Inspirava-se em coisas que nada tinham que ver com a arte: jornais, pequenas esquinas de ruas, provérbios, jogos infantis, canções, pesadelos, desejos, medos… “Por exemplo, num almoço ao domingo, vai tudo lá almoçar a casa e depois tenho uma caixa com fatos de mascarar. Muitos fatos espanhóis, de flamenco, etc. Depois de almoço as minhas netas mascaram-se todas, dançam e recitam e fazem coisas para a gente ver e brincam assim – eu não estou lá a fazer os desenhos, não sou eu que vou dirigir o que elas brincam. Brincam ao que elas gostam de brincar. E eu estou só a ver”, contava Paula Rego ao Sol, em 2012. Além disso, pintava todas as pessoas que conhecia: “Toda a gente tem de posar para mim, se eu as conheço. Vêm cá e trabalham comigo. Todas as minhas netas o têm feito. A Nossa Senhora é a minha neta. Elas têm de estar quietinhas, mas eu pago-lhes. Têm de estar sem se mexer e essa coisa toda”, admitia. Mas quando lhe perguntavam por que pintava, respondia que “queria dar rosto ao terror”, que não o conseguia evitar. “Pinto aquilo que arranha, aquilo que dói, porque quero dar uma face ao medo”, explicou a Anabela Mota Ribeiro, numa entrevista (incluída no livro Paula Rego por Paula Rego) em que admitia que o medo vivia consigo todos os dias.
Talvez isso resultasse do contacto desde muito pequena com dois artistas: o pintor e gravador espanhol Francisco de Goya e o altamente produtivo e bem-sucedido ilustrador francês oitocentista Gustave Doré. “Fui criada com as gravuras deles. O meu pai tinha livros com estas coisas e metia-me medo com o Inferno de Dante. As gravuras do Goya são os Disparates, os Desastres da Guerra, essas coisas todas famosas. Tinha lá essas coisas que eu via, não é? Terríveis coisas. Gostava… o terrível é bom”, explicava. Muitos anos depois, teria no seu quarto de dormir gravuras do mestre espanhol. “Tenho várias gravuras dele e todas as noites olho para elas. Estão no meu quarto”, revelou a Anabela Mota Ribeiro.
Interpretava o mundo através das histórias, acreditava que toda a gente o fazia à sua maneira, sentindo as coisas… Num texto publicado em 2018 no jornal britânico The Guardian, no contexto da exposição All Too Human, na Tate Britain, em Londres, a artista afirmou que “as histórias têm pessoas nelas”, por isso desenhava “pessoas a fazer coisas umas às outras”, lembrando que recorria a contos do folclore português e a histórias como as de Eça de Queirós. Além disso, dizia que “para encontrar o caminho em qualquer lugar, é preciso encontrar a porta, assim como Alice no País das Maravilhas”. “Pegamos muito de uma coisa, ficamos grandes, depois pegamos muito de outra e ficamos muito pequenos… Temos de encontrar a nossa própria porta de entrada para as coisas”, refletia.
E foi exatamente isso que fez ao longo de 87 anos. Talvez até tenha sido essa porta que a transformou na artista que todos conhecemos e que, durante a sua carreira, pintou a vida e levou o nome do país a todos os cantos do mundo. A obra de Paula Rego raras vezes deixa o espectador indiferente. As suas telas falam eloquentemente da condição feminina, das injustiças sociais e da hipocrisia. Recusam a opressão sob todas as suas formas, como se o objetivo de uma imagem não fosse deslumbrar, mas antes desconcertar e fazer refletir. A pintora, a mais reputada artista portuguesa a nível internacional, morreu na manhã desta quarta-feira em Londres, aos 87 anos, confirmou uma fonte próxima da família. Um comunicado emitido pela galeria Victoria Miro, que a representava, especifica que morreu “vítima de curta doença, na sua casa no norte de Londres, rodeada pela família”. “Os nossos pensamentos estão com os seus filhos, Nick, Cas e Victoria Willing, e os netos e bisnetos”, acrescenta a nota.
O dom para o desenho
Paula Rego nasceu em Lisboa, em janeiro de 1935, no seio de uma família da alta burguesia com ligações à cultura inglesa e francesa. Os seus primeiros três anos de vida foram passados com os avós paternos numa quinta que a família possuía na Ericeira, já que os seus pais partiram para Inglaterra para terminarem os seus estudos académicos. Foi exatamente nessa fase que viu nascer as principais fontes de inspiração que viriam a informar a sua obra. Aos quatro anos, desenhava bonecos debaixo da mesa, mas nenhum deles era elogiado: “Ninguém me dizia: ‘Olha que bonito.’ Agora é que se diz isso às crianças: ‘Ai que lindo, que lindo’, e não é nada lindo. A minha mãe achava que não se devia estar sempre a dizer aos meninos: ‘Ai que bonito, que bonito.’ Tinha toda a razão, toda. Nunca me disse essas coisas, nem pensar nisso. Eu fazia porque gostava”, admitia no livro de Anabela Mota Ribeiro. Anos mais tarde, e já depois dos pais terem regressado a Portugal – sem que Paula os reconhecesse quando os viu –, foi diagnosticada com tuberculose, passando a morar, por recomendação médica, junto ao mar, no Estoril. Recuperou da doença e iniciou os seus estudos no Colégio Integrado Monte Maior, em Loures. Em 1945, mudou-se para a St. Julian’s School, em Carcavelos, onde o seu talento para o desenho começou a ser reconhecido pelos professores. Por isso, e com incentivo do seu pai (foi ele que lhe passou o gosto não só pela pintura, como pelos grandes escritores portugueses, música erudita e cinema), com apenas 17 anos partiu para a capital britânica, para estudar na Slade School of Fine Art. Foi aqui que a jovem artista conheceu o pintor inglês nascido no Egipto Victor Willing, sete anos mais velho e casado, com quem passou a viver, se casou em 1959 e cuja obra mostrou por várias vezes no museu Casa das Histórias, em Cascais, inaugurado em 2009.
Em 1988 despedia-se de Willing – que sofria de esclerose múltipla e passou os últimos quatro anos de vida acamado, sob os cuidados de uma enfermeira de Viseu, Lila Nunes, que se tornaria a principal modelo e confidente da artista – e cumpria 12 anos de residência na capital britânica. Na década seguinte, o seu nome já ecoava nos corredores do mundo da arte por todo o planeta e Paula Rego começava a ser apresentada como “um dos mais importantes pintores ingleses vivos”. O valor internacional da sua obra evidenciou-se sobretudo em 2015 com a venda, num leilão, em Londres, da obra O cadete e a sua irmã, por 1,6 milhões de euros – que pintou no ano da morte do seu marido –, um novo recorde da artista portuguesa. Nesse ano passou também a ser representada pela galeria Marlborough Fine Art, em Londres, e foi distinguida com uma grande retrospetiva na Serpentine Gallery, na capital britânica.
Objeto de grandes exposições nas fundações Calouste Gulbenkian e de Serralves, em Portugal, e em museus e galerias internacionais como o Centro de Arte Reina Sofia, de Madrid, algumas das suas obras mais conhecidas são Salazar a Vomitar a Pátria, O Cadete e a Irmã, A Dança, e as séries Vivian Girls, Aborto, O Crime do Padre Amaro, Dog Woman e Possession.
Pintar o medo
“As suas pinturas levam-nos numa viagem de vingança e auto-afirmação, à medida que as raparigas tomam o poder, caudas dos cães são cortadas, meninas pintam homens velhos, criadas pobres matam as suas patroas ricas e meninas vítimas de abuso são protegidas por um anjo, que por elas faz justiça”, escreveu Elena Crippa, curadora das coleções de arte moderna e contemporânea britânica da Tate Britain, no texto que abre o catálogo de Paula Rego, a retrospetiva que se estreou em 2021 no museu londrino e que recentemente chegou a Málaga. “Não existe apenas dor ou raiva, mas também uma atitude maliciosa e subversiva que se delicia com o humor negro e as alusões atrevidas”, acrescentou a curadora. A verdade é que grande parte da carreira da pintora se concentrou nos direitos das mulheres e, em particular, no aborto. “Fiz muitos abortos. Não fui só eu. Na Slade, todas as raparigas fizeram. Naquela época não havia contracetivos. E os homens não se preocupavam!”, explicou no documentário Paula Rego, Histórias & Segredos, de 2016, realizado pelo mais novo dos seus três filhos, Nick Willing. A artista relata episódios duros da sua vida pessoal, tais como o primeiro encontro sexual com Willing, os abortos que se viu obrigada a fazer quando estudava na Slade, a forma como lidou com a depressão do pai (que a levou a fazer psicoterapia jungiana, onde descobriu os contos tradicionais, que se tornariam uma das suas grandes fontes de inspiração) e mesmo a tentativa de suicídio do pai dos seus filhos, que viveu com esclerose múltipla durante mais de de 20 anos – situação que foi também inspiração para o seu trabalho. In the Family, pintado em 1998, mostra uma mulher e a sua filha a vestir um homem sentado incapaz de se movimentar sozinho.
Numa entrevista ao The Guardian, em 2019, Paula Rego reforçou que “tornar os abortos ilegais é forçar as mulheres a uma solução clandestina”. “Estou a fazer o que posso com o meu trabalho, mas os homens e as mulheres precisam de enfrentar isto! Afeta os homens também! Não se engravida sozinha, não é?”, interrogou.
Em 2005, foi a artista escolhida por Jorge Sampaio para fazer o retrato para a galeria dos Presidentes do Palácio de Belém. No quadro a óleo, o Presidente encontra-se sentado, com as mãos tensas sobre as pernas, com vários símbolos nacionais no fundo. O quadro revelado em 2006 – imediatamente antes da cessação do mandato de Jorge Sampaio –, foi um dos seus trabalhos mais difíceis e controversos. Na altura, a artista relatou que o processo de criação do retrato “quase a matou”, porque, enquanto pintava, “havia sempre pessoas a entrar e a dizer ‘esse braço não está bem’ ou ‘o nariz dele não é assim’”. Acabou por trocar de local de trabalho, terminando a tela numa sala cheia de armários e vidros. O_resultado, ainda assim, foi muito contestado.
A cara de um país
Durante a sua carreira, não lhe faltou reconhecimento. Foi galardoada, entre outros, com o Prémio Turner em 1989, e o Grande Prémio Amadeo de Souza-Cardoso em 2013, além de ter sido distinguida com a Grã-Cruz da Ordem Militar de Sant’Iago da Espada em 2004. Em 2010, recebeu da Rainha Isabel II a Ordem do Império Britânico com o grau de Oficial, pela sua contribuição para as artes e, em Lisboa, recebeu o Prémio Personalidade Portuguesa do Ano atribuído pela Associação da Imprensa Estrangeira em Portugal. Em 2016, recebeu a Medalha de Honra da Cidade de Lisboa e, três anos depois, foi distinguida com a Medalha de Mérito Cultural pelo Ministério da Cultura.
Antes de chegar à reta final da vida Paula Rego atingiu um pico de visibilidade e reconhecimento internacional que a importante retrospetiva da Tate Britain e, mais recentemente, a exposição internacional da Bienal de Artes de Veneza vieram reforçar. No ano passado, o Financial Times considerou-a uma das 25 mulheres mais influentes do ano, surgindo ao lado de nomes como o da presidente da Câmara dos Representantes dos EUA, Nancy Pelosi, e da denunciante Frances Haugen, que revelou segredos internos da rede social Facebook. “Lutando contra um meio familiar profundamente convencional e religioso em Portugal e, mais tarde, a meio da carreira, no mundo da arte de Londres dominado por homens, Paula Rego afirmou-se como provavelmente a mais significante pintora figurativa dos nossos tempos”, reconheceu o jornal britânico. Por sua vez, em resposta, a pintora explicava: “Tento obter justiça para as mulheres, pelo menos nas imagens… E vingança também!”.
Em declarações aos jornalistas em Braga, Marcelo Rebelo de Sousa começou por lembrar que esteve muito recentemente na inauguração da retrospetiva na Tate, em Londres, com o filho da artista: “Depois em Haia e depois em Málaga, em Espanha. Era uma exposição que era uma homenagem, numa altura em que se sabia que Paula Rego estava já doente”, revelou. “É uma artista plástica muito completa, a artista plástica portuguesa com maior projeção no mundo certamente desde que nos deixou Vieira da Silva, há várias décadas. Teve uma projeção muito longa, muito rica e muito prestigiante para Portugal”, sublinhou, adiantando que em articulação com o Governo vai decretar luto nacional pela morte da pintora.
“Tudo menos politicamente correta”
Numa nota de pesar enviada à imprensa, a Fundação D.Luís I – responsável pela gestão e programação dos equipamentos culturais de Cascais, entre os quais a Casa da Histórias -, lembrou que a pintora deixa uma obra que se divide entre o desenho, “que domina magistralmente”, a gravura e a pintura, na qual “privilegiou os trabalhos em acrílico”. “O seu estilo evoluiu rapidamente do abstrato para o figurativo-representacional, servindo narrativas baseadas em obras literárias ou, maioritariamente, em contos populares portugueses, com uma perspetiva crua, de formas robustas e delineadas com absoluta clareza, que evocam, ora o sentimento de culpa católica que a possuiu na infância, ora a convicção feminista que desenvolveu e pela qual militou na vida adulta”, frisou.
Ao i, Salvato Telles de Menezes, presidente da Fundação D. Luís I e membro da comissão paritária que dirige a Casa das Histórias, em Cascais, fez questão de viajar até ao momento em que “se apercebeu realmente de quem era Paula Rego pessoa, quais as suas posições, ideias e intenções”. “Aquilo que sobressaía era a franqueza, a mordacidade de algumas das suas afirmações. A naturalidade com que ela dizia a verdade. Isso é uma coisa que hoje em dia não é muito frequente. Temos aquela preocupação em sermos politicamente corretos. Se havia alguém que não tinha nada de politicamente correto era Paula Rego, porque afirmava sempre a sua personalidade, quer como mulher, quer como ser humano, quer como artista”, descreveu. “Não havia cedências da parte dela. Quando gostava das pessoas manifestava-o, quando não gostava também o manifestava”, acrescenta Menezes.
Já Rui Brito, que dirige a Galeria 111, lembrou a forte ligação que a artista mantinha com a sua galeria, onde fez a sua primeira exposição individual em 78. “Ao longo destes anos mantivemos sempre contacto. Não só contacto comercial, como pessoal. Tínhamos uma grande relação de amizade com a Paula… Inicialmente com os meus pais e depois comigo, que cresci sempre muito próximo dela. Sempre fomos a representação dela em Portugal, mas tínhamos laços pessoais muito estreitos”, contou ao i. “Ela era irreverente, desconcertante. Era uma pessoa que se interessava muito por aquilo que a rodeava, pelos temas que preocupavam a sociedade. Ao mesmo tempo, interessava-se por obras literárias que gostava de ler e interpretar à sua maneira. Expressava-se de forma muito genuína e gostava de fazer justiça. Foi sempre uma pessoa muito solta, muito pertinente, muito sensível”, complementa.
Na sua página de Facebook, Joana Gomes Cardoso, presidente do Conselho de Administração da EGEAC, Empresa de Gestão de Equipamentos e Animação Cultural de Lisboa, recordou um momento em que Paula Rego mostrou precisamente essa irreverência: “Há uns anos houve uma cerimónia de entrega da medalha da cidade a Paula Rego, no Museu Bordalo Pinheiro. À saída, o seu director, João Alpuim Botelho, pediu-lhe que assinasse o livro do Museu. Paula Rego, já algo frágil e cansada, começou a desenhar algo com um traço impecável, de uma vez só. O João perguntou-lhe: ‘É um macaco?”. E ela devolveu (com o sorriso mais maroto do mundo): “Não! É um sapo a brincar com a pila!”. Não sei o que foi melhor, o seu contentamento ou a cara de surpresa dos altos dignitários presentes. Paula Rego foi e é simplesmente genial e quem não viu, tem de ver, o documentário que o seu filho fez. What a woman, what a life”, escreveu.