A guerra atual e a justiça na Europa: aviso à navegação


A confusão de competências e o exagero mediático em torno da ação de algumas estruturas multinacionais de apoio à cooperação judiciária que, sobretudo, devem ser vistas como sóbrias, recatadas, eficientes e objetivas não devem, em caso algum, ser acalentados.


Uma das preocupações que, em geral, aflige os magistrados dos países e instituições europeias que se regem pelas regras do estado de direito é a de a sua ação poder, por qualquer motivo, ser vista como definida ou influenciada por determinações políticas concretas e estranhas aos exclusivos desígnios da Justiça.

Essa inquietação parece nem sempre ser bem compreendida por quem tem de governar países, blocos de países e o mundo, pois, em muitos casos, encaram a Justiça apenas como mais um instrumento de que dispõem para prosseguir os seus objetivos políticos.

Ultimamente, porém, alguns tribunais europeus como Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (TEDH) e o Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) têm vindo a reforçar – e bem – as exigências de que se mantenham estanques a ação da justiça e a vontade e iniciativas do poder político para as influenciar.

A sua jurisprudência aborda, inclusivamente, a prática judiciária de países europeus com democracias antigas e que sempre foram considerados como exemplares, no que refere às regras essenciais do estado de direito, mas que continuam, apesar da fama, a manter e a reivindicar um direito de intervenção mais ou menos alargado nas iniciativas judiciais.  

É assim que, no plano formal, vem sendo exigido por tais tribunais europeus que, tanto os juízes, como os magistrados do Ministério Público e os seus órgãos de gestão assegurem uma organização tal que acautele uma distância cada vez mais real e visível, relativamente a orientações concretas que governos nacionais e europeus entendem fazer valer sobre as suas iniciativas e decisões.

É o que, sem margem para dúvidas e de forma ímpar, acontece, hoje, por exemplo, em Portugal.

Claro que, como contraponto, vemos, também, como, nos EUA, a escolha de determinados juízes para integrarem o Supremo Tribunal Federal obedece, ainda hoje, sem reservas nem disfarces, às agendas de circunstanciais maiorias políticas, permitindo-lhes, desse modo, intervir, enviesadamente, em questões político-sociais, com incidência significativa no modo de vida dos cidadãos.

As fronteiras entre as iniciativas judiciais e as iniciativas políticas são, ainda, na realidade, em muitas partes do mundo, mais ténues do que julgamos crer.

A tentação do uso da Justiça como instrumento político sempre existiu, e sempre os diferentes regimes e instituições políticas a quiseram usar para a execução dos seus fins reais ou declarados: todos nos lembramos, pelo menos desde a inquisição, de julgamentos espetáculo em diferentes momentos da história ocidental da humanidade.

Uma coisa é, porém, a intervenção que, no respeito das normas constitucionais, sobre a Justiça se faz através dos mecanismos de nomeação de juízes, procuradores-gerais, leis de política criminal ou – como ainda acontece em alguns países europeus – por via da emissão de simples diretivas governamentais de caráter genérico ou concreto e que visam, muito especificamente, determinados casos socialmente mais sensíveis.

Outra, bem diferente, é a vontade desajeitada e espalhafatosa de criar confusão pública entre as responsabilidades de agentes políticos e as das estruturas judiciais, para efeitos de mera propaganda política e, por vezes, de pura promoção pessoal.

Quando tal confusão acontece, corre-se, por falta de sensatez, o risco de descredibilizar as instituições judiciais ou aquelas que com elas trabalham e as servem.

Se isso suceder num momento grave, como o que se verifica com a guerra entre a Rússia e a Ucrânia, os riscos redobram: e isso é grave, porque nenhum outro crime merece ser investigado e julgado com mais correção do que os que, porventura, ocorreram nesse cenário.

A Justiça não deve, neste caso, deixar de ser vista, acima de tudo, como um instrumento isento e, por isso, essencial à pacificação das partes envolvidas, e nunca como mais uma arma de guerra ao dispor de cada uma delas.

Para se sustentarem as razões de uma intervenção judicial alargada, mas criteriosa, sobre crimes realmente cometidos, haverá, pois, pelo menos, de acautelar-se o rigor dos princípios e o comedimento das exibições públicas e mediáticas dos responsáveis políticos e judiciais envolvidos.

A confusão de competências e protagonismos mediáticos em torno das investigações internacionais e da ação de estruturas de apoio à cooperação judiciária multinacionais que, sobretudo, devem, dada, precisamente, a sua natureza judiciária, ser vistas como recatadas, eficientes e objetivas não podem, assim, em caso algum, ser acalentados.

A discrição é, e deverá ser sempre, apanágio de uma Justiça serena e objetiva, seja ela internacional, europeia ou nacional.

Também no que se refere à Justiça, o que parece é.

As estruturas e os responsáveis que, portanto, aligeirarem tal comportamento de sobriedade, além de arriscarem a perda da sua força moral, comprometem também, porventura, o sucesso das ações judiciais que ajudaram a desenvolver: arriscam a realização da Justiça nos tribunais.

Convém não esquecer que, nos mais elevados tribunais internacionais e europeus, como nos mais recônditos tribunais nacionais, há juízes que se não compadecem com truques fáceis, os quais apenas servem, não para apurar a verdade e fazer Justiça, mas para promover, noutros palcos, os que delas se querem servir.  

  

 

 

 

A guerra atual e a justiça na Europa: aviso à navegação


A confusão de competências e o exagero mediático em torno da ação de algumas estruturas multinacionais de apoio à cooperação judiciária que, sobretudo, devem ser vistas como sóbrias, recatadas, eficientes e objetivas não devem, em caso algum, ser acalentados.


Uma das preocupações que, em geral, aflige os magistrados dos países e instituições europeias que se regem pelas regras do estado de direito é a de a sua ação poder, por qualquer motivo, ser vista como definida ou influenciada por determinações políticas concretas e estranhas aos exclusivos desígnios da Justiça.

Essa inquietação parece nem sempre ser bem compreendida por quem tem de governar países, blocos de países e o mundo, pois, em muitos casos, encaram a Justiça apenas como mais um instrumento de que dispõem para prosseguir os seus objetivos políticos.

Ultimamente, porém, alguns tribunais europeus como Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (TEDH) e o Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) têm vindo a reforçar – e bem – as exigências de que se mantenham estanques a ação da justiça e a vontade e iniciativas do poder político para as influenciar.

A sua jurisprudência aborda, inclusivamente, a prática judiciária de países europeus com democracias antigas e que sempre foram considerados como exemplares, no que refere às regras essenciais do estado de direito, mas que continuam, apesar da fama, a manter e a reivindicar um direito de intervenção mais ou menos alargado nas iniciativas judiciais.  

É assim que, no plano formal, vem sendo exigido por tais tribunais europeus que, tanto os juízes, como os magistrados do Ministério Público e os seus órgãos de gestão assegurem uma organização tal que acautele uma distância cada vez mais real e visível, relativamente a orientações concretas que governos nacionais e europeus entendem fazer valer sobre as suas iniciativas e decisões.

É o que, sem margem para dúvidas e de forma ímpar, acontece, hoje, por exemplo, em Portugal.

Claro que, como contraponto, vemos, também, como, nos EUA, a escolha de determinados juízes para integrarem o Supremo Tribunal Federal obedece, ainda hoje, sem reservas nem disfarces, às agendas de circunstanciais maiorias políticas, permitindo-lhes, desse modo, intervir, enviesadamente, em questões político-sociais, com incidência significativa no modo de vida dos cidadãos.

As fronteiras entre as iniciativas judiciais e as iniciativas políticas são, ainda, na realidade, em muitas partes do mundo, mais ténues do que julgamos crer.

A tentação do uso da Justiça como instrumento político sempre existiu, e sempre os diferentes regimes e instituições políticas a quiseram usar para a execução dos seus fins reais ou declarados: todos nos lembramos, pelo menos desde a inquisição, de julgamentos espetáculo em diferentes momentos da história ocidental da humanidade.

Uma coisa é, porém, a intervenção que, no respeito das normas constitucionais, sobre a Justiça se faz através dos mecanismos de nomeação de juízes, procuradores-gerais, leis de política criminal ou – como ainda acontece em alguns países europeus – por via da emissão de simples diretivas governamentais de caráter genérico ou concreto e que visam, muito especificamente, determinados casos socialmente mais sensíveis.

Outra, bem diferente, é a vontade desajeitada e espalhafatosa de criar confusão pública entre as responsabilidades de agentes políticos e as das estruturas judiciais, para efeitos de mera propaganda política e, por vezes, de pura promoção pessoal.

Quando tal confusão acontece, corre-se, por falta de sensatez, o risco de descredibilizar as instituições judiciais ou aquelas que com elas trabalham e as servem.

Se isso suceder num momento grave, como o que se verifica com a guerra entre a Rússia e a Ucrânia, os riscos redobram: e isso é grave, porque nenhum outro crime merece ser investigado e julgado com mais correção do que os que, porventura, ocorreram nesse cenário.

A Justiça não deve, neste caso, deixar de ser vista, acima de tudo, como um instrumento isento e, por isso, essencial à pacificação das partes envolvidas, e nunca como mais uma arma de guerra ao dispor de cada uma delas.

Para se sustentarem as razões de uma intervenção judicial alargada, mas criteriosa, sobre crimes realmente cometidos, haverá, pois, pelo menos, de acautelar-se o rigor dos princípios e o comedimento das exibições públicas e mediáticas dos responsáveis políticos e judiciais envolvidos.

A confusão de competências e protagonismos mediáticos em torno das investigações internacionais e da ação de estruturas de apoio à cooperação judiciária multinacionais que, sobretudo, devem, dada, precisamente, a sua natureza judiciária, ser vistas como recatadas, eficientes e objetivas não podem, assim, em caso algum, ser acalentados.

A discrição é, e deverá ser sempre, apanágio de uma Justiça serena e objetiva, seja ela internacional, europeia ou nacional.

Também no que se refere à Justiça, o que parece é.

As estruturas e os responsáveis que, portanto, aligeirarem tal comportamento de sobriedade, além de arriscarem a perda da sua força moral, comprometem também, porventura, o sucesso das ações judiciais que ajudaram a desenvolver: arriscam a realização da Justiça nos tribunais.

Convém não esquecer que, nos mais elevados tribunais internacionais e europeus, como nos mais recônditos tribunais nacionais, há juízes que se não compadecem com truques fáceis, os quais apenas servem, não para apurar a verdade e fazer Justiça, mas para promover, noutros palcos, os que delas se querem servir.