1. A guerra da Ucrânia está a criar, para além das vítimas diretas entre mortos, feridos e refugiados, uma penúria alimentar mundial, ao pé da qual a inflação de que nos queixamos não é nada. Milhões de pessoas em todo o mundo estão a ficar sem alimentos, porque o celeiro russo e ucraniano não consegue exportar os seus cereais. O futuro da produção é totalmente incerto porque a guerra impede certamente o seu cultivo em algumas zonas. É mais uma prova de que a globalização só é virtuosa se houver paz duradoura. Quando não há, as economias ficam fragilizadas com tantas interdependências. A grande vaga de fome vai aumentar ainda mais o número de desesperados que tentam fugir para a Europa, sobretudo por razões económicas, mas também religiosas e políticas. São filhos da pobreza, das guerras e do aquecimento global. Todos os verões temos assistido a tentativas suicidárias de fuga rumo à Europa, que não tem obviamente capacidade (nem vontade) de acolher todos os que a demandam. Há atualmente uma nova realidade que agrava as circunstâncias dos que fogem do Oriente ou do Sahel: o apoio prioritário dado aos ucranianos. Das regiões não europeias vêm a caminho muitos milhares que se vão juntar aos milhões que vivem na miséria em supostos centros de acolhimento, designadamente na Turquia, que deles se serve também para receber dinheiro, chantagear a União Europeia e possivelmente agora a NATO. Os próximos meses de verão serão propícios a tentativas de travessia do Mediterrâneo que vão arrastar para a morte crianças, mulheres e homens. Nada vai melhorar. Pelo contrário. Em simultâneo, vão aumentar as tensões internas entre os que pensam que a Europa e o Ocidente têm a estrita obrigação de acolher todos os migrantes e os que entendem que os países e povos devem organizar as suas sociedades, criando formas de desenvolvimento a partir de entendimentos políticos de coexistência e tolerância. Há pontos de verdade nos dois campos, mas, nesta altura, há realmente é que preparar o acolhimento digno da maior vaga de sempre de migrantes famintos, transportados por redes sem escrúpulos que ganham milhões e que ninguém quer mesmo desmantelar.
2. Com um artigo no Observador e uma entrevista à CNN, Cavaco Silva interveio com estrondo na política nacional, como o faz regularmente. Desta vez teve dois alvos. O primeiro foi António Costa que desafiou a usar tão bem como ele próprio a maioria absoluta, a fim de deixar obra. O segundo foi Montenegro, o líder eleito do PSD, ao qual apontou caminhos de pragmatismo, não se deixando enredar em querelas ideológicas. Pelo caminho, deixou de rastos o mandato de Rio e dos seus acólitos. Cavaco Silva é assim. Volta e meia intervém para manifestar preocupação com os destinos do país, o que deixa os protagonistas do momento à beira de um ataque de nervos. Há quem pense que é para preservar o seu lugar na história, ignorando certamente que o dele, como os de Soares e Eanes, já lá está. Mesmo quem não o aprecie pessoalmente, reconhece a Cavaco as profundas mudanças sem paralelo que os seus governos operaram na sociedade portuguesa. Curiosamente, ou talvez não, na entrevista não lhe foi feita qualquer pergunta sobre o seu sucessor, Marcelo Rebelo de Sousa. Face à qualidade reconhecida de Maria João Avilez, é legitimo pensar que a omissão foi propositada. De outro modo não faz sentido… O tempo de Cavaco falar de Marcelo, pelos vistos, ainda não chegou. E vice-versa.
3. Pode arrastar-se penosamente a investigação da comissão independente aos abusos sexuais cometidos na igreja portuguesa. Durante anos, nada se fez e o tema era tabu, ao contrário do que sucedia em muitos países. Finalmente constituiu-se uma comissão independente, junto da qual já mais de três centenas de vítimas apresentaram casos concretos, independentemente do tempo passado. Depois de terem aceitado a contragosto a ideia, houve bispos que resistiram a falar com a comissão, alegando grandes afazeres, situação que depois de denunciada foi corrigida. Mais recentemente, o Núncio Apostólico em Lisboa (um chileno alegadamente envolvido na ocultação de um caso no seu país) veio dizer que o acesso aos arquivos da Igreja portuguesa estaria dependente da lei canónica e que, portanto, havia que perguntar ao Vaticano se era possível consultar os documentos. Já depois disso, a questão foi elevada (pelo próprio patriarca de Lisboa) ao patamar da lei sobre o acesso a dados pessoais. Pelo que se vê, levantam-se, de mansinho, entraves à investigação. É essencial saber a dimensão dos abusos. As opiniões publicas e publicadas dos países democráticos têm pressionado para que se saiba o que realmente aconteceu noutros tempos, uma vez que hoje os casos que ocorrem são em geral denunciados de imediato. Sabe-se que há inúmeros destes crimes passados que estão prescritos, mas, dada a especificidade da entidade envolvida e a sua influência, é um tema que, uma vez iniciado um processo de investigação, não deve ser travado com argumentos falaciosos. A estratégia de resistência passiva de certa Igreja coloca ainda mais dúvidas a quem foi vítima de abuso em expor o seu caso, depois de dezenas de anos de silêncio. A comissão independente deveria ter o seu relatório feito antes do fim do ano, mas é já óbvio que não vai conseguir. O tema deve, portanto, arrastar-se. Mas desiludam-se os que pensam que é possível deixá-lo adormecer, quanto mais não seja porque certas franjas mais ativas da sociedade política e a imprensa estão vigilantes. A estratégia de empatar pode ser uma bomba ao retardador. Quanto mais depressa houver um relatório sobre os factos, melhor. Arrastar conclusões pode criar um escândalo de dimensão inesperada. Basta imaginar o que seria a imprensa internacional pegar no tema por altura das jornadas da juventude de 2023 quando o Santo Padre vier a Lisboa. Talvez seja de evitar uma tal humilhação ao nosso país e à nossa Igreja, uma trave essencial de suporte espiritual e social da nossa tão carente sociedade.
4. Académico, jornalista e político fundador do PS, Mário Mesquita deixou-nos recentemente. Era vice-presidente da Entidade Reguladora da Comunicação Social. Marcelo Rebelo de Sousa condecorou-o a título póstumo com a Ordem da Liberdade. Foi uma homenagem mais do que merecida, mas estranhamente tardia. Como é possível que uma figura com a intervenção cívica de Mesquita tenha sido esquecida em vida? E como é possível também que tenha havido tantas outras que receberam essa distinção sem terem dado especiais contributos para a liberdade, antes e depois do 25 de Abril, minimamente comparáveis com os de Mário Mesquita? Estranhos critérios que, embora a título póstumo e apenas no seu segundo mandato, o Presidente Marcelo retificou. Fez bem.
Escreve à quarta-feira