Dos consumos energéticos e de água aos transportes para fornecimentos. Resíduos hospitalares e o ciclo de vida de medicamentos. Equipamento de proteção: luvas, batas cirúrgicas (para não falar, nos últimos anos, das máscaras). Material clínico, incluindo o que é usado uma única vez: recipientes, cateteres, máquinas de suturar. Gases anestésicos, que contribuem para gases com efeitos de estufa.
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Se fossem um país, os cuidados de saúde a nível mundial seriam o quinto poluidor, concluiu uma análise publicada em 2019 pela ONG Health Care Without Harm em parceria com a consultora Arpus. Em 2014, o setor global de cuidados de saúde, pesando toda a sua atividade e matéria-prima, terá tido uma pegada ambiental de 2 gigatoneladas de CO2, o equivalente a 4,4% das emissões globais – ou 514 centrais a carvão, diziam. Portugal? Aparece ligeiramente acima da média da União Europeia, com os cuidados de saúde a representarem 4,8% das emissões nacionais. Nem tudo pode ser reduzido, mas é possível ser muito mais eficiente e o país está atrasado. Melhor dizendo, “na pré-história” em medidas concretas para atacar este problema, com um enquadramento legal que não contribui para a mudança.
A denúncia é feita por João Queiroz e Melo, pioneiro da transplantação cardíaca em Portugal – liderou a equipa que fez o primeiro transplante de coração no país em 1986. O cirurgião cardiotorácico, que dirigiu a transplantação no Hospital de Santa Cruz, reformou-se aos 65 anos, há 12 anos, e desde então dedica-se à causa ambiental.
Na viragem da última década, começou a promover o reprocessamento de dispositivos médicos de uso único, mas ao longo dos anos as preocupações somaram-se noutras frentes e um dos projetos que tem agora em mãos passa por reaproveitar têxteis que entram nos blocos operatórios a embrulhar caixas de material para fabricar outros produtos e vestuário. Numa conferência recente na Universidade Nova de Lisboa, mostrou uma gravata feita do tecido sintético azul, que nunca está em contacto com os doentes, mas que acaba por ter de ser incinerado – de acordo com um despacho de 1996, todos os resíduos hospitalares provenientes de blocos operatórios são considerados do grupo III – resíduos hospitalares de risco biológico. “É um perfeito disparate”, diz.
A ideia, apresentou, é em parceria com a Entreajuda, no projeto Second Chance, aproveitar estes têxteis para fazer resguardos ou revestimento por exemplo de sacos cama que possam ser usados em intervenção social, à luz do que começa a ser feito noutros países. “O problema é que temos um despacho que os hospitais praticamente não cumprem porque é anacrónico, mas quando se quer fazer algo diferente para combater o desperdício esbarramos na legislação. Nos Estados Unidos, cadeias como a Macy’s já vendem inclusive roupa feita com este têxtil e são toneladas que são desperdiçadas. Só no meu bloco no Hospital de Santa Cruz, gastávamos 2 mil unidades por ano”, exemplifica ao i.
Reprocessamento parado
O reprocessamento de dispositivos médicos de uso único é no entanto uma das áreas em que acredita que o país deveria ser mais firme, estimando que só aí o Serviço Nacional de Saúde poderia poupar 60 milhões de euros por ano. “Está tudo parado há um ano”, lamenta.
Em causa, a entrada em vigor no Regulamento Europeu dos Dispositivos Médicos, em maio de 2021, que levou o Infarmed a dar orientações que travaram projetos que estavam já em curso ao abrigo de legislação de 2013. O Hospital de São João, no Porto, pioneiro na reutilização de dispositivos de uso único, confirmou ao i que parou esta atividade, havendo intenções de a retomar. Falta o enquadramento.
João Queiroz e Melo recorda que apesar de terem sido anos de poucos avanços, os resultados do São João mostravam o potencial impacto: um estudo feito apenas com a reutilização de dois dispositivos, uma tesoura e uma máquina de suturar, devidamente esterilizados e recondicionados, permitia uma redução dos custos em 50%, segundo um artigo publicado em 2019 no Portuguese Journal of Public Health.
O cirurgião, que foi co-autor desse trabalho junto com profissionais do São João, salienta que, em cinco anos, só no reprocessamento de um único dispositivo, a tesoura, até então usada apenas uma vez e deitada fora, o hospital poupou 500 mil euros. “Uma análise feita em 13 países concluiu que, só em 2020, foram utilizados 32 milhões de dispositivos remanufaturados em 10 mil hospitais, nos quais incluo os melhores hospitais dos EUA e 28 hospitais universitários alemães. Em Portugal está tudo parado. Assim nunca deixaremos de ser um país pobre”.
O i procurou um esclarecimento em que ponto se encontra o enquadramento da reutilização de dispositivos médicos de uso único em Portugal, não tendo obtido resposta do Ministério da Saúde ou do Infarmed.
Há áreas em que tem havido alguns avanços, nomeadamente projetos para maior eficiência energética, financiados pelo Programa Operacional Sustentabilidade e Eficiência no Uso de Recursos (POSEUR). Como o SOL noticiou, houve 27 projetos de hospitais do SNS financiados no valor de 90 milhões de euros, entre os quais projetos de monta no Hospital de Santa Maria e no Amadora-Sintra, que em abril passaram a ter painéis fotovoltaicos a funcionar no perímetro hospitalar, entre outras mudanças estruturais que estimam que poderão diminuir em 30% os consumos energéticos das unidades. Mas também aí o caminho é longo: segundo o último ranking de eficiência dos hospitais publicado pela Administração Central do Sistema de Saúde, referente a 2020, se todos atingissem o mesmo patamar seria possível obter uma poupança de 6,1 milhões de euros em eletricidade – valores calculados ainda antes da escalada nos preços da energia – e 2,1 milhões de euros na fatura da água. Seria uma redução de 85.432.460 kWh, quatro vezes o consumo do hospital de Santa Maria. Para Queiroz e Melo, com um sistema mais eficiente e mudanças também nos comportamentos, seria possível reduzir a pegada ecológica dos hospitais em 30%.