Sem pedir licença, a incerteza instalou-se nas nossas vidas marginalizando boa parte da capacidade de modelar as linhas com que se cosem os quotidianos. Não é possível sustentar a organização de uma sociedade assente em padrões de imprevisibilidade generalizadas, por maior que seja o compromisso e o esforço individual.
Há muito que o tempo das dinâmicas do dia-a-dia e das tendências diverge do tempo das decisões e ainda mais do momento da concretização.
Planear e antecipar tornou-se um desafio maior, por falta de vontade política, ausência de recursos, incapacidade de sustentar as decisões ou insuficiente mobilização para fazer, manter e ajustar.
A generalização das falhas no Serviço Nacional de Saúde não são uma circunstância, até porque têm maior ou menor visibilidade pública e mediática por critérios variáveis, mas uma realidade estrutural, com causas e consequências. A gravidade de uma perda de vida humana por alegada indisponibilidade de respostas qualificadas no acesso a cuidados de saúde não pode ser desvalorizada por ninguém, muito menos por um Presidente da República que ora enche a boca de “Povo”, ora desvaloriza uma ocorrência grave no SNS, enquanto insiste em ser força de bloqueio na consagração da possibilidade legal de recurso à eutanásia.
O caso do Hospital das Caldas da Rainha é uma tragédia em vários atos, que só não é maior porque existem bons profissionais residentes, a par de plêiade de contratados e tarefeiros não comprometidos com um esforço estruturado de sustentação dos serviços e dos padrões de qualidade. A insuficiência do equipamento para a região é reconhecida há muito, andou embrulhada na construção do novo aeroporto de Lisboa na Ota, teve estudos sobre a opção da localização que já poderiam estar concluídos se o presidente da Câmara Municipal das Caldas da Rainha no início de 2000 não tivesse indicado dois terrenos separados em vez de um terreno adequado à nova implantação, junto à Autoestrada do Oeste. Desde esses tempos idos do diagnóstico do problema e do desfasamento das respostas de cuidados de saúde, já entraram no catálogo de opções do Estado para a construção de novos hospitais vários equipamentos em parcerias público-privadas (Braga, Cascais, Loures e Vila Franca de Xira) e de construção própria (Alentejo Central, Seixal e Algarve). É certo que, três das unidades de saúde que registam problemas de disponibilização de cuidados de saúde especializados, eram até há pouco unidades de saúde sob gestão nos termos de parcerias público-privadas, sem registos de falhas desta gravidade, mas a cegueira ideológica falou mais alto, antes de acautelar as condições para o bom funcionamento no registo pretendido. A fatura é paga pelos utentes e pelo Orçamento do Estado.
Gerir recursos humanos é dos desafios maiores em qualquer organização, existindo sempre margens de imprevisibilidade que serão acomodáveis ou não se não for gerido nos limites das disponibilidades, o que acontece no público e no setor privado, embora neste a tolerância é maior.
O SNS que engalana tantos discursos e narrativas, esteve e estará sempre nos limites, logo, sem capacidade para acomodar as modelações da realidade e as novas tendências, em que a previsibilidade, por exemplo do envelhecimento da população ou das doenças relacionadas com os estilos de vida, se cruzam com novas realidades. O que não é possível é aceitar as insuficiências e as falhas graves como se fossem expressão de um novo normal, existente há anos e agravado com a Troika, ou fruto de circunstâncias. A morte por falta de adequado socorro nunca é uma circunstância desprezível como resulta das declarações do Presidente da República ou dos comunicados das autoridades de saúde.
Dito isto, importa sublinhar que esta é uma matéria que compromete todos os partidos políticos, na medida em que num país com manta curta de recursos não hesitam em colocar em cima da mesa novas prioridades e direcionar as decisões políticas para outros investimentos do Estado, por vezes, em áreas de interesse residual. A covid 19 teria apesar de tudo uma dimensão de imprevisibilidade na grandeza dos impactos, mas as falhas que se registam hoje são o resultado das opções e das inações reiteradas de todos os passados.
O drama é que no quadro de incertezas que pontuam as nossas vidas, não é possível reforçar a imprevisibilidade com o acesso aos cuidados de saúde, já tão martirizado com obstáculos na disponibilização de médico de saúde, de transporte para aceder ao equipamento, de diagnóstico especializado em tempo útil e em tantas outras expressões de disfunção das respostas.
Os cidadãos, que pagam impostos e não são poucos, precisam de ter garantia de que não há falhas no essencial. E a saúde é parte desse essencial. Se o planeamento falha com situações que são recorrentes, não pode falhar. Se os recursos financeiros e humanos são insuficientes para a concretização de respostas, o sistema tem de ser repensado, sem preconceitos ideológicos que desmontem o que funciona sem assegurar capacidade de resposta pública. A saúde não é palco para joguinhos, nem do poder nem da oposição, nem de quem gere nem dos sindicatos. É demasiado importante para estar sujeita a humores e modelações previsíveis.
Não garantir que às imprevisibilidades que não controlamos se somamos novas incertezas na vida dos cidadãos é contribuir para atrasos civilizacionais. E bem podem lançar temas de grande modernidade, apelativos ou alinhados com as tendências, mas é não fazer o que importa mesmo para as pessoas e para os territórios.
A imprevisibilidade não pode ser o padrão ou viveremos numa selva comunitária, com o Estado a assistir.
NOTAS FINAIS
SR. PRESIDENTE, NÃO ENVIÁMOS, ELES FUGIRAM, MESMO. A emigração está presente na vida de um país quando não há perspetivas de realização ou de uma vida melhor no respetivo território nacional. É o que tem acontecido nas últimas décadas, mesmo com as gerações mais qualificadas. Por isso é ridículo, Marcelo Rebelo de Sousa vir dizer em modo graçolas, “mas quero dizer-lhe que enviámos não apenas um, mas 700 cristianos ronaldos para a vossa comunidade científica. Enviámos muitos e estou certo de que parte deves vai ajudar-vos muito.”. Pois, é ajudam os outros, mas faltam a Portugal e aos portugueses por falta de oportunidades e de condições de realização pessoal e profissional. Não enviámos, fugiram em busca de melhores futuros. São também os que faltam no SNS.
VOLTAR PARA O BOM TEMPO É MUITO POUCO. “Aqueles que, pelas mais diversas razões saíram do país têm a oportunidade (…) de regressar a casa”, afirmou o ministro dos Negócios Estrangeiros português num apelo aos jovens emigrantes portugueses no Reino Unido, assente nas medidas do programa Regressar e do IRS Jovem. Está tudo doido? Quando temos os nossos filhos a quererem seguir esse mesmo caminho por falta de oportunidades e de mínimos de previsibilidade, não apenas por alterações dos padrões mentais de referência?