Paulo Henriques Britto. Poeta da contenção

Paulo Henriques Britto. Poeta da contenção


Com nomes como Anonio Cícero, Eucanaã Ferraz ou Paulo Leminski, a coleção plural, da Imprensa Nacional, continua a dar-nos eco do que melhor se faz, em poesia, no Brasil, dando-nos recentemente Paulo Henriques Britto, poeta até hoje por publicar em Portugal.


Já com nomes como Antonio Cícero, Eucanaã Ferraz ou Paulo Leminski, a coleção plural da Imprensa Nacional continua a dar-nos eco daquilo que melhor se faz, em poesia, no Brasil. A política de preços é um tanto ou quanto inexplicável – ainda para mais tratando-se de uma entidade pública -, mas segue, quanto a isso, a prática normal dentro do mercado editorial – e a qualidade, neste caso, é de tal forma elevada que em certa medida se justifica.

E é a coleção plural, dirigida por Jorge Reis-Sá, que nos deu recentemente – pela primeira vez, salvo erro – Paulo Henriques Britto, poeta brasileiro nascido em 1951, tradutor e professor na PUC-Rio. Por Ora reúne a produção poética deste poeta de 1982 a 2018, data em que sai Nenhum Mistério. São sete livros em 36 anos, a uma média de um livro de cinco em cinco anos. Ao contrário da quantidade de versos em cima uns dos outros que tantos poetas, deste lado do oceano, tentam fazer passar como obra – sendo que apenas a quantidade impressiona – a parcimónia em publicar de Paulo Henriques Britto é já de si um ato de resistência, como se à vociferação de uns só se pudesse responder com um tom baixo e um labor incansável que tivesse como objetivo cinzelar ao máximo o verso e o poema. 

E o que encontramos, ao longo dos livros coligidos em Por Ora, é um “somatório de peças discretas”, todas elas delineadas de forma clara e distinta, sem qualquer tipo de excesso, sem arrebatamentos líricos – pequenos diamantes onde qualquer imagem é “extremamente, absurdamente nítida”, conseguindo atingir uma temperatura próxima do zero na forma contida, sóbria, com que cada poema, cada verso, é construído no “desespero tranquilo dessas manhãs/ sem sol, sem álibis nem soluções”.

“Escravo da sintaxe e do desejo,/ Não posso ambicionar o brilho raso/ E a transparência vazia que vejo/ Nesses cristais gerados pelo acaso./ Palavra é coisa feita, construída/ De uma matéria turva e densa, impura/ Como tudo que tem a ver com vida.”

Até os títulos dos poemas, por vezes, ou mesmo dos livros (Liturgia da Matéria, por exemplo, ou Formas do Nada) dão conta desse “cálculo frio dos sentimentos”, como se o poeta se limitasse a dissecar um objeto qualquer de forma a atingir a “transparência vazia” dos “cristais gerados pelo acaso” de que fala. 

Paulo Henriques Britto contraria uma certa tendência contemporânea que vê na poesia a criação de imagens (mais ou menos bem conseguidas, como se a poesia fosse cinema), e que, em grande parte dos casos, as fazem suceder umas às outras como se o cavalo do verso, o elemento sonoro e vocal da língua, fossem agora imagens que correm incansavelmente umas atrás das outras. Há imagens, sem dúvida – mas, todas elas, extremamente e absurdamente nítidas, como se nesta nitidez residisse toda a dificuldade do labor oficinal -, mas o que parece interessar a Paulo Henriques Britto é um lugar mínimo onde constrói, por fim, a sua “peça discreta”. 

“Precisamente ali/ No intervalo entre a vontade e o desejo/ Ali na parede, o interruptor/ Da lâmpada que lança sobre tudo/ A cal abrupta da realidade”.

O que interessa a esta poesia é o tom menor, uma contenção de tal forma trabalhada, medida em todos os seus ângulos, em todos os seus movimentos, por mais subtis que possam parecer, que a palavra se torna uma espécie de sonda – a imagem é de Wittgenstein, que convoca a dada altura – envidada às paisagens mais áridas e geladas para vir daí com notícias. E o poeta vai traçando, da forma mais rigorosa possível, o sombreado dessas paisagens, como se lhe coubesse apenas como tarefa – mínima – elaborar um relatório o mais preciso possível do que lhe é dado ver. 

Não encontramos em Por Ora, consequentemente, nem um tom grandiloquente, nem arrebatamento lírico, de que a profusão de imagens na poesia funciona, a dada altura, como um parente distante, nem mesmo um certo desespero vago, mais incómodo que outra coisa, que pontua, aqui e ali, alguma poesia mais urbana. Há desespero nesta poesia, sem dúvida, e um desespero que está presente do princípio ao fim. Mas este é sempre objecto de um desenho meticuloso e preciso, como se o poeta conseguisse retroceder para um espaço anterior e, como uma daquelas máquinas que registam os abalos sísmicos, conseguisse ir traçando o contorno das fendas que vão sendo abertas.

A poesia de Paulo Henriques Britto inscreve-se, desta forma, nesse “intervalo entre a vontade e o desejo”, como se pretendesse atingir um lugar último e mínimo, frio, onde a nitidez se constrói com um sopro gelado – mas sempre, digamos assim, com a mão esquerda, para usar uma imagem presente em dois poemas. Essa ideia de um intervalo – “entre a vontade e o desejo”, ou “entre a pele e a medula” ou, num outro poema, “entre o momento e o ato”, “domínio branco e exato/ do que jamais vem a ser” – mede bem o gesto contido nesta poesia. O intervalo é sempre um lugar mínimo, difícil de atingir, difícil de construir, frágil, entre um qualquer sentimento, que daria lugar a um lirismo, e a coisa na sua objectividade, na sua materialidade. É no intervalo destes dois momentos, posto de observatório onde Paulo Henriques Britto consegue registar as pequenas cambiantes, os mais ínfimos movimentos, que estes poemas e estes versos se tentam inscrever.

“A mão esquerda é mais dura,/ Mais austera, e desconfia/ Desses gestos estouvados/ Que a mão direita, impensada,/ Esbornia,// À mão esquerda é vedado/ O recurso falso e fácil/ De dispensar partitura,/ A fraqueza (dita força)/ Do hábito.// Daí o jeito contido/ Das coisas que ela produz,/ O ar desperançado/ De quem até nem precisa/ Vir à luz”.

Em momento algum esta poesia deixa esta contenção de quem escreve com a mão esquerda – “mais dura/ mais austera” – e que implica, contra a facilidade e o falso, o rigor neutro que se limita a ir tirando peças, decompondo aos poucos o mundo. 

Há algo que remete esta poesia para o domínio da ascese – e para uma relação complexa com o corpo, “masmorra sem porta” – com o seu “desejo de formas claras e puras/ de nitidezes simples, minerais,/ certezas retilíneas como agulhas” cujo limite é espargir “sobre um túmulo de dúvidas/ flores estritamente artificiais”. Essa ascese liga-se, em Paulo Henriques Britto à procura, impossível decerto, do “brilho do cristal/ de uma razão sem jaça e sem nervuras/ sem óleos malcheirosos e carnais.”

É bastante interessante o uso que faz de formas já clássicas – o soneto -, que conferem a esta poesia um leve sabor anacrónico. Mas, ao mesmo tempo que há o rigor e a precisão com que usa esse modo bastante tipificado de poesia, encontramos, igualmente – tantas vezes – um desespero que é o da nossa época, do nosso tempo e geografia. Reactivar formas clássicas, mas não como mero jogo – o objectivo parece ser, ao invés, usar as regras do soneto de forma a conter ao máximo, tornando o mais cristalino possível, o desespero sem tonalidade tantas vezes inscrito nestes poemas.

E se há como que um tom monocórdico nesta poesia – todos estes livros tornando-se variações de um mesmo tema, praticamente -, isso parece um efeito de uma poesia que se inscreve no intervalo mínimo, ou na distância desmedida, que mais não é que aquilo que “nesse espaço sem medida/ – ou tempo incomensurável (…) se cristaliza na forma/ desconsolada do nunca/ porém – por obra do quase -/ permanece aquém do nada”. 

Paulo Henriques Britto é um poeta que vai somando – “nada senão/ o amontoar-se dos dias” -, acrescentando peças diversas, necessariamente discretas, quase sem tom, tentando atingir uma temperatura próxima do zero, numa espécie de inventário daquilo que, por vezes, nem chega a ser catastrófico. Vai medindo, usando a palavra como objecto de precisão, a devastação.