A Espanha, sempre a Espanha. A Espanha era uma espinha. Uma espinha gigante de um peixe espadaúdo, um atum ou um espadarte, se não mesmo um cachalote (mesmo que este não seja peixe), entalada na garganta dos portugueses. Dia 17 de março de 1929 estava marcada uma digressão a Sevilha. Jogo particular, claro, ainda não era tempo de grandes jogos oficiais, os únicos que tínhamos no registo eram os do ano anterior, no Torneio de Futebol dos Jogos Olímpicos de Amesterdão. Sevilha, tal e qual como depois de amanhã, a contar para a fase eliminatória da Liga das Nações.
Até aí, tínhamos defrontado a Fúria espanhola por seis vezes: seis derrotas. Aceitemos com bonomia e sentido positivo que tinham sido seis derrotas com uma certa dose de luta dada pel nossos jogadores. Os resultados eram maus, mas não envergonhantes: 1-3, 1-2, 0-3, 0-2, 0-2 e 0-2. Havia a esperança de que os selecionados de Cândido de Oliveira, que tão bem tinham dado conta de si em Amesterdão, entusiasmando como nunca até então os adeptos portugueses em redor da sua representação nacional, pudesse ir a Sevilha fazer aquilo que até aí nunca fora feito: bater a Espanha. O próprio treinador e os jogadores revelaram-no com toda a franqueza à imprensa. Cedo demais.
No final do encontro, após a goleada por 0-5, tinham sido os responsáveis técnicos pela Fúria a questionar os jornalistas portugueses: “Que falta de reacção incompreensível a da vossa equipa. Que desgraça inicial. Afinal o que se passou?”
Ora, parece que ninguém tinha respostas para a cabazada. Nunca a diferença entre ambas as seleções fora tão acentuada, tão abracadabrante para as cores lusitanas. De cabeça baixa, um dos nossos jogadores, desabafava: “Foi a fome ligada à miséria!” E Cândido de Oliveira, sempre tranquilo, procurando não ir ao fundo no meio do naufrágio: “Perdemos porque somos, de facto, inferiores. A nossa equipa jogou francamente mal. Os dianteiros espanhóis afirmaram-se estupendos! Como são profissionais e o futebol é o seu negócio, explica-se que sejam superiores”.
Padrón marcara dois golos (aos 30 e 45 minutos) e Rubio três (2, 9 e 20). Roquete, o guarda-redes nacional, fora um buraco completo, atrapalhando-se a torto e a direito com os defesas Martinho de Oliveira, Tamanqueiro e Carlos Alves. Zamora, o grandíssimo Zamora, keeper de renome mundial, tentava ser simpático: “Sinceramente acho que estes 5-0 não são a imagem nem do valor dos portugueses nem daquilo que hoje jogaram aqui”.
A festa! Como acontecera anteriormente até então, o Espanha-Portugal foi encarado como uma festa. O Estádio de La Exposición (agora Benito Villamarín, onde se desenrolará o desafio de quinta-feira) estava bonito, engalanado, de relvado fresco, rodeado por uma pista de atletismo de areia bem amarela, tipicamente sevilhana, como se encontra na Praça de Touros de La Maestranza. Bancadas altas, elegantes, cabeceiras bem alinhadas com filas tríplices. Enfim: um exemplo de modernidade!
Cá fora, gente aos borbotões. Filas infinitas de automóveis, de autocarros e de caleches. O público da cidade não queria perder o jogo de maneira nenhuma. Duas enormes flâmulas, de doze metros cada uma, dominavam os olhares que se estendiam pela planície: a de Portugal à direita; a de Espanha à esquerda.
Apitos, mantilhas, gritos de vendedores ambulantes que ofereciam bocadillos. “Nunca se viu uma coisa assim em Sevilha!”, exclamava admirado um espetador orgulhoso da sua terra.
Os golos da Espanha surgem de supetão. Entre os festejos sevilhanos, há quem se desilude: “Mas que diabo, coño! O guarda-meta português não tem culpa. Os companheiros deixam-no sozinho”.
Bosch, o formidável jogador da Catalunha, ensaia os seus pontapés explosivos, mas não está em tarde feliz. O massacre torna-se inevitável. Perdidos em campo, os portugueses são presa fácil de uma Espanha incomparavelmente melhor. Até Pepe, José Manuel Soares, o Cometa Azul de Belém, se mostra desastrado e desperdiça um penalti chutando muito por alto, sobre a barra de Zamora.
No segundo tempo, a partir da meia-hora, os espanhóis abrandam o ritmo. Não pretendem humilhar o seu adversário. O público, habituado a ver a morte do touro na arena, não gosta do indulto. Sai de campo antes do jogo acabar, soltando assobios dispersos…