Tesouro de um galeão espanhol perdido há mais de 300 anos é por fim revelado

Tesouro de um galeão espanhol perdido há mais de 300 anos é por fim revelado


Lingotes de ouro, talheres chineses, espadas e canhões fazem parte das novas descobertas no galeão San José, sepultado no leito do mar do Caribe colombiano, numa zona onde já foram descobertas mais duas embarcações naufragadas.


Andamos fascinados com um passado mirífico, com uma relação de estranhas e cativantes lendas, com o próprio tempo, quando este parecia desdobrar-se como um mapa, para soprar nele o pó, desviando-o dos seus abismos, revelando uma outra terra, essa que ganha raízes sobre as nossas melhores projecções aventurosas. Hoje, parece que só os restos de antigos no leito dos nossos mares parece ser capaz de despertar a nossa imaginação, quando o mundo à superfície se recusa a toda a magia e sortilégios, ficando-se pela prudência, um jogo bastante aborrecido. “Longe do mar e da formosa guerra,/ Que, como o amor, o que perdeu glória, O bucaneiro cego percorria/ Os terrosos caminhos de Inglaterra.// Ladrado pelos cães de tantas quintas,/ Chacota dos rapazes do povoado,/ Dormia um combalido e tão gretado/ Sono em valas de pó negro, retintas.// Sabia que em remotas praias de ouro/ Era seu um recôndito tesouro/ Aliviando-lhe a contrária sorte;/ Também a ti, mas noutras praias de ouro,/ Te aguarda incorruptível teu tesouro:/ A vasta e vaga e necessária morte.” Eis o poema que Jorge Luis Borges dedica a Robert Louis Stevenson, autor da sua predilecção, que escreveu A Ilha do Tesouro, e como a ele, chamou tantos atraiu tantos miúdos para esse imaginário que remonta à Odisseia e que se distrai com o saque dos últimos brilhos da épica nos nossos dias. E talvez seja por um desejo de retomar esses poderes da infância, os quais vivem intactos dentro de nós, que os jornais se enchem de notícias que espevitam os leitores com imagens de navios afundados que, séculos depois, vêem as suas sepulturas marítimas profanadas, já não por piratas, mas por vastas equipas de estudiosos. É o caso do galeão San José, um navio espanhol afundado na costa de Cartagena das Índias em 1708, tendo imagens deste sido divulgadas esta segunda-feira pelo governo da Colômbia, as quais mostram louça chinesa quase intacta, um par de barras de ouro, centenas de moedas de oito reais, vários canhões feitos em Sevilha em 1665, espadas, vasos, malas e muitos outros pequenos tesouros da época, desconhecidos até agora. Nas filmagens que foram feitas nas profundezas do mar do Caribe, perto de Cartagena, onde estão enterrados os restos do navio, também há peixes de diferentes espécies, caranguejos, moluscos e corais que convivem ao lado do cobiçado espólio, que até agora não pôde ser resgatado devido a conflitos de jurisdição internacional relacionados com a propriedade do navio.

Entretanto, numa conferência de imprensa da Casa de Nariño, sede da presidência do país, o Presidente da República, Iván Duque, afirmou que as descobertas foram possíveis graças a equipamentos de filmagem de última geração que permitiram realizar as gravações a mais de 1.000 metros de profundidade, obtendo imagens de alta qualidade a partir dos diferentes recantos do galeão, e isto com o fito de documentar e proteger o património encontrado. Duque adiantou ainda que dois novos navios foram descobertos na mesma área onde o San José está sepultado. “Um deles pertence ao período colonial e o outro corresponderia ao período republicano”, explicou o presidente. E acrescentou que é possível que nas próximas explorações, pelo menos 10 outros navios semelhantes sejam encontrados nas proximidades.

A conferência serviu não apenas para o chefe de Estado colombiano se vangloriar dos feitos desta empreitada nas léguas submarinas, mas também de uma intervenção estratégica no sentido de reclamar a propriedade sobre destroços que podem vir a originar à superfície um museu com vista para as intimidades aventurosas do passado. “Nos últimos anos, adquirimos equipamentos para chegar às profundezas do mar e obter as melhores imagens que nos permitem proteger a integridade do tesouro e realizar um monitoramento permanente para que tudo seja preservado e protegido até que a extração possa ser realizada", esclareceu o presidente. A notícia do El País, adianta que o galeão San José partiu da Espanha em 1706 juntamente com outros navios e tendo como destino o mar do Caribe. Após um mês de navegação, este chegou a Cartagena, onde permaneceu por dois anos, partindo, em 1708, para o Panamá carregado de lingotes, moedas de ouro e prata, avaliadas na época em 11 milhões de pesos. A frota viria a ser atacada por navios ingleses, naufragando perto da ilha de Barú, a poucos quilómetros de Cartagena. Os restos do galeão foram descobertos a 27 de novembro de 2015 por investigadores do Instituto Colombiano de Antropologia e História (ICANH), da Marinha Nacional da Colômbia.

O Ministro da Defesa, Diego Molano, que também participou na conferência, explicou que esta expedição permite garantir "com total certeza" que o tesouro do galeão San José será entregue intacto ao próximo governo. “Nestas campanhas de observação foram utilizados equipamentos de alta tecnologia e ferramentas informáticas para processamento de dados e verificação do estado do naufrágio”, adiantou o ministro. Permanecem, no entanto, uma série de dúvidas, não só quanto às verdadeiras condições dos tesouros, mas também relativamente à capacidade do governo colombiano levar a cabo o resgate destes. Nelson Freddy Padilla, autor do livro “El galeão San José y otros tesoros”, deixou antever que, ao contrário do que dão a entender os dirigentes colombianos, longe de ser uma situação com um desfecho previsível, é difícil prever o que se seguirá: “Os anos passam e a questão das dezenas de galeões afundados nos mares colombianos não se resolve verdadeiramente. Não existe um plano científico sério para removê-los e colocar todo esse conhecimento ao serviço da cultura.”

Mas se é difícil chegar a uma resolução e promover as acções de resgate, montando o tal museu onde os visitantes pudessem mergulhar nas entranhas do passado com as suas formidáveis peripécias em alto mar, estes tesouros perdidos e reencontrados tantos séculos depois pelo menos ao nível da imaginação remetem-nos para certos célebres relatos literários, como uma dessas cidades invisíveis de que nos fala Italo Calvino. Em vez dos mares do Caribe colombiano e de Cartagena, podíamos estar a falar de  Eufémia, cidade onde, no livro do italiano, se reúnem os mercadores de sete nações a cada solstício e equinócio. “O navio que aproa com uma carga de gengibre e algodão voltará a zarpar com o porão cheio de pistácios e sementes de papoila, e a caravana que acabou de descarregar sacos de noz moscada e de gengibre já atulha os seus fundos para o regresso com rolos de musselina dourada”. Calvino foi um desses mestres das especulações imaginosos que nos demonstrar como o passado permanece aí como um vasto mapa de ausências e ruínas ou tesouros que podem ser resgatados e oferecidos à projecção do futuro, do mesmo modo que “recordar, quando se cria, é imaginar com a memória, é libertar a memória ou, antes, tornar a memória livre, desvinculada do tempo e do espaço, imediatizá-la numa presença eterna” (António Ramos Rosa). E, assim, Calvino prossegue esta sua espantosa divagação, arrancando aquela cidade nova dos escombros de tantas hoje soterradas: “Mas o que impele a subir rios e atravessar desertos para vir até aqui não é só a troca de mercadorias que se encontram sempre as mesmas em todos os bazares dentro e fora do império do Grão Kan, espalhadas aos nossos pés em cima das mesmas esteiras amarelas, as sombras dos mesmos mosquiteiros, oferecidas com os mesmos abaixamentos de preço enganosos. Não é só a vender e a comprar que se vem a Eufémia, mas também porque à noite junto das fogueiras à volta do mercado, sentados em sacas ou nos barris ou deitados sobre montes de tapetes, a cada palavra que alguém diz – como «lobo», «irmã», «tesouro escondido», «batalha», «sarna», «amantes» – os outros contam cada um a sua história de lobos, de irmãs, de tesouros, de sarna, de amantes, de batalhas. E sabemos que na longa viagem que nos espera, quando para ficarmos acordados com o balançar do camelo ou do junco nos pomos a repensar em todas as recordações uma a uma, o nosso lobo ter-se-á transformado noutro lobo, a nossa irmã numa irmã diferente, a nossa batalha noutras batalhas, no regresso de Eufémia, a cidade em que se trocam memórias a cada solstício e a cada equinócio.”