Beneficiários líquidos de Portugal, uni-vos


Somos uma sociedade demasiado resignada e condescendente com os protagonistas da vida pública e política.


Ele há o bruto e há o líquido. Em Portugal parece que, demasiadas vezes, o bruto acaba por ser excessivamente líquido e na ânsia de ter de dizer, diz disparates conceptuais sem senso. Ainda que, com algum eventual nexo com a realidade e a conjuntura. Entramos assim no domínio do bem senso ou da falta de noção.

A toque de ânsia mediática de pontuar cada dia que passa com dizeres sobre tudo o que acontece, do mais corriqueiro ao mais excecional, o Presidente da República voltou a projetar-se para a esfera da falta de noção.

Somos beneficiários líquidos da guerra na Ucrânia, da invasão da Rússia do território ucraniano, por estarmos longe. Para que não haja dúvidas a pérola integral é “tal como aconteceu, embora de forma muito diferente na Segunda Guerra Mundial, somos de momento beneficiários líquidos da situação vivida: Portugal está solidário na guerra, mas é visto longínquo da guerra, é visto longínquo da guerra para o turismo, é visto longínquo da guerra para o investimento”.

É certo que este “orgulhosamente acantonados” é uma nova abordagem de similar abordagem em relação aos impactos da pandemia, mas vindo do Chefe de Estado é ainda mais censurável.

Num mundo globalizado, em os espirros longínquos em tudo o que são cadeias de fornecimento e distribuição se projetam em qualquer território exposto ao exterior, como é possível considerar que apesar das mortes, da destruição, da instabilidade e da desordem política internacional, há um território na Península Ibérica, que os romanos diziam não se governar nem se deixar governar, que é beneficiário líquido dos acontecimentos.

Ainda que no quadro de instabilidade e risco gerado na Ucrânia Portugal pudesse ser um foco de estabilidade, pelo seu posicionamento geográfico, essa circunstância, por si só, nunca seria suficiente para mitigar os impactos da guerra em território europeu, depois de anos de uma paz interiorizada, mas insuficientemente acautelada.

Como é que somos beneficiários se sentimos todos os dias o fustigo dos preços dos combustíveis ou da energia, a toque da instabilidade com as fontes e cadeias de distribuição?

Como é que somos beneficiários se acolhemos diariamente ajustes inflacionários nos preços de bens e serviços a toque da instabilidade real e das especulações?

Como é que, seguindo a linha de pensamento católico do Presidente, se pode ensaiar a tese da existência de benefícios brutos ou líquidos de um tamanho nível de barbárie de uma guerra concretizada pela Rússia, com as violações, as mortes, os estropiados, a destruição e o sofrimento humano materializado sob diversas expressões?

A diferença entre o bitaite e o pensamento verbalizado, é que, no primeiro, se pode dizer a primeira coisa que vem à cabeça, no segundo podemos e devemos mobilizar todos os neurónios ativos, nomeadamente os responsáveis pelo senso e equilíbrio. Tudo o que, mais uma vez, faltou ao Presidente, cada vez mais líquido e menos bruto, no sentido de sólido no que diz e faz. Algo acontece e o presidente esvai-se em dizeres e palavras de circunstância, em resposta aos media ou por impulso próprio. Tantas vezes o cântaro vai à fonte que o líquido se acaba por se perder.

Mas, o drama desta tese presidencial é que pressupõe a simples existência física e geográfica como uma espécie de graça benéfica para o turismo e para o investimento. Basta existir. Podes ter um Estado ineficiente em muitas dimensões, uma burocracia que toma conta do sistema, uma justiça que não cumpre o seu desígnio em tempo útil e uma deficiente capacidade de concretização e de valorizar quem faz, que os benefícios líquidos surgirão de geração espontânea, graças à geografia. Não precisas de fazer nada, basta existires.

Que falta de senso! Ainda que possam surgir oportunidades resultantes da instabilidade internacional e do ponto de guerra na Ucrânia, verbalizar a tese de um Portugal beneficiário líquido de uma catástrofe humanitária é pornográfico. É incompatível com a função presidencial que deveria estar atenta e atuante em relação à necessidade de corrigir as disfunções do Estado e as dinâmicas menos positivas da sociedade, numa lógica de mobilização para a melhoria e transformação do seu funcionamento. O “não faças nada, que alguma coisa beneficiarás”, é uma outra face da perceção de que os recursos, também os do Estado, são infinitos e chegam para tudo e para todos. Simplesmente é irreal.

Somos uma sociedade demasiado resignada e condescendente com os protagonistas da vida pública e política, que se impulsiona apenas, da pior forma, na ligeireza dos espaços de comentários das notícias nos media online e nas redes sociais. Há uma semana soubemos que um evento exclusivo que custa, pelo menos, 11 milhões anos aos contribuintes, também se vai realizar no Brasil e nada aconteceu. Nem esclarecimento, nem sancionamento pela aldrabice dos promotores. É assim, basta existir e ser contribuinte líquido. Beneficiário líquido é outra conversa, só para alguns. O Presidente saberá.

NOTAS FINAIS

ESBARDALHA-TE. O risco existe, mas tende a não ser acautelado e depois dá nisto. Uma pronúncia do Tribunal Constitucional e um triste espetáculo público entre pilares da justiça portuguesa. A Lei dos Metadados estipula a conservação de dados de tráfego e localização das comunicações feitas, durante um ano, com a possível utilização, se necessário, na investigação criminal. Num sistema habituado à lei do menor esforço na investigação ou à impreparação congénita, é um maná para a preguiça da simples existência judicial, que deveria ter sido acautelado pela conformidade constitucional, com esta ou outra. Mas não, só quando bateram na parede é que despertaram. Agora que o risco se abate sobre diversos processos criminais.

AGACHA-TE. O multilaterismo internacional é fundamental. A transparência também. O que dispensamos é mesmo os pseudo bons alunos, que insistem em ser cábulas no quotidiano, enquanto e projetam num futuro qualquer grandioso, ao qual a maioria não adere. Fruto das insuficiências da resposta à Covid 19, no quadro do atual regulamento Sanitário Internacional, a Organização Mundial de Saúde tem a circular um projeto de tratado internacional sobre Prevenção e Preparação para Pandemias. Sem debate público, Portugal terá aderido e será país piloto de um projeto que implica a cedência de soberania sanitária, a ser aprovado em assembleia geral da instituição no final deste mês. Estas coisas que mexem com direitos, liberdades e garantias não deveriam ser tratadas de outra forma? Depois, queixem-se do Constitucional…