Espanha-Portugal. Os gloriosos triunfos que foram pia abaixo (I)

Espanha-Portugal. Os gloriosos triunfos que foram pia abaixo (I)


Foi em Vigo (2-1) a primeira vitória portuguesa, após dez derrotas e um empate. Uma vitória que não valeu – a Espanha, segundo a FIFA, não era a Espanha.


Estávamos fartos de apanhar. Ao fim de onze jogos frente à Espanha, contávamos com dez derrotas e um empate. Ora, tubérculos! Já começava a ser demasiado apepinante. É então que chega o dia 28 de Novembro de 1937. Há mais de um ano que a Seleção Nacional estava parada. E há um ano que Vigo e a Galiza estavam completamente submetidos à nova ordem, tendo Francisco Franco reclamado a chefia do governo tornando-se no Generalíssimo dos Exércitos.

Convenhamos: era agora ou nunca! A Fúria estava enfraquecida; o campeonato espanhol esteve interrompido nas duas últimas épocas; alguns dos selecionados eram militares que vieram diretamente das linhas da frente, a equipa estava naturalmente desfalcada de muitos dos seus melhores jogadores.  Atrás da tribuna central dos Balaídos foram colocados dois enormes panos com os perfis de Salazar e Franco. Enquanto se executam os hinos, a multidão mantém-se de pé e de braço estendido na tradicional saudação fascista. Os legionários portugueses gritam três vezes: “Salazar! Salazar! Salazar!/Franco! Franco! Franco!/Portugal! Portugal! Portugal!/Espanha! Espanha! Espanha!/Viva Portugal! Viva Espanha!”

Nuestros hermanos era mais hermanos do que nunca.

Aos golos de Pinga e Valadas respondeu Gallart fixando o resultado em 2-1 para Portugal. Compreensivelmente, a vitória foi vivida com euforia. Era a primeira frente à Espanha e punha fim a uma frustração de dezasseis anos. E dificilmente outra derrota seria tão bem aceite pelos espanhóis. Afinal, eram muitos poucos os países que se dispunham a jogar contra eles. Ou parte deles. Da Catalunha ou do País Basco não vinham jogadores para representar a Fúria.

N’ O Pueblo Gallego, um cronista tentava colocar o dedo na ferida: “(…)Enquanto os nossos homens – se não todos, pelo menos a maioria – se batiam nas trincheiras contra o marxismo, espingarda na mão e muito longe de qualquer preparação desportiva, os portugueses cuidavam da sua forma e da sua classe. (…) Não pretendemos com isto deslustrar o triunfo alcançado por Portugal, muito justo e muito justo, porque, conforme já dissemos, sobre o terreno mostraram-se superiores em tudo: em forma, em classe, e sobretudo em entendimento entre as diferentes linhas da equipa”.

A intervenção! Foram muitos os elogios publicados na imprensa espanhola, sobretudo castelhana. Nenhum deles terá sido feito sem escapar a uma sensação de gratidão. Porque Portugal era a única seleção que se prestava a defrontar uma Espanha em guerra e cuja equipa nacional não era reconhecida pela FIFA. Num país dividido, com duas federações a reclamarem o direito de se considerarem as responsáveis pela representação nacional, o conjunto que defrontara Portugal limitava-se a ser o… conjunto nacionalista.

Tal como sucedeu em 1938, quando os espanhóis vieram a Lisboa. Por isso, a FIFA nunca reconheceu estes dois encontros. O que para os franquistas pouco importava. A propaganda ia sendo feita com a conivência dos amigos portugueses. Dir-se-ia, mais tarde, numa tentativa de explicação para a aceitação destes jogos, que Portugal estava, pela sua situação geográfica, demasiado dependente do calendário espanhol. Não deixava de ser verdade. E em 1941 quando a Espanha, já refeita da guerra, reiniciou as suas disputas internacionais, fomos os primeiros a recebê-la de braços abertos.

No dia 5 de Maio de 1935, em Lisboa, tínhamos cometido a proeza de, pela primeira vez, não sermos derrotados pelos espanhóis, empatando a três golos numa partida entusiasmante. A Guerra Civil espanhola ainda não entrara na sua fase mais sangrenta, assumimos esse empate como uma evolução natural do futebol lusitano que já fora capaz de derrotar adversários com o peso da França, da Bélgica, da Jugoslávia ou da Hungria. Por cá, ignorou-se olimpicamente que a Espanha não era verdadeiramente a Espanha. A vitória era nossa e ninguém iria pô-la em causa, que se lixasse a FIFA e as suas deliberações políticas.

Durante anos e anos a fio, as duas vitórias consecutivas face aos espanhóis estiveram inscritas a letras de ouro na lista dos grandes resultados de Portugal. A Espanha já confirmara ter aceitado o convite para visitar Lisboa no ano seguinte. Olhávamos para ela olhos nos olhos, como jamais até então. E nova vitória seria algo de verdadeiramente extraordinário.

(continua na edição de amanhã)