Roe v. Wade (II)


O ponto de vista empregue para a análise da (des)criminalização do aborto resulta da natureza e estrutura da matriz constitucional empregue como parâmetro de controlo do acto legislativo.


À luz da lei fundamental de Bona (inspiradora da CRP) o ponto de partida é o direito à vida, discutindo-se os contornos da vida intra-uterina (relevância do factor tempo para a determinação da viabilidade de um futuro indivíduo e limitação dos direitos antes do nascimento), a adequação do direito penal como instrumento para a solução da colisão de direitos (relevância do princípio da subsidariedade do direito penal) e a liberdade de conformação do legislador face à colisão de direitos, convidando a uma restrição dos poderes da justiça constitucional. Neste particular destaca-se a história da fiscalização da constitucionalidade por parte do Bundesverfassungsgericht das sucessivas normas em matéria de aborto,  partindo, em 1975, de uma visão maximalista do direito à vida em que exigiu a intervenção do Direito penal e evoluindo para uma tutela, em determinadas circunstâncias, procedimental (consultas médicas e de apoio social antes do aborto), admitindo a descriminalização. O percurso do Tribunal Constitucional português revela o conhecimento destes lugares paralelos, desde a fiscalização preventiva da primeira descriminalização do aborto (acórdão 25/84, relator Costa Aroso, tirado por maioria 8-5, considerando a vida intra-uterina “um valor jurídico não subjectivado” passível de sacrifício em determinadas circunstâncias, desde logo com o limite temporal das 12 semanas de gestação e para salvaguardar a saúde psíquica da mulher (não se contentando com a possibilidade de, em julgamento, valer alguma causa de exclusão da ilicitude ou da culpa); e acórdão 85/85, fiscalização sucessiva das mesmas normas, relator Vital Moreira, tirado por idêntica maioria, com maior ênfase na natureza subsidiária do direito penal e da sua menor adequação à tutela da vida intra-uterina) até à fiscalização preventiva obrigatória da pergunta do referendo que veio a permitir o aborto por decisão da mulher nas primeiras 10 semanas de gestação (acordão 288/98, tirado por maioria semelhante, relator Luís Nunes de Almeida, admitindo a conformidade constitucional de qualquer uma das respostas ao referendo: descriminalização ou criminalização).

Já nos EUA a matriz constitucional obriga a construir a colisão de direitos a partir dos “compelling state interests” daqueles Estados federados que criminalizam o aborto, colocando no outro prato da balança um direito da mulher (a “escolher” a partir da cláusula aberta da IX emenda ou do “substantive due process”, interpretando a XIV). Em 1973 o relator (Blackmun, republicano do Minnesota, nomeado – ironia da história – por Nixon em 1970) sintetizou a fórmula que transformou Roe v. Wade numa cause célèbre: “We, therefore, conclude that the right of personal privacy includes the abortion decision, but that this right is not unqualified and must be considered against state interests in regulation.” Na maioria destaca-se a declaração de voto de Douglas, mais ampla no elenco dos direitos que devem prevalecer: “First is the autonomous control over the development and expression of one’s intellect, interests, tastes and personality. Second is freedom of choice in the basic decisions of one’s life respecting marriage, divorce, procreation, contraception, and the education and upbringing of children. Third is the freedom to care for one’s health and person, freedom from bodily restraint or compulsion, freedom to walk stroll or loaf”. Prova da diversidade social e política dos Estados federados e, à época, de menor facciosismo, a “minoria” então vencida foi encabeçada por White, democrata do Colorado, nomeado por Kennedy em 1962. [continua]

Escreve à sexta-feira, sem adopção das regras do acordo ortográfico de 1990
 

Roe v. Wade (II)


O ponto de vista empregue para a análise da (des)criminalização do aborto resulta da natureza e estrutura da matriz constitucional empregue como parâmetro de controlo do acto legislativo.


À luz da lei fundamental de Bona (inspiradora da CRP) o ponto de partida é o direito à vida, discutindo-se os contornos da vida intra-uterina (relevância do factor tempo para a determinação da viabilidade de um futuro indivíduo e limitação dos direitos antes do nascimento), a adequação do direito penal como instrumento para a solução da colisão de direitos (relevância do princípio da subsidariedade do direito penal) e a liberdade de conformação do legislador face à colisão de direitos, convidando a uma restrição dos poderes da justiça constitucional. Neste particular destaca-se a história da fiscalização da constitucionalidade por parte do Bundesverfassungsgericht das sucessivas normas em matéria de aborto,  partindo, em 1975, de uma visão maximalista do direito à vida em que exigiu a intervenção do Direito penal e evoluindo para uma tutela, em determinadas circunstâncias, procedimental (consultas médicas e de apoio social antes do aborto), admitindo a descriminalização. O percurso do Tribunal Constitucional português revela o conhecimento destes lugares paralelos, desde a fiscalização preventiva da primeira descriminalização do aborto (acórdão 25/84, relator Costa Aroso, tirado por maioria 8-5, considerando a vida intra-uterina “um valor jurídico não subjectivado” passível de sacrifício em determinadas circunstâncias, desde logo com o limite temporal das 12 semanas de gestação e para salvaguardar a saúde psíquica da mulher (não se contentando com a possibilidade de, em julgamento, valer alguma causa de exclusão da ilicitude ou da culpa); e acórdão 85/85, fiscalização sucessiva das mesmas normas, relator Vital Moreira, tirado por idêntica maioria, com maior ênfase na natureza subsidiária do direito penal e da sua menor adequação à tutela da vida intra-uterina) até à fiscalização preventiva obrigatória da pergunta do referendo que veio a permitir o aborto por decisão da mulher nas primeiras 10 semanas de gestação (acordão 288/98, tirado por maioria semelhante, relator Luís Nunes de Almeida, admitindo a conformidade constitucional de qualquer uma das respostas ao referendo: descriminalização ou criminalização).

Já nos EUA a matriz constitucional obriga a construir a colisão de direitos a partir dos “compelling state interests” daqueles Estados federados que criminalizam o aborto, colocando no outro prato da balança um direito da mulher (a “escolher” a partir da cláusula aberta da IX emenda ou do “substantive due process”, interpretando a XIV). Em 1973 o relator (Blackmun, republicano do Minnesota, nomeado – ironia da história – por Nixon em 1970) sintetizou a fórmula que transformou Roe v. Wade numa cause célèbre: “We, therefore, conclude that the right of personal privacy includes the abortion decision, but that this right is not unqualified and must be considered against state interests in regulation.” Na maioria destaca-se a declaração de voto de Douglas, mais ampla no elenco dos direitos que devem prevalecer: “First is the autonomous control over the development and expression of one’s intellect, interests, tastes and personality. Second is freedom of choice in the basic decisions of one’s life respecting marriage, divorce, procreation, contraception, and the education and upbringing of children. Third is the freedom to care for one’s health and person, freedom from bodily restraint or compulsion, freedom to walk stroll or loaf”. Prova da diversidade social e política dos Estados federados e, à época, de menor facciosismo, a “minoria” então vencida foi encabeçada por White, democrata do Colorado, nomeado por Kennedy em 1962. [continua]

Escreve à sexta-feira, sem adopção das regras do acordo ortográfico de 1990