Armando Matteo. Converter Peter Pan

Armando Matteo. Converter Peter Pan


Em processo sinodal, a Igreja Católica, instituição que contribuiu de sobremaneira para dar forma ao Ocidente, repensa-se profundamente. Armando Matteo, Subsecretário da Congregação para a Doutrina da Fé, considera que um certo cristianismo chegou ao seu termo e é hora de uma reforma urgente no catolicismo.


1.Em muitos dos diagnósticos sobre a atual situação da Igreja, a ausência ou diminuta frequência (ou participação) de jovens (na vida daquela, nomeadamente em celebrações eucarísticas, mas não apenas) é amplamente sublinhada. Os jovens, contudo, na leitura de Armando Matteo em “Converter Peter Pan. O destino da fé na sociedade da eterna juventude” (Paulinas, 2022), não vão à Igreja porque, faltando (nela) os adultos – as pessoas na casa dos quarentas, cinquentas, sessentas anos –, a transmissão da fé fica como que obstruída/interrompida/dificultada. Se a Igreja pretende que a desertificação (no seu seio) não progrida (ou alcance, inclusive, inverter-se), em ordem ao bem do humano – capaz, este, de modo desejável, finalmente, de transcendência –, terá, pois, que ser capaz, desde logo, de uma palavra oportuna, significativa, para os adultos (pós-modernos): “se hoje a Igreja não for uma Igreja para homens e mulheres adultos, nunca o poderá ser para aqueles – os jovens – que se preparam para se tornarem nada mais do que os homens e mulheres adultos desta sociedade. Se a Igreja não encontrar uma palavra para os homens e mulheres adultos, nunca terá uma palavra para os rapazes e raparigas jovens” (p.68). E é preciso reconhecer, antes de mais, que as comunidades (católicas) deixaram de “captar as buscas de sentido de uma larga faixa da população” (p.18). Um certo cristianismo chegou ao fim e é hora de se dar rosto e forma a um novo cristianismo (p.22). Passar, nomeadamente, de uma “pastoral de consolação” a um “cristianismo de mansidão”.

2.Se hoje não vemos, ou não víamos (até há instantes), a ausência de adultos na Igreja é porque os idosos, vivendo agora até mais tarde em função dos avanços nas condições de vida e dos progressos da medicina, iam preenchendo os lugares do templo. A máscara sob aquele absentismo caiu, contudo, em definitivo com a emergência da covid19, quando os mais velhos não puderam e/ou tiveram receio de regressar, mesmo quando as portas das catedrais reabriram (e os lugares por preencher, nas Igrejas, tornaram-se crescentes – e ainda que a persistência do vírus, hoje por hoje, não permita conclusões definitivas neste âmbito). Nesse contexto, “O sinal das Igrejas vazias” (Tomas Halík, Paulinas, 2021), durante o confinamento covídico, revelara-se profético. Convidando e convocando, outrossim e com urgência, a uma maturação não apenas dos sinais dos tempos, como, ademais, apelando a uma renovação do pensamento e praxis da pastoral da Igreja.

3.Armando Matteo, professor de Teologia Fundamental na Pontifícia Universidade Urbaniana de Roma, recusa, em absoluto, para a Igreja e o cristianismo um gatopardismo, um mudar para que tudo fique na mesma, bem como o “sempre se fez assim” (e, portanto, afasta-se da perspectiva de que há que continuar do modo, da maneira, da forma que, pretensamente, “sempre se fez”). O grande equívoco que terá travado uma maior urgência em uma mudança, reforma necessária da Igreja assentaria na presença (na forma mentis dos agentes pastorais), por criticar, da categoria de “católico não praticante”, figura esta, em abstracto, a de um (suposto) católico que estando, habitualmente, longe dos ritos e da vida paroquial, se dignaria, quando muito, em contadas ocasiões (anuais), especialmente festivas, dirigir-se à Igreja, sem que a sua “crença cristã”, porém, entendia-se/esperava-se, fosse afectada ou estivesse em crise (e encontrando-se aquele, afinal, sempre em potencial situação de regresso à assembleia dos crentes). Doce enlevo e agradável auto-engano (para a ecclesia/agentes pastorais). Godot não regressa(rá), os católicos não-praticantes não voltarão, numa manhã de nevoeiro, a encher as Igrejas.

Conceda-se, houve um tempo em que uma justificada “aura positiva” permeava os “católicos não praticantes”: em um mundo ainda não demasiado inclinado para o urbano, ou este de limitadas ou médias dimensões, em que todos, ou quase todos, se conheciam as mulheres que abortavam, os homossexuais, os divorciados recasados, entre outros, dificilmente seriam acolhidos com a devida hospitalidade, não lhes restando, praticamente, alternativa que não fosse a de se eximir a comparecer nas celebrações e vida paroquais (ainda que se soubesse permanecerem fidelíssimos). Não é mais este o motivo (precípuo), em um mundo que faz da anomia social uma marca e em que uma forma “rigorista” de encarar a Igreja e o outro se esvazia, que leva a que grandes multidões se afastem dos templos (como o Papa Francisco destacou na sua primeira mensagem à Diocese de Roma, em 2013, como que invertendo, para descrever a actual condição da Igreja, a parábola da ovelha perdida, “nesta cultura – sejamos sinceros – temos apenas uma ovelha, somos uma minoria!”, o que quer dizer que “faltam-nos as outras noventa e nove! Devemos sair, devemos ir ao seu encontro!”).

 

4.Os adultos dos nossos dias, de acordo com o diagnóstico de Armando Matteo, cultuam (o mito de) a juventude. Esse o seu ídolo, o seu deus (Peter Pan), experimentando um sentimento de liberdade absoluta (que importaria converter em desejo de amor), a unicidade (a transformar em desejo de comunhão), a potência, o poder (a transmutar em desejo de um futuro mais humano para todos). Desde há 40 anos, baliza o subsecretário da Congregação para a Doutrina da Fé, a humanidade entrou em uma mudança de época; desde os finais dos anos de 1970, a “cultura ocidental (…) sofreu uma mutação radical: entrou na época da pós-modernidade” (p.42). Tal veio a significar a “desactivação dos grandes paradigmas – das grandes palavras – de um Platão, de um Aristóteles, de um Agostinho, de um Tomás, da cultura judaica e, por fim, da cultura jurídico-romana que, até ao fim dos anos setenta do século XX, guiaram a habitação humana do mundo (permitindo à fé cristã, entre outras coisas, mostrar toda a sua bondade em vista de uma vida digna e louvável)” (pp.42/43), consequência, entre outros, das “numerosas e radicais transformações das artes e das ciências que acompanharam a transição do século XIX para o século XX” e do papel tido, no mesmo período, pelos “mestres da suspeita”, Nietzsche – a afirmação da vontade de poder e da eficiência, a importância da corporeidade, a breve temporalidade -, Freud – eliminação de qualquer sentimento de culpa e de pecado, liberalização de todo o tipo de prazer -, Marx ou, ainda, Darwin. A relatividade de qualquer perspectiva impôs-se, o dinheiro triunfou, a obsessão pela própria saúde veio para ficar, a deificação do aparelho tecnocientífico estabeleceu-se.

A Ocidente, em grande medida, podemos observar, humanos puramente privados – sem qualquer vínculo para além da família -, adultos sem transcendência nem transcendências – somos apenas seres da terra -, indivíduos sem verdades (ou, pelo menos, sem uma clara verdade). O transitório, o efémero, o não habitar “para sempre” coisa alguma, o afastamento do perene, o assumir do não fechar a mínima hipótese, de nunca apertar o laço impera: “já não há espaço para hierarquias, estádios e fases da vida, destinos marcados para sempre, estabilidade de ligações e de profissões, coerência de pensamento e de opções, memória da própria condição precária e mortal, sentimento de pertença a algum grupo que é sempre maior do que a soma dos indivíduos que o compõem” (pp.44-45). No actual contexto, com alguma ironia, dir-se-ia que “a única excepção que parece resistir a este mecanismo parecem ser os adeptos futebolísticos: últimos destroços daquilo que foram os chamados «princípios não-negociáveis” (p.49). Numa palavra, e com Elmar Salman, “já não há classes, partidos, igrejas, fé dominantes, mas as nossas sociedades (e talvez as nossas almas) apresentam-se como uma constelação de minorias, que devem conviver, enriquecer-se, corrigir-se, fazer concessões” (p.48).

Verifica-se um abrandamento do sentimento de limite da espécie, com contínua experimentação no corpo e psique humana, em que o aproveitar a vida – entendido, na declinação do interesse próprio, em um ser pós-político – parece o único lema. O sentido da vida do adulto 4.0 desagua, sem surpresa então, em ser jovem (numa minguada e estreita tradução do que aquele pode configurar: gozar a vida, forma jovem do corpo e espírito, autorrealização; um adulto imaturo, narcísico, não raramente cínico e manipulador pode rondar-nos frequentemente).

 

5.No tempo dos nossos bisavós e avós, no qual homens e mulheres eram diariamente desafiados pela fome, trabalhos extremamente duros, guerras, doenças, pobreza – realidades que, sem estarem superadas e podendo sempre regressar e manifestar-se na pele de tantos (como hoje verificamos de novo), não têm tido, nas últimas décadas, a intensidade que se havia conhecido durante uma imensidão de eras -, pela impossibilidade de se exprimirem e de poderem realizar a si mesmos e aos seus sonhos, e com uma esperança média de vida breve ou brevíssima, a palavra de consolo obtida pela participação nos ritos cristãos, com o seu bálsamo de luz e esperança, eram o bastante – “só o Cristianismo – as promessas de vida eterna e do Paraíso, o exemplo de Cristo que sofre, a necessidade imperiosa de parecermos bons aos olhos de um Deus que é misericordioso, mas, sobretudo, justo – pode garantir a vivência da experiência adulta sem histerias, frustrações ou lamentações excessivas. Era impossível que alguém não se reconhecesse como cristão nem o fosse, numa época em que ninguém podia deixar de chegar à idade adulta, de ser adulto!”, sendo, contudo, e simultaneamente, que uma imagem do Cristianismo “baseada nos temas do Além e do Juízo Final, na imitação de Cristo sofredor e na exaltação da prontidão com que Maria obedece a Deus, sobre o sentimento de culpa e do pecado – original e pessoal – e sobre o preceito” levou, em muitos casos, “a deformar o rosto do próprio Deus, tal como Jesus no-lo revelou” (pp.101-102). Houve um tempo em que a oração era um gesto tão espontâneo como o de olharmos, actualmente, para o telemóvel; uma época “em que o repicar dos sinos tinha um poder tão grande para reconciliar os homens e as mulheres no seu duro ofício da vida, recordando, precisamente, uma dimensão diferente e mais elevada da existência”; uma altura em que tais sons quase dispensavam a necessidade de relógios ou despertadores. Em suma: “houve um tempo em que as pessoas se tornavam convictamente cristãs porque se tornavam, necessariamente, adultas; mais precisamente, era possível as pessoas tornarem-se adultas suficientemente felizes só pelo facto de se tornarem, ao mesmo tempo, cristãs. Tornando-se crescidos, adultos, portanto, os pequenos tornavam-se naturalmente cristãos e vice-versa”. Tempo de Cristandade: “tempo em que nada era mais evidente aos olhos do mundo do que o facto de que precisamente a religião cristã era fonte de luz, de verdade, de consolação e encorajamento para os homens e mulheres adultos. E foi assim que, tendo uma palavra eficaz para os adultos, os agentes pastorais que nos precederam também eram igualmente capazes de falar às inúmeras crianças, adolescentes e jovens do passado” (p.133).

 

6.Não apenas o tempo de cristandade é passado – a fé já não só não é um pressuposto cultural óbvio, como é, ao invés e não raro, negada, desprezada, ridicularizada -, como o próprio significado de ser adulto mudou. Sem se compreender esta mudança, não se poderá actuar em conformidade (a mentalidade pastoral está voltada para um mundo que já não existe, acentua A.Matteo), no sentido de se falar às concretas pessoas da terceira década do século XXI: “a condição adulta passou de representar o tempo dos deveres familiares e sociais (em primeiro lugar, o de constituir família e ter filhos), o tempo das dificuldades e das frustrações, entre trabalho e criação da prole, e ainda o tempo do encontro inexorável com a experiência do debilitamento das energias e, portanto, do envelhecimento e da morte” para um outro tempo “em que a busca humana de vida, de liberdade e de sentimento de unicidade encontra o seu terreno mais fértil. É este, em síntese, o efeito produzido sobre os sujeitos pertencentes às gerações acima citadas pelos desenvolvimentos da medicina e da investigação farmacêutica, por uma atenção renovada prestada à higiene e à saúde pessoal e colectiva, pelo aumento da longevidade, pelo aumento dos recursos alimentares e financeiros, pela difusão das descobertas tecnológicas, entre as quatro paredes domésticas, nos espaços laborais e no raio alargado da esfera social, sem esquecer o efeito do desmoronamento de muitos preconceitos e tabus, da maior escolarização da população global e, por fim, das imensas possibilidades oferecidas pela internet. Tornar-se adultos já não implica o acesso a uma espécie de túnel sufocante, escuro e de sentido único, no qual, ao maior número de passos que aí se dão corresponde uma redução crescente das opções que continuam a ser possíveis para o sujeito, até ao único destino final do cemitério” (pp.90-91).

Em nossos dias, a proposta pastoral sugerida por Armando Matteo parte de uma das características que Jesus diz encontrar-se em si próprio, a mansidão. Esta, nos termos de Norberto Bobbio – que lhe dedica um ensaio -, recordando o filósofo Carlo Mazzanti, consiste «em deixar o outro ser aquilo que é», personificado no olhar do nazareno para Mateus (“Segue-me!”, Mt 9,9) – um homem que cobrava impostos em nome dos invasores romanos, visto como traidor pela gente do seu povo -, um olhar livre e libertador: “Jesus (…) viu um homem chamado Mateus: não viu o seu ofício, não viu as suas nefastas cumplicidades, não viu a sua traição pública da aliança dos pais” (p.106). Deixar o outro ser o que é: libertá-lo para o seu melhor, para gerar, para uma paternidade/maternidade (em que, repete-se, a liberdade resulte em amor, a unicidade em comunhão, a potência em desejo de um futuro mais humano para todos): “todos nascemos para ser pais, isto é, para darmos a vida e para gerarmos outros humanos ou algo noutros humanos. Sempre que somos férteis – sempre que originamos algo, seja o que for e como for – para bem dos outros, para lhes dar vida, estamos a realizar a nossa paternidade (e maternidade). A perdição dos humanos resulta da sua não aceitação da condição filial – por orgulho da autoprodução de si mesmos – e da recusa da condição paternal – por fixação na pura autorrealização de si mesmos” (João Manuel Duque, “Fátima. Uma aproximação”, Paulinas, Prior Velho, 2017, p.80).

Uma pastoral com 10 específicas sugestões deixadas por Armando Matteo, das quais sublinharia, aqui, quatro injunções: i) «abolir» as festas da Primeira Comunhão e do Crisma, isto é, tais celebrações enquadrar-se-iam no “princípio do desejo”, colocando-se termo ao «automatismo dos sacramentos»: “no Evangelho, a maior parte das pessoas com quem Jesus se encontra não o segue. Nem sequer muitas das pessoas a quem ele ajudou. Em suma, segue-o apenas um pequeno grupo, mas cada pessoa recebe o seu apelo e só quando o quer seguir também é colocada perante a sua pretensão (…) A própria primeira comunhão seria uma festa para as crianças que participam com os pais na celebração da eucaristia dominical e a conhecem (…) A preparação para a Comunhão faz-se mediante a prática, à qual se juntam algumas horas de catequese. As crianças não são inscritas com base no ano escolar frequentado pelo filho. Mal uma família manifeste interesse, no fim da celebração eucarística dominical, pode-se perguntar se há outras famílias que também sintam a mesma necessidade” (Thomas Frings, p.145).  Haveria, assim, transformação das catequeses e Primeira Comunhão, que poderiam ocorrer em qualquer Domingo do ano litúrgico, num acontecimento real da família ou de algumas famílias juntas; ii) instituir um «ministério da escuta» – “é tempo, como crentes, de oferecer o dom do nosso tempo. Deveríamos dedicar, portanto, um dia da semana, livre de outras celebrações litúrgicas, à escuta. O pároco, os religiosos presentes na paróquia, os homens e mulheres leigos disponíveis deveriam, por isso, colocar-se à disposição de quem precisasse para uma Confissão, para uma conversa, para escutar uma confidência ou uma mágoa, para oferecer alguma iluminação a partir da Palavra de Jesus, para dar o seu apoio no caso de alguma tomada de decisão importante, para também trocar dois dedos de conversa” (pp.148-149); iii) “menos missas e mais Missa”: em alguns territórios ocidentais, “celebram-se demasiadas missas, tantos nos dias feriais como, ainda mais, nos dias festivos. E o paradoxo é que damos connosco com missas a mais e com Missa a menos” (pp.139-140); iv) “gargantas ao alto”: “não me cansarei de insistir junto dos meus confrades párocos, recordando-lhes que os cânticos são mais importantes do que a homilia e que empenhar-se em incentivar todos a cantar e em ensinar a todos os cânticos litúrgicos é, hoje em dia, a estrada real para dar ao domingo aquilo em que consiste verdadeiramente o domingo” (p.147).

 

7.Um ensaio no qual se escolhe o verbo “converter” a abrir o próprio título (do mesmo) corre sempre o risco de ser entendido como uma provocação ou, de algum modo, como contendo um certo paternalismo – ainda que esta contenha o intuito de contribuir, colocar-se ao serviço do humano na jornada em que este revele o melhor de si a si mesmo; a descrição do adulto (Peter Pan) deste tempo, tal qual a podemos ler nesta elaboração vinda de pontuar, surgirá, porventura, aos olhos de alguns, como necessitada de temperar com a dilucidação de características (ou, pelo menos, nuances) valoradas como mais positivas pela sociedade em que nos encontramos (o adulto “sempre jovem” também poderá ser voluntarioso, generoso, etc. como o poderemos encontrar, cremos, apesar de tudo, nas nossas urbes) – ainda que, em rigor, essa busca de desocultar o humano (tão sem ilusões quanto possível) em meados da terceira década do século XXI surja como um grito para a Igreja ser capaz de falar para os homens e mulheres não de há cinco ou seis décadas, mas aos desta hora (uma disponibilidade que os “empodere”…para os outros; neste sentido, de facto este ensaio não é marcado por qualquer tentação de uma reacção nostálgica e uma das perguntas que A.Matteo coloca é, mesmo, se somos capazes de sonhar, e nomeadamente se os católicos são capazes de ter sonhos para a Igreja); a perspectiva de que a Igreja não consegue tocar as demandas espirituais dos nossos concidadãos pressupõe que tais procuras existem mesmo – um aspecto, julgo, em si mesmo positivo -, faltando, porém, perceber a dimensão, a disponibilidade, a vontade dessa(s) busca(s) (desde logo, para que se perceba, e não nos iludamos também, no que aos “buscadores”, e sua dimensão, diz respeito, até na avaliação das estratégias pastorais em curso ou devir); a ideia de que “o sinal das Igrejas vazias” (durante a pandemia, ainda por superar completamente) foi uma autêntica revelação quanto a um esvaziamento das igrejas talvez não seja isenta de algum exagero, na medida em que muitas comunidades católicas se viram, ao longo dos anos, em especial das últimas décadas, precisamente perante esse mais ou menos lento “abandono”, consistindo, porventura, mais o mérito no discernimento do “sinal”, isto é, do confronto duro mas verdadeiro com esse vazio, suas causas e propostas para um fecunda reforma; quanto à categoria de “católico não praticante”, porventura, aqui se esperasse, inclusive, uma problematização mais radical da mesma (o que é ser, hoje, “católico não praticante”, melhor, o que é ser agora “católico praticante”?); a noção, ao nível pastoral, de que homilias são menos importantes do que os cânticos, se dá nota da alegria necessária e, por vezes, aparentemente ausente das celebrações, não pode ignorar quanto, tantas vezes também, os que acodem aos templos vão em busca de uma palavra que anime, desperte, provoque, lance, semeie, incandesça, faça sonhar, atire ao compromisso (com os últimos). Armando Matteo regista, e bem, que o pior que uma crise pode ter é tornar-se uma crise por aproveitar (e é da crise de uma forma do cristianismo de que aqui se cura; para utilizar um brocardo que se tornou generalizado, não se trata do fim do mundo, mas do fim de um mundo) e que não se visa, neste entendimento, um cristianismo “puro e virginal” – dado que o cristianismo é sempre incarnado, num tempo e lugar, numa cultura -, mas uma dada proposta (e, nela, um acervo de sugestões pastorais) que seja capaz de fazer jus ao atual momento (um “cristianismo de mansidão”). Nas propostas pastorais vindas de mencionar, a indicação quanto a comunhões e crismas como que segue, cremos, na senda da sugestão advinda, esta década, do mundo francês (Phillippe Bacq e Christoph Theobald, “Uma nova oportunidade para o Evangelho”, Paulinas, Prior Velho, 2013) e merece, bem o cremos, particular atenção, na medida em que, justamente, não ignora, em momento algum, o fenómeno do individualismo contemporâneo, mas, longe de uma atitude exclusivamente condenatória convoca a uma “pastoral de gestação”. Na síntese possível neste contexto, diremos que a nova prática pastoral sacramental, preconizada por Benoit Malvaux, assentará em três eixos essenciais: a) a atitude do agente pastoral face à demanda de um dado sacramento; b) a incorporação de uma dimensão propositiva, e não meramente passiva, como resposta àquele que pede o sacramento; c) a revisitação da qualificação/enquadramento de certas solicitações para a recepção de um sacramento (muitas vezes ditas “meramente sociológicas”).

Um dos pontos mais sugestivos da abordagem de Malvaux prende-se com a assumida necessidade de ultrapassar a “lógica do frente a frente, entre aquele que sabe e aquele que deve aprender, a fim de favorecer uma lógica do caminhar juntos, em que cada um está disposto a receber do outro”. As palavras estão aqui longe de se poderem considerar vazias, ou vagas. O que o autor propõe é que o agente pastoral esteja disposto a acolher a novidade do pedido – mais rigorosamente, da motivação, partilhada, conversada, maturada, do pedido – e aquele que solicita o sacramento se predisponha a esta troca. Esta indicação, em realidade, pode situar a “pastoral num quadro mais alargado, onde o importante é tanto receber como dar. E este «caminhar juntos» é susceptível de produzir frutos inesperados. Não é impossível, por exemplo, que no termo do diálogo pareça às duas partes que um gesto não sacramental se revelaria mais significativo do que o sacramento pedido à partida. Postula-se, pois uma “pastoral que convide a reconhecer que todo aquele que procura um sentido, por muito afastado que aparentemente esteja da fé e da vida cristã, é igualmente animado pelo Espírito e pode contribuir para gerar a Igreja para a novidade do dom de Deus que trabalha o nosso mundo. Uma pastoral que se recusa a deixar-se fechar em juízos prévios, mas que se torna disponível àquilo que o Espírito pode suscitar no interior de uma caminhada comum. Uma pastoral que reconheça que o Evangelho não nos coloca a todos dentro da mesma forma, mas nos gera para a vida de Deus, naquilo que nós temos de mais único e pessoal”.

Quanto a Tomás Halík, com o qual Armando Mattei inicia o seu “Converter Peter Pan”, um ano após “O sinal das Igrejas vazias”, deixou-nos novo ebook (“De animo contrito”, Paulinas, 2022), no qual exorta ao fim da “doença do clericalismo” na Igreja (em boa medida, considera, responsável pela crise dos abusos sexuais no seu seio) e a revisitação do aprofundamento espiritual, do estilo pastoral e do ministério episcopal e sacerdotal (e seus principais protagonistas) que enquadraram a “reforma católica” no século XVI. Tal como apontara no seu livro “O tempo das Igrejas vazias” (Paulinas, 2021) coloca a ênfase na «orientação espiritual», “um aconselhamento mais longo e profundo do que o oferecido pela forma habitual do sacramento e que abrange um contexto mais lato. A estas conversas assistem frequentemente pessoas não batizadas com inclinações espirituais (…) Creio firmemente que o «acompanhamento espiritual» será a principal tarefa pastoral da Igreja nos próximos tempos”. Algo que se complementará com uma “Igreja como «escola de sabedoria cristã» (à procura da verdade com todos os que queiram nela participar, como uma universidade), «hospital de campanha» (uma Igreja que toca as feridas do mundo) e a Igreja como local de encontro, partilha e reconciliação.