Os Founding Fathers da Constituição americana tiveram uma preocupação cimeira em evitar a possibilidade de uma concentração de poderes conduzir a uma ditadura republicana, que seria apenas uma variante dos despotismos europeus a que procuravam fugir. Este temor deu origem a vários mecanismos constitucionais que se têm revelado, mais de dois séculos volvidos, particularmente eficazes mesmo perante a espantosa evolução tecnológica, social e económica que nenhum dos Framers poderia ter antecipado. O mecanismo mais óbvio de luta contra a concentração do poder assenta na realização de eleições periódicas (e competitivas, com possibilidade real de escolha entre vários programas). Nos EUA acrescentou-se uma cláusula inibidora de entusiasmos populares conducente ao “winner takes all”. A eleição presidencial não é acompanhada da eleição integral das duas câmaras do Parlamento (exactamente ao contrário do que se passa com a V República francesa, em que o Presidente eleito tende a conseguir, por contágio e chantagem, uma maioria parlamentar). Volvidos dois anos sobre o triunfo presidencial realizam-se Midterm Elections em que se renovam as duas câmaras e se assiste, quase sempre, à perda da maioria de apoio ao Presidente numa, quando não mesmo nas duas câmaras. O Presidente é assim obrigado a negociar a sua agenda política e legislativa com uma maioria que lhe é hostil.
A maior dificuldade do projecto constitucional dos EUA foi (e continua a ser) o casamento entre os poderes federais e as prerrogativas dos Estados federados. Na origem da declaração de direitos, desde logo as primeiras 10 emendas de 1791, esteve uma concessão aos Estados Federados ainda que os direitos nelas consagrados sejam enunciados a favor do indivíduo. A história dos EUA é a história do confronto entre os direitos dos Estados federados e os direitos dos indivíduos (e das categorias de indivíduos) oponíveis a estes Estados depois de proclamados e defendidos pelo Estado federal.
Do ponto de vista jurídico a solução mais segura seria a sua adição ao texto constitucional por via de revisão constitucional. Mas esta solução exige 2 terços do Congresso e a ratificação de 3 quartos dos Estados, assim protegendo os direitos da minoria, mesmo contra os ventos da história. A federalização, por via legislativa, dos novos direitos está protegida pela tendencial maioria da oposição numa das Câmaras. Foi o que aconteceu esta quarta-feira no Senado, com a derrota por 51-49 da proposta legislativa de consagração do direito ao aborto.
Sobra a possibilidade de ser um outro órgão federal, o Supreme Court, a decidir da existência de um determinado direito, confrontando a legislação dos Estados federados com a interpretação judicial do texto constitucional. O simples facto de a interpretação, em busca do sentido e da actualidade, se afastar do texto divide a comunidade dos intérpretes em interpretativistas (maxime os Democratas e todos os actualistas, desde os libertários às leituras moralistas de Dworkin) e não interpretativistas (os Republicanos, com os originalistas, agarrados ao texto de 1787, capitaneados por Bork ou os textualistas, liderados por Scalia).
O exemplo de escola desta divisão encontra-se no reconhecimento pelo Supreme Court, em 1973, a partir do direito à privacidade, do direito ao aborto nos primeiros 3 meses de gestação. A decisão inicial (7-2), declarando a inconstitucionalidade da lei texana que criminalizava o aborto, tem vindo a ser testada por sucessivos casos, com a maioria a estreitar-se e o Tribunal a dar cada vez maior atenção aos direitos dos Estados e à colisão de direitos. [continua]
Escreve à sexta-feira, sem adopção das regras do acordo ortográfico de 1990