ainda capaz de uma relação estável. O ethos feminino é, aliás, algo que o deixa desconfortável, por inabilidade. O refúgio dos afectos encontra-os num gato, que irá, porém, levá-lo ao amor, não sem escolhos, e à paternidade, pouco desejada.
O Combate Quotidiano, de Manu Larcenet, publicado entre nós em dois álbuns duplos pela Arte de Autor e A Seita, obra premiada no Festival de Angoulême, em 2005, é simultaneamente catarse, porque autoficção, em que Marco fotojornalista, mais que artífice, artista, é alter ego do autor; e uma reflexão sobre a França contemporânea. Sociedade dividida, de memória recente traumatizada: muito vivas estão ainda as memórias da Guerra da Argélia, e os muitos crimes que o colonialismo francês aí praticou. Como aceitar que um velhinho contemplativo e filosófico que nos acompanha no bucolismo da tarde haja sido um torcionário?; e como explicar a fotografia do próprio pai, jovem, fardado e sorridente, ao lado do torturador? E como acreditar que alguns, muitos, operários dos estaleiros da cidade, ex-colegas do pai, votem na Frente Nacional, essa representação branqueada do lado mais negro da França reaccionária, ultramontana, anti-semita, racista? A abordagem de Larcenet não é nada demagógica; pelo contrário, é um dos grandes momentos da narrativa.
Finalmente, uma reflexão sobre o trabalho artístico. Autor de traço humorístico bem vincado – que em O Combate Quotidiano pode produzir uma saudável sensação de estranhamento, para quem não seja das lides bedéfilas,
Manu Larcenet é um autor tanto de Fluide Glacial, revista satírica, como da familiar Spirou, na qual assinou o argumento de Pedro, o Coati, universos distintos desta narrativa. Os grandes artistas são os que sabem observar, extraindo ouro dos mais anódinos acontecimentos do dia-a-dia. Quando Marco se encontra como artista da fotografia, projectando o olhar que tem dentro de si, confidencia numa vinheta: “Quando fotografava cadáveres, achavam-me interessante. Agora que me interesso pelos vivos, tornei-me ‘vulgar’.” Marco decidira trabalhar as figuras cansadas dos colegas do pai, no estaleiro, os abandonados da globalização, receosos dum mundo que já não compreendem e sentem hostil. Pelo meio das altas cavalarias do financismo global, Manuel, velho operário sai-se com esta: “Não há dúvida. A vida, quando não é hedionda, é magnífica!”
ABECEDÁRIO.
D, de Duke (Hemann e Yves H., 2017). Depois de Comanche, que criou com Greg, e de que aqui falaremos, Hermann regressou ao western através do argumentista Yves H., que é também seu filho, e já antigo colaborador. Morgan Finch, mais conhecido por “Duke” é um pistoleiro que detesta armas, mas o dom que tem de manejá-las como ninguém, ou quase, tornam-no disputado num tempo em que aquelas eram um seguro de vida. As analepses que conduzem à infância, tornam-na também uma BD de formação.
Livros
Il Nido, de Marco Galli. “Em Junho de 1944, enquanto os Aliados desembarcan na Normandia, Adolf Hitler está abrigado no seu refúgio dos Alpes Bávaros. Em redor do Führer, cada vez mais frágil e dependente de medicamentos e drogas, uma corte alucinada de dignitários, médicos e demais oficiais nazis, proctra desesperadmanete ignorar que o fim do Terceiro reich se avizinha.” (Coconino Press, Roma, 2022)
DBD #164. Revista para aficionados da BD, com artigos, entrevistas e recensões, com destaque neste número para o Spirou de Émile Bravo, que reescreveu a história do célebre groom, e um dossier sobre Lefranc, de Jacques Martin, continuado por Regric.