Uvalde. Como o horror dos massacres virou rotina nos Estados Unidos

Uvalde. Como o horror dos massacres virou rotina nos Estados Unidos


Mais uma vez, familiares de vítimas lamentaram que armas de guerra sejam tão facilmente acessíveis nos EUA. Até o Presidente se mostra impotente para mudar isso. Como sempre, as ações de fabricantes de armamento subiram com o massacre. As suas vendas cresceram e as mortes com armas de fogo também, com mais de 17 mil vidas perdidas só…


Mais uma vez, o mundo assistiu a crianças mortas num tiroteio em escolas dos Estados Unidos, com uma certa dormência, como se tratasse de algo tão expectável e inevitável com uma catástrofe natural. Há lugares mais violentos que os EUA (ver páginas 12 a 17), mas tragédias como a de Uvalde, no Texas, esta segunda-feira, demarcam-se por seguirem um roteiro tão bem estabelecido.

“Estou furiosa por estes tiroteios continuarem, estas crianças são inocentes. Espingardas não deveriam ser facilmente acessíveis a todos”, lamentou Lydia Martinez Delgado, tia de Eva Mireles, uma professora da quarta classe massacrada por um estudante solitário, que no dia do seu 18.º aniversário comprou munições e duas AR-15, que já se tornou uma arma de culto entre jovens aspirantes a assassinos de massas. Delgado conversou com a KSAT, um canal local parceiro da CNN, na sua pequena cidade de Uvalde, com uma população de pouco mais de 15 mil pessoas. No entanto, o que disse ecoava no que foi dito à porta da escola de Sandy Hook, na secundária de Parkland ou em Columbine, após tiroteios semelhantes.

 O massacre de Uvalde tem a particularidade da escala, que o coloca como o segundo mais mortífero nos EUA, até agora, com 21 vítimas, e da escolha de alvos, particularmente cruel, atingindo uma escola primária. Mas a sensação de impotência é a mesma. Como se o facto dos EUA serem o país como mais armas de fogo nas mãos de civis per capita do planeta, mais do dobro da segunda posição onde está colocado o Iémen, fosse inevitável. “Tudo o que podemos é rezar muito pelo nosso país, estado, escolas, e especialmente pelas famílias de todos”, continuou a tia da professora primária assassinada.

O próprio Presidente dos EUA concorda com Delgado. Mas até Biden se mostrou impotente. “Estes tipos de tiroteios em massa não acontecem noutros países com a frequência que acontecem nos Estados Unidos. Porquê? Por que estamos dispostos a viver com essa carnificina?”, questionou o Presidente, reagindo à tragédia de Uvalde. Parece uma pergunta retórica, dado que, se há alguém posicionado para conseguir a mudança, seria quem se senta na Sala Oval. “Como nação, temos que perguntar: Quando, em nome de Deus, vamos enfrentar o ‘lobby’ das armas?”, continuou Biden. “Onde está a nossa espinha dorsal para ter coragem de lidar e enfrentar os lobistas?”.

Entretanto, os números da violência com armas de fogo nos EUA tornaram-se aterradores. Enquanto a produção doméstica anual de armas subia de 3,9 milhões no ano de 2000 para 11,3 milhões em 2020, segundo a Agência de Álcool, Tabaco, Armas de Fogo e Explosivos (ATF, na sigla inglesa), a epidemia das mortes com armas de fogo crescia, com mais de 45 mil vidas perdidas em 2020, a mais alta taxa desde há 25 anos, segundo dados do Centro de Controlo e Prevenção de Doenças. E só este ano já houve mais de 17 mil mortes causadas por armas de fogo.

Já entre a indústria do armamento, os seus representantes e fãs, é bem sabido que sempre que há um destes tiroteios em escolas têm de puxar dos argumentos do costume. “Inevitavelmente, quando há homicídios deste tipo, vês políticos a tentar politizá-lo”, queixou-se o senador republicano Ted Cruz, em conferência de imprensa, pedindo que os americanos se limitassem aos habituais “pensamentos e orações” pelas vítimas.

Também se culpou a influência de videojogos violentos, chegando até a pedir-se que houvesse mais gente armada nas ruas. Outras ideias eram novas, como a de que os pais, “em vez de comprarem todos estes brinquedos e jogos”, propôs uma comentadora da Fox News, optassem por adquirir “mantas à prova de bala, coloridas e bonitas” para pendurar na parede, ou equipassem salas de aula com vidros fumados. Uma das mais populares apresentadora do canal, Jeanine Pirro, chegou a sugerir em horário nobre que o atirador de Uvalde – um latino nascido no Dakota do Norte – estaria a fugir de uma patrulha fronteiriça, apontando o dedo às políticas de migração dos democratas.

É uma maneira de lidar com o aperto no peito que sentem tantos americanos, quando veem as notícias de mais um tiroteio em escolas. Já para a industria de armamento, apesar de terem o trabalho de enviar representantes à televisão, são sempre momentos lucrativos. Estudos indicam que, nos meses após a tiroteios em escolas, as vendas de armamento aumentam, algo correlacionado com os receios dos consumidores – há mais armas de fogo que habitantes nos EUA, apenas 32% dos americanos possuem alguma, segundo o Pew Research Center, estando metade do total das armas nas mãos de 3% da população, indicou um estudo das universidades de Harvard e Northeastern, de 2016 – de que as regras sejam apertadas. E não espanta que, logo no dia seguinte ao massacre de Uvalde, o preço das ações de fabricantes de armas tenha dado um salto, contando com isso. A Smith & Wesson valorizaram quase 10% na hora seguinte à bolsa abrir, avançou a Fortune, sendo que a Sturm Ruger subiu uns 4% e a Vista Outdoor uns 8%.

Entretanto, o drama dos sucessivos massacres nos Estados Unidos continua sem solução à vista. “Suponho que é algo que a sociedade sabe que vai acontecer outra vez, uma e outra vez”, lamentou Neil Heslin, ao New York Times. Ainda sofrendo todos os dias com a perda do seu filho de seis anos, Jesse Lewis, no massacre de Sandy Hook, há uma década.