João Neto. “Estamos a bater recordes de idas a museus mas sobretudo com turistas”

João Neto. “Estamos a bater recordes de idas a museus mas sobretudo com turistas”


Como aproximar os portugueses dos museus? João Neto, historiador da Saúde, presidente da APOM e rosto do Museu da Farmácia, defende uma comunicação mais empática.  


João Neto está à frente da Associação Portuguesa de Museologia (APOM) desde 2001. Um mundo em que entrou por acaso – deixando a ideia de se tornar um historiador medievalista – desafiado pelo sogro, José Carlos Salgueiro Basso (1931-2005), que nos anos 80 quis criar um Museu da Farmácia em Portugal. Dirige a casa cheia de tesouros dos últimos sete mil anos da história da farmácia e da saúde, incluindo um corno de unicórnio e uma pedra filosofal, ou a colher com que os romanos tomavam xaropes, históricas em cima da história que são também uma forma de fazer a ponte para o presente. Na semana em que se assinalou o Dia Internacional dos Museus, fala do papel que acredita que os museus podem ter, até para atrair mais portugueses para além dos turistas.

No início do ano foi publicado um estudo que concluiu que 61% dos portugueses não tinham lido um livro num ano, isto antes da pandemia. Eram menos ainda os que tinham ido a um museu: 72%. Estamos assim tão afastados dos museus?
Depende um pouco do público de que falamos. Os museus, palácios, monumentos e sítios arqueológicos e interpretativos recebem muitos portugueses mas a verdade é que são sobretudo as escolas que fazem visitas. Continuam a ser um lado muito importante do contacto dos portugueses com os museus, em particular das crianças e jovens.

E já estão a voltar depois de tantas visitas de estudo perdidas durante a pandemia?
Sim, graças a Deus estão. Depois efetivamente quando falamos de visitantes habituais, sejam individuais ou em grupo, os portugueses não têm o hábito de dizer “hoje vou a este museu” ou “quero conhecer isto”. Vêm, mas não se compara com os turistas que temos. Estamos a bater recordes de visitantes aos museus mas sobretudo com os turistas. Além dos espanhóis, temos tido um grande boom de turistas franceses, que são pessoas que vêm com o tempo guardado para almoçar e jantar mas também deixam um espaço para sentir e amar o património.

É algo que se nota neste regresso à normalidade?
Já se notava. Antes da pandemia estávamos a bater recordes de visitas, entre 2017 e 2019 foi sempre a crescer, depois parou e agora sentimos de novo que vamos bater um novo recorde de visitantes.

Mas em dez pessoas que entram hoje num museu, quantas são estrangeiras?
Dando o exemplo do Museu de Farmácia, 90% são estrangeiros.

Estamos no coração de Lisboa, uma zona muito turística. Em Paris, Londres, também é assim? São os turistas que têm tempo para ir aos museus?
Também será assim, mas ao mesmo tempo há outra sensibilidade para o património. Em Portugal não é que as pessoas não gostem de ir, se calhar precisam de ser mais atraídas para entrarem num museu e isso tem a ver com as estratégias de comunicação. As nossas visitas temáticas da Agatha Christie aqui no Museu da Farmácia têm sido um enorme sucesso porque faz as pessoas questionarem-se: mas o que é que a Agatha Christie tem a ver com a farmácia? E aí fazemos a ligação entre obras como o Crime na Mesopotâmia ou o Crime no Expresso do Oriente com peças da história da saúde. Começámos em 2020 a fazer esta visita por causa dos 100 anos de Poirot e fomos mantendo porque sentimos que eram atrativas, que as pessoas procuram essa interpelação. Portanto julgo que tem de haver um esforço de comunicação dirigido aos portugueses e para isso precisamos de uma estratégia nacional que tem de envolver todos os intervenientes, do Ministério da Cultura às associações profissionais na área dos museus, da conservação e do próprio Turismo, para que as pessoas sintam que vão ganhar alguma coisa em vir.

Por vezes nem há bem noção dos museus que existem à nossa volta. Quantos museus existem em Portugal?
Existem mais de mil. A grande maioria são museus municipais. As câmaras perceberam que tanto com o turismo geral como com o turismo da saudade, que traz emigrantes e lusodescendentes a Portugal, podiam ter uma grande mais-valia em termos de visitantes se apostassem no seu património. Mas depois falta a divulgação. Na associação todos os anos atribuímos prémios nacionais. Há uns anos fizemos uma iniciativa com o Instituto Camões e na altura houve um powerpoint em que mostrávamos no território nacional os museus que tinham sido premiados. Essa apresentação foi partilhada por delegações do instituto e tivemos um enorme de feedback de portugueses espalhados pelo mundo que diziam “eu nem sabia que havia um museu premiado na minha terra”. É assim que passa a palavra até às gerações que já nasceram lá fora e por isso tenho alertado que não tem havido divulgação suficiente, nem cá, nem junto das nossas comunidades. Na semana passada entrou aqui no museu uma lusodescendente dos EUA, com família no Porto. Veio de férias a Portugal, lá está em parte pelo turismo de saudade, mas disse-me que o mais importante na hora de decidir tinha sido a taxa de vacinação e a segurança. E estava completamente surpreendida porque a família não lhe tinha falado da riqueza do património que ia encontrar.

Não podia ser mais fácil percebermos onde é que em Portugal podemos ver quadros de um determinado pintor, ou um sarcófago?
Podia, mas para isso precisamos de organização. O Estado e o Ministério da Cultura têm de perceber que não podem ter uma estratégia apenas para os museus da sua tutela. Há uma noção do que existe, mas temos de arranjar formas para que qualquer visitante nacional ou estrangeiro possa saber, se for à região Norte ou ao Centro, que museus ou temáticas pode encontrar e com o quê. Não basta pôr uma lista com os nomes dos museus porque muitas vezes isso não diz nada a quem chega pela primeira vez. Temos de dizer que épocas podem encontrar em cada sítio, o que podem descobrir.

Ao fazer a N2 descobri um museu fantástico em Almodôvar, no Alentejo, o Museu da Escrita do Sudoeste, com uma espécie de pedra de roseta desta escrita primitiva da Península Ibérica. São coisas de que não ouvimos falar, pelo menos quem não seja de lá. Tem feito descobertas assim pelo país?
Sou privilegiado porque na APOM acabamos por contactar com muitos museus. Não querendo ser injusto estando a nomear uns e não outros, o que posso dizer é que as pessoas de facto ficam admiradas com a qualidade do nosso património mas a grande surpresa é a nossa história. Portugal é conhecido por uma única época da história, pelo Vasco da Gama e pelos Descobrimentos. Parece que há aqui um vácuo histórico. E depois vemos por exemplo os norte-americanos a perguntar: “Vocês tiveram cá os romanos? Os fenícios passaram por Portugal?”. Este lado de um território e de um país que abraçou muitos povos deixa as pessoas surpreendidas. Houve aquela série Vikings e quando tinha cá no museu visitantes da Dinamarca ou da Suécia dizia sempre: sejam bem-vindos de novo, porque vocês na Idade Média estiveram cá, tivemos vikings em Lisboa.

No Estado Novo houve uma grande promoção dos Descobrimentos, mas entretanto o regime acabou há 50 anos, com toda a controvérsia que esse capítulo da história hoje revisitado vai gerando. Porque é que Portugal continua a ser sinónimo de Vasco da Gama?
Porque batemos sempre na mesma tecla, parece que só fomos bons naquele período da história. E não fazemos um esforço de ir mais longe e lembrar que no nosso sangue corre uma história muito mais vasta e que nos liga a muitos povos. E tenho insistido muito que até este boom de turistas sirva para criar essas pontes e dizer às pessoas que podem vir conhecer um pouco da sua história também em Portugal.

Este ano o tema do Dia Internacional dos Museus foi o poder dos museus. A APOM teve uma ação de defesa do património cultural ucraniano e tem essa ideia de que os museus podem ter um papel também no acolhimento e integração de refugiados.
Sim, as pessoas poderem encontrar a sua história, a sua cultura, poderem ter contacto com a cultura de outros, é algo muito poderoso que os museus podem oferecer e que já têm formas de o fazer porque o património está cá. Só não existe muitas vezes essa perspetiva.

Tivemos o anúncio recente de que o Museu de Arqueologia vai estar fechado até 2025. No ano passado foi o museu mais visitado. É normal um museu fechar três anos?
Praticamente todos os museus afetos ao Estado precisam de intervenção. O Museu de Arqueologia foi sendo sempre empurrado ao longo do tempo por isso vem em boa hora e houve uma opção política de investimento no PRR, em que tem a maior fatia, e vai haver uma requalificação ampla que passa também pela ampliação para os Jerónimos. Três anos podem ser compreensíveis pela intervenção e pelo que sei vai continuar a haver iniciativas com o espólio do museu noutros espaços, por isso nesse sentido creio que é uma boa notícia.

A pandemia trouxe novas dinâmicas, visitas virtuais, algumas experiências imersivas. O que fica?
Ao princípio pareceu uma ameaça.

Houve medo que as pessoas se habituassem a visitar os museus sentadas no sofá lá de casa?
Um pouco. Mas o medo não era tanto das pessoas, mas que algumas tutelas pudessem pensar que o virtual era a grande aposta.

Em vez de fazer obras no Museu de Arqueologia punha-se tudo virtual e estava resolvido?
Exato. Que eu saiba nunca foi esse o pensamento do Museu de Arqueologia mas sei que houve casos desses. Do lado das pessoas, percebeu-se que não iam querer ficar sufocadas em casa. O que o primeiro confinamento nos mostrou foi que de facto havia países muito mais avançados na partilha do conhecimento. Nós tivemos de dar esse passo. E os profissionais dos museus apareceram. Os museus por vezes fecham quem lá trabalha diariamente e de repente tivemos webinars, pessoas a falar sobre as peças lá para casa. Era algo que já víamos por exemplo nos museus anglo-saxónicos e tivemos cá pela primeira vez. Dou sempre o exemplo do Museu Nacional de Arte Antiga, em que a certa altura com tudo fechado e vazio, víamos o subdiretor e o diretor com uma máquina rudimentar, quase sem luz, a mostrar a arte apesar da distância. E muitos museus abriram pela primeira vez esta janela de pôr as pessoas de dentro a falar para fora.

Com as aulas em casa houve muito aquela sensação de que só se dá valor quando não temos. Foi o mesmo?
Sim e isso em termos nacionais foi muito importante. Começámos a perceber que o mundo digital pode ser e deve ser uma boa arma de comunicação. Mas não é para despejar, é para agarrar as pessoas e trazê-las aos museus para os verem ao vivo. E penso que essa consequência a pandemia teve.

E não há receio de que esse investimento não tenha retorno, da mesma forma que a imprensa ou a música, ao estar na internet, perdeu as vendas tradicionais?
Penso que conseguimos agarrar as pessoas e que é uma questão de percebermos como agarrar as pessoas, como em tudo. No caso da imprensa penso muitas vezes se a questão não será também a oportunidade. Não é que as pessoas não queiram, mas quando querem, conseguem? Uma pessoa quando está a comprar um café e um pastel de nata poder pagar mais x para ter o jornal. A meu ver o problema por exemplo dos jornais não é que as pessoas não queiram, é a acessibilidade, terem os jornais e revistas acessíveis quando os podem ler.

Há pouco não me deu exemplos de museus. Até em jeito de dica de fim de semana, tem alguma sugestão?
Sou apaixonado pelo conhecimento e é isso que procuro sempre, por isso há muitas experiências que as pessoas podem procurar. Criando boas expectativas até em torno de museus novos que abriram ou foram renovados recentemente, temos o Museu Municipal de Lagos Dr. José Formosinho, o novo museu da Covilhã, muito inclusivo, ou o Museu do Caramulo, que fez uma excelente renovação. O Museu do Caramulo é uma agradável surpresa. As pessoas associam sempre aos carros mas a coleção Abel de Lacerda é muito eclética, temos das melhores peças de tapeçaria do século XV e XV, cerâmica, vidro, joias, relógios. Ou por exemplo o novo complexo cultural WOW, em Vila Nova de Gaia, onde se pode ver uma coleção privada de recipientes, de cerâmica com milhares anos ao que é usado hoje, em torno do que é um copo, o que é uma ideia muito interessante até de história universal (The Bridge Collection). Ou o museu dedicado ao Joaquim Agostinho em Torres Vedras e o Museu Duas Rodas em Anadia.

Portanto museus para todos os interesses.
Sim. E o que quero dizer é que às vezes pelo nome só não sabemos o que têm. O meu maior inimigo aqui no Museu da Farmácia é o nosso nome, a nossa designação. As pessoas perguntam: o que é que pode ter de diferente do que tenho no armário lá em casa? Somos um museu de história da saúde e de história universal. Por isso, e porque há outros casos assim, penso que temos de apostar muito na comunicação, na divulgação das temáticas. E os turistas conhecem a história, conhecem os diferentes períodos, temos de os puxar para dentro das nossas temáticas. Quem é que não gosta de uma boa história?

O que acha desta tendência para uma certa experiencificação das exposições, com visitas imersivas, museus mais interativos?
É preciso fazer uma distinção porque muitas vezes não estamos a falar de museus. Não estou contra nada disso, tem é havido a confusão de pensar que o espaço de um museu serve para tudo. Acho bem que haja aqui um concerto de música, mas não devo apresentá-lo apenas como um lado lúdico mas como algo ligado a peças ou temáticas do museu. Este lado pode e deve existir, mas abrir um museu só com uma vertente lúdica apenas para o excel ter número de visitantes…

Mas o que nos leva a pagar 15 euros para ir a uma visita dessas mais luminosas e a torcer o nariz ao preço de um bilhete de um museu mais convencional? 
Cada vez estamos mais agarrados ao movimento.

É preciso ter paciência para visitar um museu?
Sim, mas não é só isso. No ano passado tive aqui no museu uma avó que trouxe o neto, devia ter cinco ou seis anos. Passado um bocado vejo a avó vir com o menino. Perguntei “então, já?”. E avó respondeu: “Assustou-se com os bonecos do museu e vamos embora”. Podia assobiar para o lado, mas aquela criança ia ficar com uma experiência negativa do Museu da Farmácia. E fiz-lhe uma visita mágica pelo museu, levei-o a tocar no corno de um unicórnio. A reação mudou completamente.

Mas essa facilidade não é imediata: fui recentemente ao Museu Nacional de Arte Antiga e alguns quadros podem ser assustadores para as crianças. Havendo seguramente sessões educativas, num dia normal, se uma família quer ir ao museu, têm de ser os pais a inventar e tentar dar algum sentido ao Bosch, cabeças em cima de pratos e criar pontos de interesse. Não nos foi sugerido nada.
E por isso digo que temos de fazer um esforço e para isso temos desde já um problema na larga maioria dos nossos museus que é os recursos humanos serem muito escassos. Os vigilantes das salas não podem ser só vigilantes das salas para estarem ali a ver as pessoas. Não quer dizer que as pessoas não estejam atentas e que não tenham essa dimensão de perceber o sentido do museu e da relação até emocional que se cria com o que se está a ver, mas é preciso saber como descodificar essas relações e não ter medo de perguntar à pessoa: “Precisa de ajuda?” Mas isto tem de vir de cima. Isto é fácil de dizer mas é muitíssimo difícil de aplicar, pela falta de recursos humanos. E por isso digo que precisamos de uma estratégia global de promoção de museus, sítios, património, para que não seja um esforço só de alguns. Conhecimento temos, excelentes cientistas ligados às instituições museológicas também temos, temos é de ter uma estrutura que nos ajude a partilhar e criar elos emocionais com as pessoas para que esse conhecimento seja agradável a quem visita um museu.

Foram lugares elitistas?
Mais ou menos, houve essa perceção talvez. Não nos podemos esquecer que desde a segunda metade dos anos 60 que os museus passaram a ter ateliês para crianças. Mas se calhar faltou esse lado de mostrar que o conhecimento é adaptável a todas as pessoas, a todas as idades, a todos os estratos sociais.

Mas é real a gentrificação no acesso aos museus? Os portugueses que por norma vão a um museu são todos de um mesmo estrato social?
Não creio e há uma coisa que contribuiu muito para diluir isso que são as universidades seniores.

Que têm tido um papel muitas vezes pouco notado, não?
Sem dúvida. Este movimento que trouxeram de levar alunos de Vila Franca de Xira ao Porto, a Lisboa, etc, foi muito importante. E aqui não é só o ir ao museu, é o ato social da visita, de estarem juntos, caminharem até ao museu, fazerem perguntas. Volto a dizer: o problema dos museus não está nas escolas, mas naquilo a que chamo o visitante borboleta. O indivíduo que está em família e que está indeciso sobre onde há de ir e por vários motivos e até pela comunicação social terá até mais tendência a ir a um museu de arte contemporânea porque tem uma nova exposição. Isso é positivo, mas acaba por deixar os museus de História mais para segundo plano. As pessoas têm aquela ideia: já fui, o que há de novo? Ou então os tais centros interpretativos de emoções.

Há bocado pensava por exemplo no Quake, que abriu recentemente e oferece a experiência do terramoto de Lisboa. É algo de que as pessoas tenderão a gostar mais?
As pessoas gostam desde que sintam uma empatia com a sua vida, com o seu conhecimento, com a sua história.

Precisamos de museus mais empáticos?
Precisamos de uma comunicação mais empática e concentrada no próprio visitante. E percebendo isto: um visitante que gostou de ir a um museu, vai recomendá-lo à sua família, aos seus amigos. Temos aqui no Museu da Farmácia uma das receitas médicas mais antigas do mundo. Uma pessoa quando relaciona com a sua experiência de ir hoje ao médico, aquela peça já não é só um objeto histórico, passou a ser um objeto com história ligado à minha vida.

Este projeto do Museu da Farmácia começou há 41 anos, em 1981, pela mão de Salgueiro Basso, farmacêutico e seu sogro.
E com o colega dele Francisco Guerreiro Gomes. O meu sogro sente esta necessidade de criar um museu porque a certa altura Portugal era o único país ocidental que não tinha uma estratégia de preservação do património farmacêutico. Decide então fazer a doação da sua farmácia e começa-se a pensar no museu na Associação Nacional das Farmácias.

Era onde a farmácia?
Em Vila Franca de Xira. A grande magia daquilo que o meu sogro e o Dr. Guerreiro Gomes, outro grande apaixonado pela história, fizeram e com o apoio do Dr. João Cordeiro, a Dra. Maria da Luz, o Dr. João Silveira, pessoas ligadas à direção da ANF, foi conseguirem materializar este projeto e fazer com que aquele gosto que era deles passasse a ser um gosto da classe dos farmacêuticos, que passou a fazer doações e donativos para financiar o próprio museu. E é muito difícil fazer doações quando estamos a falar às vezes de objetos que estão na família há mais de um século.

Depois Salgueiro Basso desafiou-vos, a si e à filha Paula Basso, para agarrarem o projeto. Era formado em história mas tinha alguma ligação à saúde? Imaginava-se à frente de um museu?
Não, tinha acabado de sair da faculdade e gostava de Idade Média, pensava que ia ser medievalista, sempre de espada na mão. O meu sogro aliciou-me para a história da saúde e da ciência e o que esta casa acabou por fazer foi formar e apostar no conhecimento dos seus quadros e isso permitiu que passássemos de uma coleção que ao início tinha frascos do século XIX para ser o único museu de história universal no nosso país. Fizemos todo um trabalho de mapeamento dos momentos da história, das peças que que queríamos e como contar esta história.

Fala muitas vezes da preocupação que houve neste museu de dar uma imagem global. De onde veio isso?
Veio da minha formação de historiador. Mas às vezes temos aquela ideia do historiador como aquele indivíduo super-especializado, especialista em espadas entre 1381… 

De onde veio essa ideia de organizar assim o museu?
A minha irmã casou com um inglês e eu desde muito cedo, dos oito ou nove anos, fui desperto para esse mundo. Uma pessoa entrar naqueles museus em Londres e sentir-se completamente fascinado.

Qual foi o primeiro museu em que entrou?
O British Museum. Há duas coisas na minha vida que nunca hei de esquecer, essa primeira entrada no British Museum e depois ir àquela loja de brinquedos muito conhecida, gigante.

É engraçado como essas primeiras idas a exposições ficam. Recordo-me de ir a uma exposição sobre o medo com a escola, em que podíamos deitar-nos numa cama com pregos. 
Sim, são muito marcantes essas primeiras visitas. O meu lado medievalista devo-o aos meus avós. Eu era o neto mais novo da família e devo-o à paciência que tinham para me levar aos museus e aos grandes monumentos. Eram avós que tinham vivido o Estado Novo, apoiantes da Primavera Marcelista, mas que tinham muito essa ideia da importância da nossa história, da nossa pátria.

Tornámo-nos avessos a essa ideia depois do 25 de Abril pela conotação do património com um regime autoritário?
Sim e alguns museus a seguir ao 25 de Abril tiveram essa pressão. Todas as questões ideológicas ligadas à história acabaram por limitar a evolução que era precisa nos museus.

Uma omissão na preservação da história e do património?
Acho que essa é a palavra certa. Nestes anos de democracia houve uma grande omissão na política museológica nacional. Fizeram-se grandes exposições, sim, mas enchemos o balão como o Bartolomeu de Gusmão e depois esvaziava. Por exemplo tivemos a Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses (1986-2002), mas na minha opinião devia ter-se mantido por ser uma marca de Portugal. Somos considerados descobridores enquanto os espanhóis são considerados conquistadores, e não soubemos explorar isso. Não é para idolatrar, mas para criar novos entendimentos e interpretações sobre o património.

Já é do tempo pré-covid, mas como viu a polémica em torno do Museu dos Descobrimentos em Lisboa, na altura um projeto de Fernando Medina?
Acho que foi uma polémica estéril porque, até pegando neste tema que escolhemos este ano para assinalar o Dia Internacional dos Museus aqui no Museu da Farmácia, com a ideia de pontes entre culturas, penso que estamos num momento ideal para que as pessoas possam falar abertamente do que sentem. Nós vemos com os nossos olhos e é verdade que muitas vezes interpretamos a história pelos olhos de quem esteve lá mas era nosso aliado e é importante que outras visões possam existir e coexistir. Sou a favor de que o Padrão dos Descobrimentos deve existir e que tem de ter ali uma explicação. Agora podíamos ter ali outras visões, a visão dos povos que receberam os portugueses. Temos de dar a oportunidade de as diferentes visões se encontrarem e criar pontes para a memória.

Já falou do corno de unicórnio, um dente de narval, que é uma das atrações do Museu da Farmácia. Onde é que o foi buscar?
A Inglaterra, a uma coleção privada.

De alguém ligado à Saúde?
Não. Foi numa coleção a partir daquilo a que se chamaram os gabinetes de curiosidades. A partir do século XV e XVI, algumas pessoas começaram a colecionar tudo o que era exótico. Os dentes de narval, o unicórnio marinho, eram comercializados pelos vikings e quando ganham o poder sobre o território da Normandia juntam-lhe toda aquela mística dos unicórnios, da pureza, do sangue de prata. E daí a utilização medicinal e as crenças.

Já deu consigo a recorrer ao poder do unicórnio?
Sim, claro, sobretudo quando o Sporting precisa de ser campeão (risos). Digo sempre às crianças que podem tocar.
Têm outras peças únicas, como uma pedra filosofal, que não é só o nome de um poema de António Gedeão – a pedra de Goa, um medicamento secreto dos boticários jesuítas do século XVII, que muitos de nós não conhecemos. A que temos cá é verdadeira e foi feita por farmacêuticos portugueses. Esmagavam pedras preciosas e criavam uma amálgama poderosa, que depois era transformada em pó e tomada.

Qual é a peça mais valiosa no museu?
É muito difícil dizer. Há coisas que mudaram o mundo, que mudaram as pessoas. Por exemplo o Cânone de Avicena, um tratado de saúde do século XI, de um homem que se interessou pela saúde das pessoas. Objetos ligados à evolução da anestesia, uma peça magnífica que temos que é uma cultura de penicilina feita e assinada por Alexander Fleming.

Original?
Sim. Não vou dizer que é das primeiras, mas foi das que foram usadas para ele mostrar o que tinham feito e que pela primeira vez na história era possível curar uma infeção em horas.

Foi muito caro?
Não vou dizer que foi a peça mais cara mas para mim foi uma das aquisições marcantes. Da mesma forma que é marcante termos a única farmácia do século XVIII, que nos foi doada. Um farmacêutico olhar para dentro da sua história e decidir que aquele património deve estar num museu é magnífico.

Têm logo à entrada uma daquelas máscaras usadas no tempo da peste negra que nos faz pensar que as nossas máscaras hoje em dia não são assim tão más.
Só o bico é que é de uma máscara original do século XVII, que veio da Alemanha. Foi usada na segunda grande vaga de peste negra, quando os médicos precisavam de entrar naquelas ruas fechadas para ver doentes. Era a forma que tinham de se proteger.

Vão ter uma ala dedicada a esta pandemia?
Claro. Fui operado e mesmo nessa altura andava a ligar para as pessoas porque queria ter os primeiros medicamentos que foram usados. Temos a vacina Sputnik V, que foi a primeira registada. E temos outras peças que ajudam a contar a história. Temos a máscara do Bento Rodrigues, da SIC, que uma vez contou na jornal da noite que uma vizinha lhe tinha deixado uma máscara na porta de casa.

A grande história e a pequena história, a macro e a micro história.
A micro história toca-nos. E este museu que conseguimos fazer tenta muito fazer essa ponte. Nas visitas, quando mostro que temos uma das primeiras colheres de medida do período romano para administrar medicamentos, qual é o miúdo que nunca tomou um xarope e não se imagina ali? Há por exemplo uma figura pequena de porcelana que era usada pelas japonesas para apontar onde lhes doía no corpo. Utilizada até ao início dos anos 60 no Japão e na Coreia. E a mesma ideia foi usada pelas nossas tropas no Afeganistão e os profissionais de saúde que estavam lá para salvar vidas e não podiam tocar nas mulheres, era através de desenho.

Tendo esta bagagem da história da saúde, estava à espera que voltássemos a confinar no século XXI?
Acho que só quem não conhece a história não o imaginaria. Uma das minhas críticas foi naquele grupo do Infarmed não estar um historiador da área da saúde e temos vários. Podíamos ter evitado alguns erros.

Por exemplo? 
A comunicação das máscaras e do confinamento. Claramente que uma das primeiras medidas desde a Idade Média, e já não vou às pandemias do período romano, era restringir a mobilidade das pessoas e lidar com os problemas que isso provoca. A mobilidade tinha de ser das primeiras coisas bem tratadas, do ponto de vista da saúde e até psicológico. A propagação da gripe espanhola deveu-se à aglomeração das pessoas e isso podia ter sido explicado às pessoas, mostrar-lhe que isto não é novo. Podia ter-se explicado melhor às pessoas desde o início que pela primeira vez na história estávamos a viver uma pandemia globe-trotter, em que uma pessoa pode infetar 300 pessoas num avião que vai para o Japão e a partir daí não se contém o vírus. Há sempre uma arrogância das sociedades quando sofrem de que vão conseguir ser mais eficazes que os antigos, quando algumas coisas acabam por ter de ser as mesmas. Em 2020 lembro-me de dizer numa entrevista contem no mínimo com dois anos, na altura havia a ideia de que isto podia durar alguns meses.

E agora?
Não sei. Dois anos foi o que durou a pandemia em 1918, mas já não temos a mobilidade do século XX. Se calhar temos de pensar em quatro anos.

Entretanto dá para voltar aos museus. Algum pedido concreto para o ministro da Cultura neste início de legislatura?
Que tenha a capacidade de perceber que estamos no mesmo barco. Tenho a certeza de que ouvindo todos, com bom senso e equilíbrio, vamos criar condições para ter uma cultura mais acessível, mais sustentável e sobretudo museus, palácios e monumentos com capacidade de acolher todos.